Certificado Lei geral de proteção de dados

Certificado Lei geral de proteção de dados
Certificado Lei geral de proteção de dados

sábado, julho 09, 2022

Como emendas parlamentares afetam o gasto público no Brasil




Poder de deputados e senadores para destinar verbas vem crescendo desde 2015 e já responde por 24% da despesa federal não obrigatória. Debate sobre o tema foi reaceso com revelação do chamado Orçamento secreto.

Por Bruno Lupion

A Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023, que será votada nos próximos dias pelo Congresso, pode aprofundar a tendência atual de transferir do governo federal para deputados e senadores o poder de decidir onde devem ser gastas verbas públicas, por meio de emendas parlamentares.

Essa trajetória foi iniciada em 2015, durante o confronto entre a então presidente, Dilma Rousseff, e o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e vem se aprofundando. Neste ano, o valor das emendas parlamentares no Orçamento representa 24% das despesas discricionárias (não obrigatórias) do governo federal, contra 4,3% de cinco anos antes, segundo cálculo do economista Marcos Mendes, do Insper. Comparadas ao total de investimentos federais, as emendas respondem por cerca de metade do valor.

A transferência de poder do governo federal para os congressistas tem implicações que vão além do destino das verbas. Repercute na qualidade e na fiscalização do gasto, na capacidade de o país definir prioridades estratégicas e na governabilidade do presidente – que segue sendo politicamente responsável pelo resultado das políticas públicas, mas vê sua margem para executá-las cada vez mais reduzida, segundo especialistas consultados pela DW.

As emendas parlamentares são alterações que os congressistas fazem no Orçamento para destinar verbas a uma determinada localidade, em geral às suas bases eleitorais. Novas regras aumentaram o peso das emendas no Orçamento, e a depender dos líderes do Congresso, a LDO de 2023 ampliará ainda mais o controle dos congressistas sobre o destino de recursos federais. A bola da vez é tornar obrigatória a execução das chamadas emendas de relator (definidas pelo congressista escolhido como relator-geral do Orçamento).

Os Estados Unidos têm um instrumento semelhante às emendas parlamentares, conhecidas lá como pork barrel. Mas o impacto é muito menor se comparado ao Brasil. Em 2021, as despesas com esse tipo de emenda somaram 17 bilhões de dólares, ou 1,1% da despesa discricionária primária total do governo americano, segundo cálculo de Mendes.

Como as emendas funcionam

Há quatro tipos de emendas parlamentares. As individuais (indicadas por um congressista específico), de bancada (atendem às bancadas de cada unidade da Federação), de comissão (solicitadas por esses órgãos colegiados do Congresso) e de relator.

Até o primeiro governo Dilma, as emendas individuais eram incluídas pelos congressistas no Orçamento, mas a liberação da verba dependia do aval do Palácio do Planalto. Como resultado, nem todas eram executadas, e o presidente de ocasião as usava para negociar o apoio de parlamentares ao governo.

Em 2015, durante o conflito entre Dilma e Cunha, que liderava o Centrão, o Congresso aprovou uma emenda constitucional que tornou as emendas parlamentares impositivas, ou seja, de execução obrigatória. Em 2022, cada deputado ou senador teve direito de apresentar até 25 emendas, no valor total de R$ 17,6 milhões. Somando todos os congressistas, são R$ 10,5 bilhões.

Em 2019, outra emenda constitucional aprovada pelo Congresso fez com que as emendas de bancada também se tornassem impositivas. Para 2022, estavam reservados no total R$ 7 bilhões para as emendas de bancada – os congressistas aceitaram reduzir para R$ 5,7 bilhões, em troca de usar a sobra de R$ 1,3 bilhão no fundão eleitoral.

Também a partir de 2019, a verba das emendas parlamentares pôde começar a ser direcionada diretamente para o caixa de municípios ou de estados, sem vinculação a um projeto específico. Essa prática foi apelidada de "emenda Pix". Os recursos podem ser usados inclusive, por exemplo, para contratar shows de músicos, e a fiscalização federal sobre o destino da verba é dificultada.

