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sábado, julho 09, 2022

O que é petróleo sintético, arma contra aquecimento global

 




Com este pequeno avião, foi estabelecido um novo recorde de voo com combustível sintético

Por Alejandra Martins

Em novembro de 2021, um piloto da Força Aérea Real britânica decolou em pequeno avião no sul da Inglaterra para fazer história.

Seu curto trajeto estabeleceu um novo recorde para o livro Guinness: o de primeiro voo já realizado apenas com combustível sintético.

O combustível era da empresa britânica Zero Petroleum, uma das várias companhias que estão apostando no desenvolvimento dos combustíveis sintéticos, também chamados de eCombustíveis.

Essas empresas estão desenvolvendo iniciativas em diversos lugares do mundo — desde Bilbao, na Espanha, até o deserto de Nevada, nos Estados Unidos, e o sul do Chile.

O interesse pelos combustíveis sintéticos aumenta em momentos como este, em que a busca por alternativas para os combustíveis tradicionais é mais urgente do que nunca.

Para que o aquecimento do planeta não supere 1,5°C sobre as temperaturas da era pré-industrial, é preciso que as emissões de dióxido de carbono (CO2) liberadas pela queima de combustíveis fósseis sejam reduzidas em 45% até o ano 2030, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC, na sigla em inglês).

O secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, advertiu este ano em diversas mensagens que "estamos caminhando rapidamente para um desastre climático".

Mas Guterres também destacou que a transição para energias renováveis "oferecerá esperança para milhões de pessoas" prejudicadas pelas mudanças climáticas.

Os combustíveis sintéticos podem ser parte da solução? A BBC News Mundo — o serviço em espanhol da BBC — pesquisou o que são os combustíveis sintéticos, até que ponto eles são realmente verdes e se representam uma resposta viável para o aquecimento global.

O que são os combustíveis sintéticos?

Quimicamente, os combustíveis sintéticos e os de origem fóssil são iguais. Ambos são hidrocarbonetos.

"Os hidrocarbonetos são moléculas formadas por hidrogênio e carbono", segundo Carlos Calvo Ambel, especialista em transporte e energia da ONG Transport and Environment, com sede em Bruxelas, na Bélgica.

"Normalmente, o que se faz é extrair o petróleo da terra, refiná-lo e gerar produtos diferentes, como a gasolina, o diesel e o querosene", segundo Calvo Ambel. Mas, no caso do combustível sintético, o hidrogênio e o carbono necessários provêm de outras fontes.

O hidrogênio, por exemplo, é obtido separando-se os componentes da molécula de água — hidrogênio e oxigênio — em um processo que utiliza eletricidade, chamado eletrólise. "Você separa essa molécula de água em hidrogênio e oxigênio e fica com o hidrogênio", explica Calvo Ambel.

Já o carbono necessário pode ser obtido de diversas fontes. "Você pode recolher da chaminé de uma fábrica que está descartando CO2 ou capturá-lo diretamente do ar", acrescenta ele. "E você também divide esse CO2 em carbono e oxigênio e fica com o carbono."

Posteriormente, em outro processo industrial, é possível unir o hidrogênio e o carbono, sintetizando-os uma cadeia de hidrocarboneto. "Desta forma, você gera artificialmente uma molécula que é exatamente igual à do diesel, da gasolina ou do querosene tradicional", ensina o especialista.

Os combustíveis sintéticos são verdes?

Para que os combustíveis sintéticos sejam sustentáveis, "é fundamental que todo o processo seja feito com eletricidade renovável", segundo Calvo Ambel. "Se não se utilizar eletricidade renovável, o processo não é limpo."

Da mesma forma que no caso dos combustíveis tradicionais, quando os combustíveis sintéticos são queimados, eles liberam CO2 na atmosfera — um dos principais gases do efeito estufa, que causa as mudanças climáticas.

Por isso, para poder realmente falar em um processo sustentável, o carbono deve ser proveniente de CO2 capturado do ar, segundo Calvo Ambel.

"Se você capturar o CO2 da atmosfera e, ao queimar o combustível sintético, volta a descarregá-lo na atmosfera, o valor é neutro - não há contaminação adicional", explica ele.

'Os combustíveis sintéticos somente são limpos se todo o processo de produção for realizado com energias renováveis'

No caso do pequeno avião que estabeleceu um recorde para o livro Guinness, o combustível foi produzido usando apenas energia renovável, segundo Nilay Shah, professor de Engenharia do Imperial College de Londres e um dos fundadores da Zero Petroleum.

Qual a extensão da produção atual?

A quantidade de combustíveis sintéticos produzida atualmente "é reduzida", segundo Calvo Ambel, mas esse processo pode ser acelerado.

Além da Zero Petroleum, a lista de empresas que trabalham no desenvolvimento de combustíveis sintéticos inclui, por exemplo, a Fulcrum BioEnergy, uma empresa americana que está construindo uma refinaria no Estado de Nevada.

Neste caso, o carbono não virá da captura de CO2 do ar, mas do metano produzido pela decomposição de resíduos municipais.

Já a empresa chilena HIF Global (abreviação de Highly Innovative Fuels, ou Combustíveis Altamente Inovadores) tem projetos no Chile, nos Estados Unidos e na Austrália. Em 2021, a HIF começou a construir uma fábrica de demonstração chamada Haru Oni a cerca de 15 km ao norte do Cabo Negro, na região do Estreito de Magalhães e da Antártida.

"Haru Oni é a fábrica de demonstração da HIF que produzirá combustíveis neutros em carbono (eCombustíveis), graças aos fortes ventos da Patagônia, com tecnologia de ponta. No momento, 70% da fábrica estão construídos, e espera-se iniciar a produção de eCombustíveis no final deste ano", segundo informou a HIF Global.

O hidrogênio será obtido por meio de eletrólise da água e o CO2, por meio de captura do ar, segundo acrescentou a empresa. A meta é sintetizar metanol e, a partir dele, obter "uma gasolina que poderá ser empregada nos veículos atuais, sem nenhuma modificação".