A novidade das emendas de relator

A invenção mais recente para ampliar o poder dos congressistas sobre as verbas federais foram as emendas de relator, que são incluídas pelo relator-geral do Orçamento. Essa modalidade esteve por trás do escândalo dos Anões do Orçamento, revelado em 1993. Para evitar novos esquema do tipo, o Congresso modificou as regras na década de 1990, e as emendas de relator passaram a ser usadas apenas para pequenas correções na peça orçamentária.

Isso mudou em 2020, no segundo ano do governo Jair Bolsonaro, quando uma nova regra autorizou que as emendas de relator, agora sob o código RP-9, pudessem ser usadas para incluir altas somas no Orçamento, em sua maioria para beneficiar congressistas alinhados ao Planalto.

Como as emendas individuais já eram impositivas, as emendas de relator viraram uma nova forma de o governo – em coordenação com o Centrão – distribuir recursos para quem o apoiasse, mas de forma muito menos transparente, pois essas emendas não incluíam o nome do congressista responsável pelo pedido nem eram divulgadas de modo sistematizado.

Após uma série de reportagens sobre o chamado Orçamento secreto publicadas pela imprensa brasileira em 2021, inicialmente pelo jornal O Estado de S. Paulo, o mecanismo foi questionado junto ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal de Contas da União.

No final do ano, uma regra passou a exigir a indicação do nome da pessoa interessada na emenda. Mas, além do nome do congressista, é admitido também um "usuário externo", ou seja, outra pessoa física interessada, o que esconde o padrinho político. Em 2022, essa modalidade responde, até o momento, por um terço do total das emendas de relator negociadas, segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo.

Em 2022, o Orçamento prevê R$ 16,5 bilhões para emendas de relator. Sua liberação depende do aval do Planalto, que usa o instrumento para obter apoio, como por exemplo para a aprovação da PEC que amplia benefícios sociais e estabelece o estado de emergência no país às vésperas da eleição.

'O presidente da Câmara, Arthur Lira, foi um dos principais articuladores da ampliação das emendas de relator'

A comissão mista de Orçamento incluiu no projeto de LDO de 2023 uma regra que torna as emendas de relator também de execução obrigatória a partir do ano que vem, quando a previsão é de R$ 19 bilhões para essa rubrica. É esse texto que será votado pelo Congresso nos próximos dias. A proposta foi criticada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pré-candidato ao Planalto, e deputados da oposição ajuizaram um mandado de segurança no Supremo contra a iniciativa.

Quais são os problemas dessa tendência

Os congressistas que defendem a ampliação das emendas argumentam que se trata de um instrumento legítimo para atender às necessidades da população, como, por exemplo, construir uma ponte ou comprar ambulâncias e tratores.

Alguns deputados e senadores também dizem conhecer melhor as necessidades do povo do que o governo, pois têm contato frequente com suas bases. É o que afirmou o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em maio: "O Congresso tem 513 deputados e 81 senadores que conhecem mais o Brasil do que cada ministro indicado no governo do PT ou reeleito do presidente Bolsonaro."

Esse raciocínio, porém, tem alguns problemas, segundo Mendes, do Insper. Ele lembra que a federação brasileira distribui competências para cada um dos entes – municípios, estados e governo federal. E já existe um sistema de transferência obrigatória de recursos federais para prefeituras e governos estaduais, além da capacidade de cada um deles arrecadar tributos – o ICMS, no caso dos estados, e o IPTU, no casos dos municípios, por exemplo.

"O que se está fazendo [com as emendas] é tirar o dinheiro do governo federal que iria para financiar políticas federais", diz Mendes.

O cientista político Fernando Meireles, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), reconhece que muitos municípios brasileiros estão em situação fiscal difícil. Contudo, avalia que o aumento do peso das emendas parlamentares não os fortalece, e sim aumenta sua dependência dos congressistas.

"Em uma situação fiscal complicada, como a que a gente vive, os municípios estão sem ter muito como investir para melhorar sua infraestrutura urbana. Mas esse processo de fortalecimento do Congresso beneficia os municípios? Na prática, não. Não são todos os municípios que se beneficiam disso, e você não sabe se há municípios que precisariam de mais investimentos mas não recebem porque não estão alinhados a nenhum parlamentar", afirma.

Ele diz que ajustes no pacto federativo deveriam ser feitos de outra forma, "mais estrutural, sobre distribuição de tributos e arrecadação". O maior peso das emendas, afirma, "fortalece os parlamentares no relacionamento deles com os prefeitos que porventura serão beneficiados, mas não serão todos".

Qualidade do gasto público

Outro problema dessa tendência, afirma Mendes, é a qualidade do gasto público, já que as emendas são, por natureza, fragmentadas, "muitas vezes para atender um fornecedor do parlamentar", e destinadas a investimentos que não têm grande impacto agregado no longo prazo.

"Mais da metade do investimento federal se dá hoje por meio de emendas, e o pouco dinheiro que você poderia usar para um ou dois projetos de maior impacto está sendo usado para asfaltar rua, construir muro de arrimo", diz.

As emendas Pix, afirma, são especialmente problemáticas, pois são de difícil fiscalização e acabam virando um instrumento para "personalizar ainda mais a política", já que muitos congressistas têm parentes que são prefeitos e acabam beneficiados.

Meireles, do Cebrap, relata que, até o primeiro governo Dilma, o Executivo tinha um "papel coordenador" sobre os gastos via emendas, e podia priorizar áreas e programas. "Existia uma racionalidade no gasto público, estudos anteriores que embasavam a formulação das políticas [...] Agora o parlamentar pode mandar diretamente [para o município], sem passar por convênio ou indicar área de gasto, pode simplesmente mandar um cheque em branco."

Ele diz que os congressistas têm alguma razão ao dizer que o sistema anterior para a liberação de emendas era muito burocrático, mas a solução encontrada "torna a distribuição do gasto completamente caótica, cada um manda para onde quer sem pensar no conjunto da população brasileira".

Governabilidade do presidente

Outro aspecto problemático do aumento do peso das emendas é o impacto na governabilidade do país. Mendes afirma que, no desenho institucional brasileiro, o Executivo é responsável pelos resultados das políticas públicas, mas os instrumentos para executá-las estão migrando para o Legislativo, "que decide sobre os gastos mas tem pouca responsabilidade sobre as consequências".

Do ponto de vista dos congressistas, contudo, os incentivos atuais são para destinar ainda mais verbas, pois isso os fortalece na relação com suas bases e deixa prefeitos locais dependentes de sua atuação em Brasília. "Isso leva a mais instabilidade, pois o equilíbrio político que a gente construiu é muito tênue."

Meireles, do Cebrap, avalia que a ampliação das emendas de relator ocorreu no governo Bolsonaro porque ele acabou "virando refém do Centrão", e isso se tornou um último recurso para que o presidente conseguisse manter o apoio desse grupo político. "Os próximos governos terão muita dificuldade de lidar com isso, porque boa parte dessas mudanças foram constitucionalizadas, e é difícil aprovar outra PEC para retirar uma mudança que foi feita", diz.

Deutsche Welle

Eichmann e o livre-arbítrio voltado para a maldade




A história não está imune à repetição. Se as experiências políticas de morte violenta, de livre-arbítrio voltado para a maldade, não forem pensadas e conhecidas, a humanidade pode delas novamente tornar-se refém. 

Por Denis Rosenfield *

Capturado na Argentina pelo Mossad israelense, o nazista Adolf Eichmann foi julgado por um tribunal em Jerusalém, em 1961, e condenado à morte por enforcamento, no ano seguinte — a história do seu julgamento foi tema de um livro clássico da pensadora alemã Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, no qual ela fala sobre a “banalidade do mal”. Seis décadas depois, seu nome ainda desperta reflexões. Seria ele um personagem banal, mero elo de uma cadeia produtiva da morte que o ultrapassava? Ou era ele uma pessoa plenamente consciente do que fazia, um criminoso de firmes convicções ideológicas, para quem matar judeus, homossexuais, ciganos e Testemunhas de Jeová fazia parte de sua missão? Era ele meramente passivo ao obedecer ordens ou era um membro ativo do Partido Nazista, um dos artífices do extermínio coletivo, da Solução Final?

A recente divulgação de uma série de entrevistas gravadas quando Eichmann vivia escondido na Argentina permite eliminar quaisquer dúvidas quanto às suas convicções nazistas. Os áudios, denominados Confissões do Diabo: as Gravações Perdidas de Eichmann, lançam uma luz aterradora sobre as “façanhas” deste agente da maldade.