'Na Patagônia chilena, a empresa HIF Global está construindo a fábrica Haru Oni'

Por outro lado, a multinacional espanhola de energia e petroquímica Repsol "começou, em maio deste ano, a construir no porto de Bilbao [na Espanha] uma das maiores fábricas de combustíveis sintéticos do mundo", informou a Repsol por escrito à BBC News Mundo.

Segundo a Repsol, a fábrica "contará com um eletrolisador de 10 MW para produzir 2,1 mil toneladas de combustível por ano, principalmente para aviões, navios e caminhões. O plano da Repsol é inaugurar essa fábrica de combustíveis sintéticos em 2024."

'A Repsol informou que obterá CO2 da fábrica de produção de hidrogênio na refinaria da empresa Petronor, da qual é a maior acionista'

Os combustíveis sintéticos são uma solução viável para os automóveis?

O especialista em mudanças climáticas da Universidade de Exeter, no Reino Unido, James Dyke acredita que não é justificável recorrer aos combustíveis sintéticos no caso dos automóveis.

"Estamos vendo atualmente um crescimento exponencial dos carros elétricos e um forte aumento de toda a infraestrutura de recarga associada. Existe também um possível papel para o hidrogênio como combustível no transporte por rodovia", destaca ele.

Para Calvo Ambel, desenvolver combustíveis sintéticos para automóveis "não faz nenhum sentido".

"Essa quantidade de eletricidade pode ser empregada para movimentar um carro elétrico diretamente, sem perdas de nenhuma parte", segundo ele.

"Ou você pode usar essa eletricidade para capturar o CO2, produzir hidrogênio, fazer a síntese e depois queimá-lo em um motor totalmente ineficiente, já que, em um motor a diesel ou gasolina, quase toda a energia é perdida na forma de calor."

O Parlamento europeu aprovou em junho a proibição da venda de novos carros com motor a combustão (ou seja, a gasolina e diesel tradicional) a partir de 2035.

Alguns críticos acusam as empresas petrolíferas de prometer e incentivar o uso de combustíveis sintéticos em automóveis para retardar a transição para os veículos elétricos e assim manter, pelo maior tempo possível, a venda de carros tradicionais e o consumo dos seus produtos.

A BBC News Mundo apresentou essa crítica à Repsol, que respondeu: "O objetivo é descarbonizar o setor de transporte e devemos manter todas as opções disponíveis para reduzir as emissões de forma mais rápida e eficaz. Devemos evitar o determinismo e deixar que todas as tecnologias concorram e se complementem entre si".

'O Parlamento Europeu aprovou em junho a proibição da venda de carros novos com motores a gasolina e diesel tradicional a partir de 2035'

A Repsol destacou ainda que uma das vantagens do desenvolvimento de combustíveis sintéticos para automóveis é o fato de que "esses combustíveis renováveis podem ser consumidos pelos veículos atuais, sem necessidade de modificação dos motores, nem das infraestruturas de distribuição e reabastecimento já existentes, o que permite acelerar a redução das emissões dos carros que já circulam nas estradas, sem precisar esperar a renovação da frota para empregar outras fontes de energia, como a eletricidade ou o hidrogênio".

Com relação às críticas específicas sobre ineficiência, a Repsol salientou que, "quando se fala que o uso de eletricidade diretamente para movimentar os veículos é mais eficiente, algumas considerações de enorme relevância são deixadas de fora".

"Em primeiro lugar, para fornecer eletricidade renovável a um veículo, a produção e o fornecimento da eletricidade devem ser realizados no mesmo instante temporal, e nem sempre é possível garantir que o veículo esteja conectado à rede no momento adequado", segundo a empresa.

A Repsol prossegue: "Em segundo lugar, se for necessário que os veículos a bateria tenham grande autonomia para realizar viagens longas, é preciso fabricar baterias de grande capacidade, que aumentam muito a massa do veículo. Essa massa maior repercute em maior consumo de eletricidade para os deslocamentos, prejudicando a eficiência".

"No caso dos combustíveis sintéticos, a maior massa de combustível para percorrer mais quilômetros é insignificante e não prejudica a eficiência do veículo", conclui a empresa.

Os combustíveis sintéticos são uma solução para a aviação?

"O único caso em que vemos potencial nos combustíveis sintéticos é o dos aviões. Se quisermos realmente descarbonizar, não existe nenhuma alternativa viável à queima de querosene", diz Calvo Ambel.

Em vez de combustíveis sintéticos, seria possível aumentar a produção de biocombustíveis para descarbonizar a aviação?

Os biocombustíveis, produzidos com a biomassa das plantas, não oferecem solução viável e apresentam grandes riscos, segundo o especialista da ONG Transport and Environment.

"Na Europa, os automóveis queimam todos os dias o equivalente a 15 milhões de pães, ao mesmo tempo em que temos uma crise alimentar mundial."

"Se você produzir biocombustíveis de soja, óleo de palma ou óleo de girassol, tudo isso exige uma quantidade de terra bastante considerável", acrescenta Calvo Ambel. "E, como sabemos, isso causa o desmatamento da Amazônia ou do sudeste asiático para produzir óleo de palma. Ou seja, o remédio é pior que a doença."

'A ONG Transport and Environment destaca que os combustíveis sintéticos devem ser parte da solução em setores onde não há alternativas viáveis, como a aviação'

Com relação ao óleo de cozinha utilizado como combustível para aviões, Calvo Ambel acredita que também não seja uma opção viável: "todo o óleo de cozinha consumido nos Estados Unidos não atenderia a 1% da demanda de querosene daquele país".

A Transport and Environment defende que, em 2030, as empresas aéreas "sejam obrigadas a utilizar um percentual — mesmo que pequeno, de cerca de 1% — de combustível sintético, para começar a evoluir pouco a pouco até onde precisamos chegar. Porque o que não podemos é continuar usando querosene por toda a vida", afirma Calvo Ambel.

A produção de combustíveis sintéticos poderia ser escalonada?

Os especialistas ouvidos pela BBC News Mundo concordam ao destacar que tecnicamente é possível aumentar a produção de combustíveis sintéticos. Mas a principal dificuldade é que o aumento dessa produção exigirá grandes quantidades de eletricidade de origens renováveis.

"A Europa sabe que, se quiséssemos, por exemplo, movimentar todos os aviões com esse combustível — só os que saem da Europa — seria preciso importar o combustível porque são necessários muitos painéis solares e muitas turbinas eólicas", afirma Calvo Ambel.

"O governo alemão, por exemplo, fez recentemente um acordo de cooperação com o Chile neste setor, mas tudo está em fase preliminar."

'É urgente a necessidade de reduzir as emissões de CO2 provenientes da queima de combustíveis fósseis, segundo o Painel Internacional de Mudanças Climáticas das Nações Unidas'.

Nilay Shah destaca que aumentar a produção de combustíveis sintéticos para satisfazer às exigências da aviação mundial apresenta diversos desafios. Entre eles, o professor menciona os seguintes:

    otimizar a química para que a maior parte da matéria-prima (CO2 e hidrogênio) seja convertida em combustível de acordo com as especificações necessárias (sem produzir ao mesmo tempo gases ou outros produtos secundários);

    instalar capacidade suficiente de energia renovável;

    instalar capacidade suficiente de eletrólise para a produção de hidrogênio; e

    ter acesso a uma fonte sustentável de CO2 (por exemplo, a captura direta do ar).

Shah também relembra que o custo atual do combustível sintético é mais alto que o dos combustíveis fósseis, mas espera-se que ele seja reduzido com o tempo.

O especialista do Imperial College de Londres destaca que "precisamos reduzir as emissões em todos os setores".

"Alguns setores seguem com mais dificuldade, como a aviação e a propulsão marítima, devido à necessidade de combustíveis com maior quantidade de energia", afirma Shah. "Por isso, é provável que os combustíveis sintéticos sejam fundamentais para satisfazer à demanda de energia desse setor no futuro próximo."

BBC Brasil

Arrecadar menos é "bom" ou "ruim"?




A tributação, sejamos francos, é um desvio compulsório de recursos do setor privado — empresas e cidadãos — para o setor público. 

Por Ubiratan Jorge Iorio (foto)

As ciências sociais — e, em particular, a economia — já eram habitadas, bem antes de Matusalém, por algumas esquisitices fantasiadas de normalidade, miragens disfarçadas de realidade e alucinações dissimuladas de materialidade.

Quem ainda não escutou, viu ou leu, por exemplo, de jornalistas famosos, especialistas vaidosos, empresários manhosos, políticos ardilosos e economistas “esquerdosos”, frases desse tipo: “Essa medida vai ser ótima, porque vai gerar mais arrecadação para o governo”, ou “Essa iniciativa de desoneração fiscal é péssima, porque vai diminuir a receita pública”, ou “É preciso taxar as grandes fortunas”, ou, ainda, “Nossa carga tributária é altamente regressiva”? Afirmativas assim costumam revestir-se de tamanha certeza que soam como obviedades, truísmos, verdades inatacáveis pelos séculos dos séculos. Entretanto, não é assim que o sapo coaxa.

Assistimos a um desses arroubos adolescentes de paixão arrecadadora no início desta semana, quando o governador do Estado mais rico do Brasil, ao declarar que a partir daquela data passaria a viger a alíquota de 18% para o ICMS de bens e serviços relativos a combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo (o Projeto de Lei 211/21, aprovado pelo Congresso, estabelece que o teto é de 17%), acrescentou que a redução do porcentual, com a consequente queda da arrecadação, representaria um “sacrifício” para o povo do seu Estado.

Ora, como assim? Desde quando pagar menos imposto pode ser um sacrifício para qualquer criatura que tenha residência fixa na coluna do débito? Só podem existir, espreitando nas sombras, duas explicações para uma afirmativa tão bizarra: (1ª) uma certeza implícita de que impostos implicam sempre benefícios para todos, ou (2ª) é uma simples provocação a um adversário político, uma vez que a queda do ICMS foi proposta pelo governo federal. É desnecessário dizer que, se a segunda, politicamente, é compreensível, a primeira carece de qualquer fundamento. Com efeito, se pagar menos impostos significasse um sacrifício para aqueles que são taxados, a população inteira do país correria imediatamente para as agências dos Tesouros municipais, estaduais e federais, para entregar todas as suas posses aos guardadores dos assim chamados cofres públicos e em seguida correr para o abraço e gozar a vida. Para quem é obrigado a pagar, a alíquota ideal de qualquer imposto é zero, porque é da essência da ação humana buscar sempre mais conforto e satisfação.

Entretanto, logicamente, o Estado precisa existir e, uma vez que não pode criar recursos do nada, necessita de dinheiro, e para isso dispõe de quatro fontes de financiamento: a tributação, a emissão de moeda, o endividamento interno e o endividamento externo. É óbvio, para quem sabe que os tributos são essenciais para a existência do Estado, que não faz sentido ser “contra” impostos. O que devemos criticar — até mesmo como mecanismo de autodefesa — são os abusos e as tentativas de exigir deles e de sua contrapartida, os gastos governamentais, mais do que se pode e do que se deve esperar em termos de benefícios.

Por que cargas d’água, então, deve ser motivo de festa quando governos nas três esferas arrecadam mais? Por que raios as pessoas devem aplaudir algo que pode não ser usado em seu benefício e que, além disso, pode terminar lhes sendo maléfico? Quem garante que prefeitos não vão utilizar esses recursos adicionais para inaugurar estátuas de parentes defuntos, ou que governadores não vão construir sambódromos, ou que presidentes não vão usá-los para bancar portos em Cuba ou refinarias na Bolívia?