Em um deles, Eichmann esmaga uma mosca e fala da “natureza judaica” do inseto. Ele também afirma que não dava a mínima se os judeus enviados aos campos de concentração morriam ou não. “Se tivéssemos matado 10,3 milhões de judeus, eu diria com satisfação: Muito bem, destruímos um inimigo. Deste modo, teríamos cumprido nossa missão”, diz o nazista, em uma das gravações.

Tais frases perturbam a nossa normalidade, não afeita a conceber tal tipo de anormalidade. Contudo, não se trata de uma anormalidade qualquer, uma espécie de ponto fora da curva, mas um projeto de poder voltado a instaurar uma outra ordem de normalidade, prevista para durar décadas, não fosse a derrota militar nazista pelas tropas aliadas. Ou seja, estamos diante de um tipo de regime político cujo traço essencial é a destruição por morte violenta de todos aqueles que os seus líderes consideram como inimigos. A denominação de “inimigo”, por sua vez, é ela mesma ficcional, pois dependente da intenção política daqueles que assim agem, não representando necessariamente um inimigo real. Os judeus representavam menos de 1% da população da Alemanha, desarmados, e, no entanto, foram “vistos” como instrumentos que iriam destruir a própria Alemanha e a “superior civilização racial ariana”.

A questão reside, então, no tipo de maldade representada por Eichmann e, por extensão, por outros personagens como Adolf Hitler e Heinrich Himmler, comandante militar da SS, a polícia de Estado. Seus atos não se caracterizam apenas como uma transgressão do bem, seja sob sua forma moral ou religiosa, mas por serem voltados para o mal enquanto mal. Isto é, trata-se da produção intencional, consciente, da maldade, independentemente de qualquer valor, regra ou padrão positivo. Há aqui uma reviravolta no que tange ao comportamento humano e aos seus princípios, a tudo aquilo que se considerava até então como humanidade.

O padrão seria, assim, a maldade enquanto tal, o que implicava a criação de uma nova mentalidade, de um “novo homem”, que não sentisse nenhuma espécie de arrependimento ao executar formas extremas de violência e crueldade. Himmler, em particular, em seus discursos aos membros da SS, enfatizava que deveriam pautar-se pelo mal, matando, nos dizeres de Eichmann, judeus como se mata insetos. Não haveria mais “transgressão”, mas afirmação própria de “valores” mais elevados, os da morte violenta e da maldade.

Eichmann representa precisamente este outro homem nazista. Os áudios foram entrevistas concedidas por ele a um jornalista nazista holandês, Willen Sassen, antigo SS, com o objetivo de posterior publicação de um livro após a sua morte. O horror deveria ser mais ainda exibido, os feitos de indivíduos “superiores” que exterminavam homens, mulheres, crianças, bebês e idosos pelo bel prazer de sua destruição.

Os exemplos são abundantes, os mais destacados sendo os do tipo de morte infligida a bebês e crianças, que, sob o olhar de mães impotentes, tinham de suportar a visão dos seus filhos sendo atirados contra os muros ou sendo objetos de tiro ao alvo. Depois, o carrasco podia ser simplesmente “normal”, “banal”, ao escrever carinhosamente para suas mulheres e seus filhos. A mulher de Himmler, Marga, ao visitar um instituto de Botânica, no campo de concentração de Dachau, chegou a declarar que esse lugar era um “jardim encantado”.

No que diz respeito à banalidade de Eichmann, o processo no tribunal revela um homem melífluo, esquivo, afeito ao uso de duplicidades e ambiguidades, senhor de si, controlando perfeitamente o que diz, sempre se escudando em ser uma pobre vítima de uma máquina muito maior do que ele. Omite, intencionalmente, sua responsabilidade de uma forma calculada e deliberada. Hannah Arendt, que esteve presente ao julgamento, inadvertidamente foi capturada por esta performance teatral, não tendo o cuidado de perscrutar para além das aparências. Foi com base nas audiências que ela cunhou o conceito de banalidade do mal. Segundo Hannah, a massificação da sociedade teria criado uma multidão incapaz de fazer julgamentos morais. Burocratas como Eichmann, portanto, cumpririam as ordens que receberam sem maiores questionamentos.