A tributação, sejamos francos, é um desvio compulsório de recursos do setor privado — empresas e cidadãos — para o setor público. É óbvio, então, que, quando o Estado aplica mal esses recursos, a ordem social gerada pela receita tributária é necessariamente injusta e, portanto, os tributos são injustos. Tais considerações, embora pertençam ao campo da filosofia moral, não podem ser deixadas de lado quando o assunto é a economia.

Quando a situação associada a uma dada estrutura tributária é injusta e representa um peso insuportável sobre os ombros dos que são obrigados a sustentá-la, pode-se perfeitamente até aceitar parte daquela afirmativa juvenil que encanta alguns libertários radicais, a de que “imposto é roubo”, modificando-a para “imposto é uma apropriação indevida”. Além disso, é ponto pacífico que a tributação sempre distorce a alocação de recursos da sociedade, tornando-a menos eficiente e interferindo na liberdade de escolha.

Acontece que, embora todas as consequências das intervenções — e, por conseguinte, as da tributação — devam ser levadas em consideração, a análise tributária convencional deixa de considerar que os impostos interferem nos processos de mercado e, portanto, em sua essência — os mecanismos de descoberta. Além disso, ela não costuma dar a devida atenção ao princípio de que existe uma forte correlação temporal entre receitas e gastos públicos: a receita de hoje, fatalmente, é o gasto público de amanhã, ou, como dizia Ronald Reagan, “o imposto gera a sua própria despesa”.

Cidadãos livres x idiotas

Porém, mesmo os economistas liberais — uns mais, outros menos — costumam admitir ações do Estado em atividades como ensino, saúde, segurança, justiça e defesa. Mas como anda a moralidade da carga tributária no Brasil? Não obstante os brasileiros trabalharem cinco meses por ano para honrar as incontáveis obrigações com as três esferas de Fisco, os resultados são péssimos: os índices de desempenho dos nossos estudantes estão no “Z4” da terceira divisão; os da saúde, na UTI ou em enfermarias superlotadas, especialmente por quem não pode arcar com planos privados; os da segurança estão em delegacias, fazendo boletins de ocorrência de assaltos; as decisões da Justiça são uma permanente indeterminação e não raramente inconstitucionais, sem imparcialidade e injustas; e a defesa nacional foi deliberadamente descuidada, até 2018, pelos sucessivos governos de esquerda que se abateram sobre o Brasil. Entretanto, boa parte da arrecadação tributária foi gasta nesses campos, excetuando-se o da defesa.

Impõem-se, então, algumas perguntas tão incômodas quanto importantes: o que os governos vêm fazendo com os nossos impostos, se os professores não ensinam, mas doutrinam; se os hospitais vivem com filas às portas; se os cidadãos têm medo de andar nas ruas, se a Justiça liberta bandidos de todos os tipos e até proíbe a polícia de combatê-los; e se a lei não atende à sua prerrogativa de ser um conjunto de normas de justa conduta respeitado por seu conteúdo moral, impessoal, prospectivo e garantidor de estabilidade jurídica? Para que — criaturas de Deus! — tem servido o Estado, a não ser para extrair dinheiro dos pagadores de tributos? Afinal, somos cidadãos livres que sustentamos o aparato estatal para que ele garanta nossos direitos ou idiotas que pagamos simplesmente para ser extorquidos?

A resposta é bastante óbvia e conduz à urgência de uma reforma tributária profunda. Há décadas que se vem falando nisso, mas pouco ou nada se conseguiu avançar. Até pelo contrário, no entra e sai dos presidentes, desde os anos 1970, a cada quadriênio a carga tributária não faz outro movimento senão o ascendente. Claro, há resistências e elas não são poucas, porém, na verdade, o governo atual é o primeiro que tenta atacar o problema, mas os empecilhos, somados à pandemia, não permitiram mais do que alguns avanços tímidos promovidos pela equipe econômica.

É imperioso que a reforma seja aguda e combinada com uma reestruturação administrativa e com uma forte desregulamentação que lhe deem sustentação ao longo do tempo, para que não seja apenas um simples remendo, um pedaço de tecido novo em uma colcha velha. Para que isso seja possível, no entanto, é preciso que os eleitores coloquem no Congresso deputados e senadores que sejam de fato comprometidos com o futuro, o que confere às eleições do Legislativo a mesma importância do que a do Executivo.

Por que há tantas resistências a uma necessidade reconhecidamente tão urgente? É que há sempre dois grupos de indivíduos na sociedade: os pagadores e os consumidores de impostos, ou seja, os que são taxados e os que se beneficiam da taxação, os que se dedicam em tempo integral ao Estado (políticos, burocratas, etc.) e os grupos ou membros da sociedade que são subsidiados pelo Estado, que o economista norte-americano Murray Rothbard denominava apropriadamente de “consumidores de impostos em tempo parcial”, os famosos “amigos do rei”. É claro que a força política do segundo grupo é muito superior à do primeiro, por estar concentrada em poucas mãos relativamente aos que integram o primeiro grupo, que estão sempre dispersos por sua própria natureza. Então, quando a arrecadação aumenta, os “amigos do rei” sempre saem ganhando em relação aos demais.

Todavia, é preciso reconhecer que, enquanto a reforma tributária profunda não vem, o governo atual é o primeiro, depois de muitos e muitos anos, a ter a convicção e a coragem necessárias para diminuir, mesmo sabedor de que seria preciso ir além, o peso gigantesco dos impostos sobre indivíduos e empresas: são diversas as medidas de destributação adotadas por iniciativa do Ministério da Economia, com vistas principalmente a incentivar uma reindustrialização, que abarcam o IPI, o ICMS e passam pelo imposto de importação de muitos produtos.

É óbvio que são insuficientes quando comparadas à ampla reforma que se faz imprescindível há anos, mas é o que tem sido possível fazer. E é óbvio, também, que têm provocado ira em quem perde arrecadação, o time formado por governadores, prefeitos, seus respectivos secretários de Fazenda e os consumidores de impostos. Mas o fato é que o exemplo tem vindo de cima: a União, mesmo enfrentando o tiroteio da pandemia, da oposição e do consórcio da velha imprensa, conseguiu manter as contas públicas controladas depois do pandemônio de 2020 e com superávit primário, pela primeira vez em muito tempo. Porém, Estados e municípios, infelizmente, recusam-se a cortar despesas. É melhor para prefeitos e governadores culparem o Bozo e tentarem induzir os pagadores de impostos a acreditarem que estão sendo prejudicados por ele.

A aprovação pelo Congresso do teto de 17% para o ICMS sobre combustíveis, seguramente, é para ser festejada, embora, por si só, não seja suficiente para resolver o problema dos preços dos derivados do petróleo, assim como a mudança no cálculo desses preços — defendida por alguns políticos — também não seria.

Embora seja verdade que aumentos na arrecadação sinalizam que “a economia melhorou” (ou “despiorou”, como prefere o consórcio da mídia tradicional), não se pode concluir que serão suficientes para a manutenção do “despioramento”. Portanto, pode não ser motivo de alegria, mas de preocupação. E, por outro lado, também não se pode inferir que quedas na receita tributária vão ser prejudiciais, porque poderão ser mais do que compensadas pela arrecadação acarretada pela ativação da economia decorrente da menor tributação. Nesse caso, pode não ser motivo de preocupação, mas de alegria.

Revista Oeste

PEC é o 'golpe de misericórdia'




Única ‘emergência’ de Planalto, Congresso e Defesa: salvar a reeleição de Bolsonaro

Por Eliane Cantanhêde (foto)

Os adversários e os que têm pavor da reeleição do presidente Jair Bolsonaro, vermelhos, azuis ou roxos, insistem no mesmo erro de 2018: menosprezar suas chances. Basta olhar as fotos, a milícia digital, a omissão da PGR, a ação da AGU, os decretos, as votações do Congresso e a montanha de dinheiro que ele vai torrar (ou está torrando) na compra de votos para concluir que a eleição não está decidida. É temerário contar só com a rejeição, altíssima.

Na previsão palaciana, Bolsonaro ultrapassaria o ex-presidente Lula em junho, julho, mas ele estacionou nas pesquisas e só teve más notícias: expectativa de vitória de Lula em primeiro turno, assassinato de Dom e Bruno, prisão de Milton Ribeiro, CPI do MEC, Petrobras, escândalo da CEF. E a inflação inclemente...

Bateu o desespero e, se Bolsonaro jamais deixou de ser candidato e virou presidente, o Planalto se transformou definitivamente em comitê de campanha, botando para quebrar e com um novo prazo para “virar o jogo”: agosto. A “reunião ministerial” de terça-feira não foi para discutir as mazelas do País, mas um freio de arrumação na campanha.

Toda a estratégia passa pelo governo: caneta, verbas, base no Congresso, aliados no Judiciário, ministros e até os aviões que cruzam os ares com presidente e ministros travestidos de cabos eleitorais. Mas, ao contrário de Pedro Guimarães na CEF e de Milton Ribeiro no MEC, tem de dissimular...

Exceto a derrubada dos vetos a duas leis da Cultura, Bolsonaro só colheu vitórias num Congresso do Centrão e do orçamento secreto: a PEC da reeleição passou no Senado quase por unanimidade, foi mantida intocada na Câmara e aprovada em um minuto (um minuto!), no fim da madrugada, para comprar os votos já em agosto. E quem vai se interessar por CPI do MEC depois das eleições?

O Planalto também madrugou, com o decreto para os postos exibirem os preços dos combustíveis antes e depois da garfada no ICMS dos Estados. Só faltou mandar incluir: votem em Bolsonaro! Ele não jogou fora escrúpulos que nunca teve, mas é chocante ver os três Poderes e a Defesa embolados numa única “emergência” do País: o medo de derrota do presidente.

Depois de explodir teto de gastos, responsabilidade fiscal, órgãos de fiscalização e o Ministério da Economia, a era Bolsonaro recorre ao “estado de emergência” (só até dezembro...) para fazer picadinho da lei eleitoral e do resto dos princípios básicos da economia. A PEC da reeleição tem uma pilha de nomes, mas um leitor, roxo de raiva e pavor, lhe deu um definitivo: “golpe de misericórdia”. Não sobra nada para destruir.

O Estado de São Paulo

STF isolado e ampla adesão à tese golpista




Por Vera Magalhães (foto)

Minha recente viagem a Brasília para a periódica medição de temperatura e conversa olho no olho com autoridades dos três Poderes, sem a mediação do WhatsApp e do telefone, me fez voltar com a constatação de que as teses golpistas de Jair Bolsonaro conseguiram adesão de amplos espectros do governo, para muito além da ponta mais visível dos militares.

O presidente conseguiu incutir em apoiadores na Esplanada dos Ministérios e no Congresso a versão segundo a qual o Supremo Tribunal Federal (STF) o impede de governar ou exorbita de suas atribuições.

Mesmo políticos que publicamente se colocam como opositores do presidente partilham, em privado, essa avaliação a respeito da atuação dos ministros, o que leva a que, hoje, o Judiciário seja uma ilha isolada na Praça dos Três Poderes. E seus integrantes se percebem dessa maneira.

Ministros dizem, em privado, que terão de “escolher as brigas” de agora em diante, numa clara demonstração de que se sentem acuados graças à ininterrupta campanha de difamação promovida pelo presidente da República, que já tem novos capítulos programados para o próximo dia 31 e para o 7 de Setembro, quando o Bicentenário da Independência será transformado em movimento de ostentação militar e pressão sobre as instituições democráticas.