Vladimir Jankélevitch, filósofo francês, assinala a propósito que, olhado de perto, “o carrasco é bem mais simpático e o sadismo não se lê sempre na face de um sádico”. Não haveria, portanto, por que se surpreender com a banalidade de personagens como Eichmann e Himmler. Hannah Arendt foi incapaz de ver este “outro da maldade”, conformando-se com o desempenho de um homem moralmente mau, apresentando-se como do bem, mera vítima a cumprir ordens. Terminou fazendo parte desse teatro da maldade.

Eichmannn, em seu julgamento em Israel, em 1961, quando confrontado a declarações suas, manuscritas, apresentadas pelo procurador-geral Gideon Hausner, a propósito de um fragmento desses áudios agora tornados públicos, procura esquivar-se, dizendo simplesmente que teria bebido demais. E houve quem acreditasse que se tratava apenas de uma bebedeira, quando lá se jacta de todo o seu poder, assume suas responsabilidades e diz que teria gostado de ir além, assassinando mais de 10 milhões de judeus, pois assim teria cumprido ainda melhor a sua missão. Milhões de judeus deveriam ser mortos, sim, porque eram o “inimigo” a ser destruído. Estava perfeitamente imbuído de seu imenso prestígio.

Nos áudios, assim como em outros testemunhos da época, inclusive de nazistas colegas seus, ele aparece como um personagem fanático, cioso de seus deveres, agilizando-se em suas matanças, indo mesmo além das ordens recebidas, como na organização apressada de envio de judeus húngaros para Auschwitz, aproveitando-se da queda de um governo que até então os protegia. O que contava era assassinar o máximo de judeus, ciganos, homossexuais e Testemunhas de Jeová, no menor espaço de tempo.

Eichmann era particularmente industrioso para alcançar seus objetivos. Contudo, quando confrontado com falas suas, procurava apresentar-se como normal, citando mesmo a filosofia moral de Immanuel Kant, eximindo-se de qualquer responsabilidade, como foi igualmente o caso de suas declarações em um interrogatório conduzido pelo Comissário Less. Para ele, havia sobretudo o comprometimento com sua “missão”, representante que acreditava ser de uma “nova in-humanidade” arquitetada por Hitler e Himmler. Interrogado, pretende ser inclusive um “historiador”, citando um livro de Léon Poliakov, Breviário do Ódio, como se não fosse ele um ator político de uma das mais terríveis experiências da humanidade. Hannah Arendt simplesmente caiu em sua armadilha.

Para além de seu valor histórico, esses áudios nos colocam diante de questões centrais relativas à condição humana e a experiências históricas que podem ser repetidas, tudo dependendo de quem as confronte. Sem uma consciência de resistência, o caminho pode abrir-se a essas formas da maldade. Há, sim, atos livres que se voltam para a maldade, para sua implementação e realização. Pense-se, ainda, no extermínio de metade da população cambojana pelos comunistas de Pol Pot. Eles tinham estudado marxismo-leninismo na França e se apresentavam sob o manto do bem, para encobrir sua essência terrível. Pense-se igualmente no genocídio dos ucranianos, na década de 1930, produzido pelos stalinistas que almejavam destruir os camponeses deste país pela fome. Os relatos são simplesmente horrorosos. Também os carrascos se diziam portadores do bem na luta contra os “kulaks”, outra forma arbitrária de denominação do que tomavam como inimigo a ser destruído.

A história não está imune à repetição. Se as experiências políticas de morte violenta, de livre-arbítrio voltado para a maldade, não forem pensadas e conhecidas, a humanidade pode delas novamente tornar-se refém. Nesse sentido, os áudios de Eichmann são uma importante contribuição para todos aqueles que almejam uma sociedade melhor, ciente dos perigos que a espreitam.