Ministros civis de Bolsonaro repetem sem gaguejar ou colocar sob escrutínio as suspeitas lançadas pelo presidente contra o sistema eletrônico de votações. Endossam a cobrança para que os militares tenham papel na fiscalização da campanha. Dão como certa a ocorrência de tumulto no curso da campanha eleitoral e atribuem a iminência não a Bolsonaro, mas aos ministros do STF que teriam “esticado a corda” com medidas como o inquérito das fake news e a condenação e prisão do deputado Daniel Silveira.

Repetem, com ares de verdade absoluta, aquilo que o bolsonarismo faz chegar à sociedade na forma de rações diárias de posts nos grupos das famílias, nas comunidades do Telegram e no material dos brasis paralelos da blogosfera do YouTube.

O claro intuito intimidatório dessa tempestade narrativa lançada diuturnamente a partir do Palácio do Planalto, com uso de meios oficiais, vem sendo alcançado. A decisão de “escolher brigas” inclui, na visão de ministros do STF, deixar passar a PEC Kamikaze, escandalosamente inconstitucional e atentatória ao regramento eleitoral, uma vez que ela foi apoiada pela maioria esmagadora do Congresso, incluindo a oposição.

Diante da tática da “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, mesmo a última barreira de contenção à depredação da democracia promovida pelo presidente da República — a Corte constitucional — começa a bambear e a se acovardar.

Sinais claros dessa tibieza já vinham da Justiça Eleitoral, que foi aquiescendo, para não entrar na briga, com exigências absurdas dos militares por um protagonismo na fiscalização das eleições que não lhes é facultado pela Constituição.

A cada sinal percebido de sangue na água, os militares se assanharão para avançar sobre o terreno aberto primeiro por Luís Roberto Barroso, depois por Edson Fachin, sempre com o propósito de uma conciliação que, os anos têm mostrado, é impossível com o bolsonarismo, um movimento de natureza antiestablishment.

É extremamente preocupante que ministros com assento em postos-chaves do governo tratem como questão de tempo que haja tumulto no Dia da Independência, depois durante o processo eleitoral e, por fim, após a proclamação do resultado das urnas.

Daí para aquiescer com uma tentativa de ruptura democrática com base nos “mas também” que empregam nas conversas sobre o STF, é um pulo. Eles ainda não percebem, mas estão embarcados no camarote do golpe.

O Globo

No Japão, violência armada é rara e lei de armas é rígida




Ataque a tiros contra ex-primeiro-ministro chocou o país asiático, conhecido por seu controle estrito sobre armas de fogo e que registrou só uma morte por violência armada em 2021. Artefato que matou Abe seria caseiro.

A morte do ex-primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, após ter sido baleado nesta sexta-feira (08/07) durante um evento de campanha para eleições parlamentares, chocou o mundo e o Japão, uma nação onde o controle de armas de fogo é rígido e a violência armada é bastante rara.

Com uma população de 125 milhões, o país asiático registrou apenas dez casos criminais envolvendo armas de fogo em 2021, os quais resultaram em uma morte e quatro feridos, segundo a polícia. Oito desses casos estavam relacionados a gangues.

Em Tóquio, não houve nenhum incidente, ferimentos ou mortes envolvendo armas de fogo durante o mesmo ano, embora 61 armas tenham sido apreendidas na capital japonesa.

Ainda há incertezas sobre a motivação do ataque contra Abe. A emissora NHK noticiou que o suspeito, identificado como Tetsuya Yamagami, de 41 anos, e que foi detido no local do crime, teria dito à polícia que estava insatisfeito com o ex-chefe de governo e queria matá-lo. Segundo a mídia, o homem serviu ao Exército japonês por três anos, até 2005.

Primeiro-ministro mais longevo da história do Japão, Abe foi baleado duas vezes na cidade de Nara, região central do país, enquanto fazia um discurso a favor do atual premiê japonês, Fumio Kishida, favorito nas pesquisas para as eleições parlamentares deste ano.

Segundo a NHK, o suspeito teria usado uma arma artesanal, que aparentava ser uma espingarda de cano duplo improvisada ou caseira – numa forma de burlar os rígidos controles de armas do país.

O especialista N.R. Jenzen-Jones, diretor do Armament Research Services, empresa de pesquisas sobre armas e munições, comparou a provável arma usada no crime com um mosquete da época da Guerra Civil, no qual a pólvora e o propelente são carregados separadamente do projétil.

"A legislação sobre armas de fogo no Japão é muito restritiva, então acho que o que estamos vendo aqui, com o que provavelmente é uma arma de antecarga [na qual o projétil e propelente são carregados pela 'boca' do cano da arma], não é apenas uma tentativa de burlar o controle de armas de fogo, mas também o controle estrito de munição no Japão'', disse.

Embora a maioria das universidades japonesas tenham clubes de tiros e a polícia seja armada, a maioria dos cidadãos do país passa a vida inteira sem manusear ou mesmo ver uma arma de fogo.

Esfaqueamentos são mais comuns como causa de homicídios no país. O debate sobre o direito de portar uma arma, frequente em países como os Estados Unidos e que se tornou mais presente no Brasil sob o governo Bolsonaro, é uma questão distante no Japão, e tem sido assim há décadas.

Violência armada e política são raras

"O povo japonês está em estado de choque", afirmou Shiro Kawamoto, professor da Faculdade de Gestão de Riscos da Universidade Nihon em Tóquio.

O evento de campanha onde o ataque ocorreu atraiu uma enorme multidão, o que tornou a segurança um desafio, segundo o especialista. "Isso serve como um alerta de que a violência armada pode ocorrer no Japão, e a segurança para proteger os políticos japoneses precisa ser reexaminada", alertou. "Pressupor que esse tipo de ataque nunca vai acontecer seria um grande erro."

Já há especulações de que a equipe de segurança de Abe deverá enfrentar sérios questionamentos. Mas ataques como esses são extraordinários no Japão, o que faz com que um esquema leve de segurança seja a norma em eventos desse tipo, mesmo envolvendo ex-primeiros-ministros.