*Denis Lerrer Rosenfield é professor de filosofia e autor do livro Jerusalém, Atenas e Auschwitz: Pensar a existência do mal (Topbooks)

Revista Crusoé

Centrão de olho no circuito Elizabeth Arden




Por muito pouco, o ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre não aprovou uma emenda constitucional para que senadores e deputados pudessem ocupar o posto de embaixador sem abrir mão do mandato

Por Luiz Carlos Azedo (foto)

Florence Nightingale Graham nasceu no último dia de 1881, em Woodbridge, no Canadá, sendo criada pelo pai e pelos irmãos após a morte da mãe, quando tinha 6 anos. Enfermeira de formação, começou a produzir cremes para tratamento de queimaduras e logo transformou sua cozinha num laboratório, onde passou a criar hidratantes e cremes nutritivos, em busca da pele perfeita. Mudou-se aos 30 anos para Nova York, casou-se com um químico e, em 1910, abriu sua primeira loja na Quinta Avenida. Dez anos depois, produzia uma linha de mais de 100 produtos, mudou seu nome para Elizabeth Arden, inspirada num poema de Alfred Tennyson, e se tornou a maior produtora de cosméticos do mundo.

No Rio de Janeiro, o Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores de 1899 a 1970, graças ao Barão do Rio Branco, mais ou menos nesse período, já abrigava um corpo diplomático respeitado internacionalmente, cuja formação começou no Império e que fora educado para defender os interesses do Estado brasileiro. Após a Segunda Guerra Mundial, com a criação da Organização das Nações Unidas, as embaixadas de Nova York, Londres e Paris passaram a ser os postos diplomáticos mais cobiçados.

Nas rodas de conversa do velho Itamaraty da Rua Larga, essas embaixadas ganharam o apelido de Circuito Elizabeth Arden, porque as sacolas e embalagens dos produtos da marca famosa vinham sempre com os nomes dessas três cidades. A propósito, Florence também foi hábil diplomata, tendo recebido a Legião de Honra do Governo da França. Na Segunda Guerra Mundial, criou o batom vermelho Montezuma Red, para dar mais feminilidade aos uniformes das mulheres que haviam se incorporado às forças armadas dos Aliados.

A turma do Centrão sempre gostou de comprar produtos de grife, durante as missões parlamentares no exterior, mas agora está de olho mesmo não é nos produtos de beleza, lenços e gravatas, mas no Circuito Elizabeth Arden, que não se restringe mais às três cidades famosas. Washington, Buenos Aires, Roma, Lisboa, Berlim, Genebra, Moscou, Tóquio e Pequim, entre outras embaixadas, são os postos mais importantes para a política externa brasileira.

Nesta semana, por muito pouco, o ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) não aprovou uma emenda constitucional para que senadores e deputados pudessem ocupar o posto de embaixador sem ter de abrir mão do mandato. A Constituição permite que o presidente da República nomeie para o cargo de embaixador qualquer cidadão de reputação ilibada, não precisa ser um diplomata, mas impede que os políticos se licenciem do cargo para ocupar esses postos sem perder o mandato.

Alcolumbre não conseguiu seu objetivo porque houve forte reação dos senadores mais experientes da Casa e do corpo diplomático, principalmente dos embaixadores. O chanceler Carlos França, porém, reagiu de forma tímida. Depois de muita pressão, emitiu uma nota na qual o Ministério das Relações Exteriores afirma que a emenda viola cláusula pétrea da separação de Poderes e a competência privativa do presidente da República: “Todo embaixador deve obediência ao presidente da República, por intermédio de seu principal assessor de política externa, o ministro das Relações Exteriores. Há exemplos de eminentes ex-parlamentares, indicados pelo presidente e aprovados pelo Senado, que desempenharam com brilho a responsabilidade de embaixador. Nesse caso, o ex-parlamentar é servidor do Poder Executivo Federal, subordinado ao Presidente da República”.

Fronteiras

Diante das pressões, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), operou para adiar a votação e emitiu uma nota endossando a posição do Itamaraty. A Constituição já permite que parlamentares assumam cargos de ministro de Estado ou secretários estaduais sem perder o mandato, mas chefias de uma missão diplomática somente no caso das temporárias. Alcolumbre quer ampliar a regra para que parlamentares também assumam uma embaixada de forma permanente, sem perda do mandato.

A proposta abre uma porta giratória para o entra e sai de políticos nas embaixadas, além de criar um tremendo constrangimento para os diplomatas nas sabatinas do Senado. O que está por trás dessa ideia pode ser muito tenebroso. Primeiro, atrair mais interesse dos suplentes de senadores que são financiadores de campanha. Nesse caso, as embaixadas virariam moeda de troca para acordos fisiológicos.

Segundo a consultoria do Senado, em questionamento feito pelo senador Esperidião Amin (PP-SC), que se opôs à medida, aproximadamente 200 cargos do Itamaraty no exterior estariam disponíveis para tais acordos. O Brasil não vive seu melhor momento em termos de política externa, mas o profissionalismo dos nossos diplomatas é reconhecido. Um bom exemplo é a atuação do embaixador Ronaldo Costa Filho no Conselho de Segurança da ONU, cuja presidência rotativa ocupa neste momento.

Alcolumbre tem interesses específicos nas relações diplomáticas com Venezuela, Panamá e países árabes, principalmente a Arábia Saudita. A mudança na legislação, para permitir a ocupação desses cargos diplomáticos por políticos, abre uma porteira que vai muito além do circuito Elizabeth Arden. Por exemplo, os interesses das igrejas evangélicas nos países da África; e até mesmo coisa muito pior, nos estados que fazem fronteiras com os países vizinhos.

Correio Braziliense

Um mundo (re)infestado de demônios: o progressismo é um neoprimitivismo.




À medida que nos tornamos mais progressistas, tornamo-nos também, inevitavelmente, mais primitivos – e, portanto, mais violentamente intolerantes e mais tolerantes à violência.

Por Miguel Granja (foto)

Compreender um fenómeno – natural ou social – é sempre, em certa medida, desencantá-lo. Desenfeitiçá-lo. Despi-lo da cápsula mágica que o camufla e com que hipnotiza. Quando uma criança desmonta um brinquedo para compreender o mecanismo do seu funcionamento, está de certa forma, mesmo que inconscientemente, a desencantar o brinquedo: analisar é, de acordo com a etimologia grega, desmontar, decompor, desfazer, soltar, partir em pedaços (já Descartes, no Discurso do Método, impunha à análise a tarefa de dividir um problema em tantas partes quantas as possíveis e necessárias à sua resolução: “diviser chacune des difficultés que j’examinerais, en autant de parcelles qu’il se pourrait, et qu’il serait requis pour les mieux résoudre”). Quando tentamos perceber um truque de magia (como é que a mulher serrada ao meio não foi realmente serrada?; como é que o ilusionista que atravessou a parede não atravessou realmente a parede?), estamos no fundo a tentar “desmagicizar”, por via da decomposição analítica, o fenómeno encantado. Da decomposição do brinquedo pela criança à dissecação do sistema solar por Copérnico, vai uma diferença respeitável, certamente – mas de grau, não de natureza. Compreender é desencantar.

Este “desencantamento do mundo” – expressão com que Max Weber descrevia o processo de racionalização crescente das sociedades modernas e cujo termo alemão, Entzauberung, indica a remoção (ent-) da magia, do feitiço ou do bruxedo (Zauber); portanto, a acção de remoção de um encantamento – vem acompanhado, não por acaso, de uma diminuição do recurso colectivo à violência expiatória: onde buscamos causas, não buscamos culpados; e onde não buscamos culpados, não buscamos reparações; e onde não buscamos reparações, não buscamos penitências; e onde não buscamos penitências, não buscamos linchamentos. Compreender o mundo e renunciar à demonização são uma e a mesma coisa: compreender o mundo é, portanto – invocando um famoso título de Carl Sagan –, desinfestá-lo de demónios.

Tornamo-nos menos violentos sempre que somos capazes de renunciar ao recurso primitivo à superstição (por exemplo, danças da chuva ou sacrifícios humanos) e, ao invés, de atribuir uma explicação racional a fenómenos que, eventualmente, nos são prejudiciais ou, mesmo, ameaçadores da nossa sobrevivência colectiva (por exemplo, secas ou pestes), recusando assim ao expediente da busca de demónios qualquer valor explicativo do real (a principal prova do poder demoníaco é sempre justamente ser um poder oculto, que não se mostra, que se furta à prova, residindo aí precisamente, nessa ocultação da prova, a prova de si mesma: a falta de prova é a prova da prova). Desencantar o mundo é compreender que nem a peste que se abateu sobre Tebas foi causada pelo parricídio e pelo incesto de Édipo nem a Peste Negra do século XIV foi causada pelo envenenamento dos poços por parte dos judeus: compreender as causas reais das pestilências é ao mesmo tempo renunciar ao degredo de Édipo e à caça aos judeus. A ética também é, em última instância, uma forma de epistemologia.