A última vez que um caso de violência armada de alto nível ocorreu no país foi em 2019, quando um ex-membro de gangue foi baleado em uma casa de karaokê em Tóquio.

Ataques contra políticos também são incomuns. Houve apenas alguns poucos nos últimos 50 anos, sendo o mais notável em 2007, quando o prefeito de Nagasaki foi morto a tiros por um gângster – um incidente que resultou em um endurecimento ainda maior do controle de armas.

A última vez que um ex-primeiro-ministro japonês foi assassinado foi em 1936, durante o período militarista pré-guerra do Japão, sendo um de uma série de assassinatos semelhantes.

Caminho árduo até obter uma arma

Segundo a lei japonesa, a posse de armas de fogo, bem como de certos tipos de facas e outras armas, como espingaradas, é ilegal sem uma licença especial. Importá-las também é ilegal.

"Ninguém deve possuir uma arma de fogo ou armas de fogo ou uma espada ou espadas", diz uma lei do pós-guerra datada de 1958.

Os japoneses que querem adquirir uma arma de fogo precisam passar por um processo rígido que envolve 13 passos. Primeiro, é preciso aderir a um clube de caça ou tiro, realizar um curso de armas de fogo e passar por um exame escrito, antes de obter uma declaração médica de que se está mentalmente apto e não tem histórico de dependência de drogas.

Os requerentes precisam então se inscrever em um curso de um dia inteiro sobre como disparar uma arma de fogo e armazená-la com segurança.

Em seguida, eles são entrevistados pela polícia para esclarecer por que querem uma arma, e submetidos a uma análise completa de antecedentes que envolve entrevistas com membros de sua família, checagens sobre o relacionamento com seus vizinhos, histórico de emprego e situação financeira.

Se forem aprovados em todas essas etapas, os requerentes podem solicitar uma licença e obter um certificado de um revendedor sobre o tipo de arma que desejam adquirir. Eles precisam então comprar um cofre para a arma e para munição, que deve ser inspecionado pela polícia. Os agentes fazem então outra verificação de antecedentes.

Deutsche Welle

Ascensão e queda do neoliberalismo




Uma evidência da decadência da ordem neoliberal é o crescente apoio à redução da globalização

Por Armando Castelar Pinheiro* (foto)

Concluí a leitura do novo livro de Gary Gerstle, The Rise and Fall of the Neoliberal Order (Oxford University Press, 2022). O livro é interessante, traçando um histórico das ideologias que comandaram as políticas públicas, em especial a econômica, nas últimas oito décadas.

A história começa com o New Deal, as políticas orquestradas pelo governo democrata de Franklin Delano Roosevelt (FDR), nos EUA, em resposta à Grande Depressão dos anos 1920-30. As políticas de estímulo fiscal inspiradas em J. M. Keynes são o elemento mais conhecido do New Deal, mas não o único. Houve também o surgimento de inúmeras agências reguladoras, do sistema de seguridade social e um aumento da intervenção do Estado na economia.

O adjetivo liberal, como as políticas eram chamadas, refletia sua preocupação com o social, coordenada pelo Estado. Gerstle explora, em especial, o papel dos sindicatos, bastante fortalecidos por FDR, o que permitiu aos trabalhadores pressionarem por maiores salários e melhores condições de trabalho.

O autor atribui a tolerância dos empresários a esse ganho de poder econômico e político dos sindicatos ao papel que essas políticas exerceram em reduzir a atração do comunismo soviético, visto como o grande inimigo que unia os americanos de diferentes inclinações ideológicas. Esse raciocínio foi tão influente, que até presidentes republicanos como Eisenhower e Nixon ajudaram a fortalecer essas políticas nos anos 1950 e 1970.

Nem todo mundo, porém, as aprovava, e grupos diversos se formavam, na Europa e nos EUA, para combatê-las. Mas suas críticas não tinham influência alguma. Isso começa a mudar nos anos 1970. Cresceu nessa época a visão de que a regulação estatal era capturada pelas grandes empresas. Era preciso acabar com isso, para defender os consumidores, que começavam a ganhar precedência sobre os trabalhadores na política econômica. Ocorre então um processo de desregulamentação que fechou agências e liberou setores para operar sob razoável liberdade, como os de transporte aeroviário, ferroviário e rodoviário de carga.

Só nos anos 1980, com Ronald Reagan é que o neoliberalismo em si entrou com tudo em cena. Agora, além de desregulamentar, cortou-se impostos, para reduzir o tamanho do Estado, enfraqueceram-se os sindicatos, e se influiu no judiciário, indicando juízes alinhados com essas ideias e reinterpretando a jurisprudência em que se apoiavam as políticas do New Deal. Um elemento importante é que nessa época a União Soviética estava enfraquecida e deixava de ser uma preocupação tão grande para políticos e empresários mais de direita. Com isso, deixava de haver interesse em sindicatos fortes. E, de fato, a proporção de trabalhadores sindicalizados despenca nesse período.

Bill Clinton e George Bush II foram grandes apoiadores do neoliberalismo, promovendo a desregulamentação, controle dos gastos públicos (Clinton) e corte de impostos (Bush). Clinton associou a ideia de mercado livre ao setor de tecnologia de informação, que começava a crescer com rapidez nesse período. Clinton e Bush também adotaram políticas de promoção da diversidade, em especial pelo ângulo racial. Se os mercados deviam ser livres, as pessoas também.

Gerstle aponta duas razões principais para a queda do neoliberalismo nos anos seguintes. Uma, a decadência de grandes centros industriais, que perderam competitividade frente aos fabricantes estrangeiros - japoneses, europeus etc. Isso gerou desemprego, aumento de alcoolismo e suicídios, queda da expectativa de vida e piora da distribuição de renda. Isso afetou mais homens brancos, enquanto os homens negros sofriam mais com o aumento das prisões como forma de combater a criminalidade. Segundo o autor, os EUA são o país com maior população encarcerada do mundo, em termos absolutos e relativos.

Outra, para compensar a estagnação da renda, Clinton e Bush estimularam o consumo e a aquisição de moradias via o crédito - por exemplo, desregulando e expandindo a atuação de estatais como Fannie Mae e Freddie Mac. Isso acabou gerando a Grande Crise Financeira de 2008-09, com a explosão do desemprego e a perda de credibilidade de políticas de liberação de mercados.

Gerstle aponta como evidência da decadência da ordem neoliberal a eleição de Trump e a popularidade de políticos como Bernie Sanders e "socialistas". Outro sinal seria o crescente apoio à redução da globalização. Um processo que começou com a guerra comercial EUA-China e deve se fortalecer muito nos próximos anos. O autor explora pouco esse tema, mas a guerra Rússia-Ucrânia está sendo um grande catalisador desse processo.

A principal lacuna do livro, na minha visão, é ser muito focado nos EUA. Talvez fosse inevitável: o livro já tem 422 páginas, se tentasse cobrir mais países, acabaria impossível de ler. Mas, pelo menos no caso do Brasil, é fácil enxergar a mesma evolução: políticas como as do New Deal começando com Vargas e indo até os militares; o neoliberalismo entrando timidamente nos anos 1980 e com bastante força nos anos 1990, chegando mesmo a influenciar as políticas do PT sob Lula, voltando com Temer e presente em partes do governo Bolsonaro. Na verdade, impressiona reconhecer o quanto e quão bem essas ideias viajam.

*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre 
 
Valor Econômico

Choque de capitalismo




O melhor programa para erradicação da pobreza ainda é o emprego. 

Por Salim Mattar (foto)

De acordo com estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV), 2021 foi o ano de máxima pobreza, com quase 63 milhões de brasileiros, que representam cerca de 20% da população, possuindo renda domiciliar per capita de até R$ 497 mensais. Isso é uma demonstração inequívoca da pobreza com a qual convivemos e da má distribuição de renda. Os governos têm falhado nesse quesito, pois os nossos políticos estão mais interessados em resolver os próprios problemas do que na efetiva erradicação da pobreza. Os programas de governo são elaborados com forte característica política, resultando sempre em baixíssima efetividade e comprovando que, no Brasil e em outros países, os programas sociais não têm sido a solução para retirar pessoas da pobreza e da extrema pobreza. O melhor programa para a erradicação da pobreza ainda é o emprego!

Tendo sido o país governado pelos sociais-democratas praticamente desde 1985, o capitalismo aqui foi domado, tornou-se quase subserviente e dependente do Estado, acanhado em sua essência e com os mercados sofrendo forte interferência dos governos, ainda assim, sobreviveu. Falou-se no passado que o Brasil necessitaria de um choque de capitalismo. Pura verdade, mas ficou na retórica.

De fato, nos dias de hoje, é válido falar em um choque de capitalismo. Mesmo com os avanços recentes que estimulam o funcionamento do mercado, como o Novo Marco do Saneamento, das Ferrovias, Cambial, do Gás, das Startups, da Cabotagem e outros mais, ainda foram insuficientes para libertar toda a potencialidade do mercado. A Lei da Liberdade Econômica, que foi um avanço institucional para o mercado, facilitando o ingresso de novos empreendedores na competição por produtos e serviços, foi implementada em apenas 475 dos 5.570 municípios. Cada novo empreendedor e cada pequena e microempresa são sementes de capitalismo que se transformarão, muitas delas, em grandes organizações.

De acordo com o relatório de 2021 do Economic Freedom of the World, o Brasil está na 109ª posição, entre 162 países, com Hong Kong e Cingapura no primeiro e segundo lugar. No Índice de Liberdade Econômica de 2021, elaborado pela Heritage Foundation, o país figura no 143º lugar, entre 178 países. Podemos concluir que o país está longe de ser um ambiente propício ao pleno funcionamento do capitalismo, que requer livre e competitivo mercado.

O mercado privado financeiro compete com cinco bancos estatais: Banco da Amazônia (Basa), Banco do Nordeste (BNB), Caixa, Banco do Brasil e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Indefensável o Estado ter presença no setor financeiro, inibindo, de alguma forma, o sistema privado. Pior, concedendo crédito subsidiado, assumindo riscos com influência política, ineficiente administração, corrupção e conflituosa relação com o mercado e os governos. Em algum momento, a sociedade brasileira vai ter de discutir esse assunto, pois a tendência natural seria o Estado sair totalmente do mercado financeiro e, sem querer polemizar, se discutir a necessidade de manter um banco como o BNDES, que se tornou uma instituição própria e corporativista se rebelando contra o seu controlador.

Nesse choque de capitalismo, as agências reguladoras deverão ser resgatadas para se tornar de fato independentes, recebendo investimentos para a sua estrutura, profissionalismo nas indicações políticas e melhor recompensa remuneratória. Algumas de nossas agências, mesmo assim, ainda são reconhecidas internacionalmente por sua eficiência e transparente atitude regulatória.

Um verdadeiro choque de capitalismo seria privatizar tudo. Vender todas as estatais, suas subsidiárias, coligadas e investidas, tirando o Estado definitivamente do mundo dos negócios. Isso colocaria o país num círculo virtuoso, oxigenaria a iniciativa privada, proporcionaria a expansão de negócios com melhor administração, aliviaria a máquina pública, que poderia ser reduzida de tamanho, seriam eliminados os roubos, a malversação de dinheiro e a corrupção e não haveria mais prejuízos, que têm sido suportados pelos pagadores de impostos.

Como o melhor programa para erradicar a pobreza é o emprego, precisamos de um choque de capitalismo para gerar emprego e renda, e, assim, reduzir substancialmente a pobreza e eliminar de vez a extrema pobreza.

É simples assim!

Revista Oeste

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