Em grande medida, o aumento e a normalização da violência política (física e verbal) a que temos assistido nas sociedades modernas (lembremos, desde logo, o pesadelo hobbesiano que acossou as ruas americanas no ano eleitoral de 2020 e a complacência rousseauniana – “mostly peaceful protests” – que lhe foi genericamente dedicada) podem ser explicados a partir da observação de um mundo (re)infestando-se de demónios. O recrudescimento da violência expiatória e a expansão da mentalidade progressista não são processos sociais independentes: pelo contrário, estão ambos estreitamente vinculados ao regresso fulgurante do primitivismo. À medida que nos tornamos mais progressistas, tornamo-nos também, inevitavelmente, mais primitivos – e, portanto, mais violentamente intolerantes e mais tolerantes à violência. Abdicando dos procedimentos racionais em favor dos ritos sacrificiais, o progressismo não busca a explicação mas a expiação; não busca a inquirição mas a inquisição; não busca a luz mas a pira; não busca a Academia de Platão mas o Tophet de Moloch.

Uma das formas mais claras de demonstrar a validade desta tese consiste em observar como o progressismo recorre sistematicamente a narrativas baseadas em maléficos poderes ocultos cuja ausência de evidência, evidentemente infalsificável, é a sua própria evidência: onde Descartes aconselhava partir, o progressista amalgama (a estatística, em mãos progressistas, é praticamente indiscernível da exegese de entranhas animais); e onde aconselhava o necessário e o possível, o progressista impõe o inefável e o infalível. Na verdade, onde há fenómenos sociais cujas causas são explicáveis racionalmente, o progressista, para quem os rigores do raciocínio lógico são infinitamente menos atraentes do que os ardores da pregação emocional, vê demónios actuando às ocultas, servos demoníacos de amos demoníacos: a “masculinidade tóxica”, como outrora o envenenamento dos poços; o “supremacismo branco”, como outrora a depravação homossexual; o “apocalipse climático antropogénico”, como outrora a fúria punitiva divina. Provas? Nenhuma. Tudo isto é “sistémico” e “estrutural”, vocábulos-abracadabra de uma gramática-grimório cuja função (performativa e não constativa, para usar uma célebre distinção de J.L. Austin) é, secularizando o ocultismo, furtar-se à austeridade do empirismo e, por via de uma teia infinita de interseccionalizações [sic], fazer convergir todas as opressões imagináveis (e, sobretudo, imaginárias) para o funil identitário de uma única pele demoníaca, uma única prole demoníaca, um único genital demoníaco: “masculinidade tóxica”, “supremacismo branco”, “racismo sistémico”, “heteropatriarcado”, “neofascismo”, etc., não são, bem entendido, nomes de problemas sociais: são nomes de demónios: nomeá-los é invocá-los, invocá-los é exorcizá-los, exorcizá-los é persegui-los.

O famoso adágio de Alexandria Ocasio-Cortez (“There’s a lot of people more concerned about being precisely, factually, and semantically correct than about being morally right.”) ou a famosa tese de Joacine Katar-Moreira (“Um negro pode discriminar e ser preconceituoso com um branco, mas não pode ser racista com ele, porque este último não tem estruturas (históricas, políticas, económicas e sociais) que o oprimam com base no seu fenótipo.”) constituem dois exercícios de delírio progressista cujo prestígio intelectual alcançado, e sempre crescente, é apenas compreensível à luz do actual regresso, na versão “woke”, do primitivismo (de resto, a tese de Joacine é uma aplicação exemplar do adágio de Alexandria). No mundo infestado de demónios em que habitam AOC e JKM (mas cujo contágio necromântico pode capturar cabeças aparentemente insuspeitas de simpatias ocultistas como Boris Johnson que, provavelmente não tendo lido a biografia sobre Churchill que provavelmente não escreveu, atribuiu a invasão da Ucrânia pela Rússia ao facto de Putin não ser uma mulher); no mundo infestado de demónios em que habitam – dizia eu –, a mulher foi realmente serrada ao meio e o homem atravessou realmente a parede. Não há, não pode haver, outra explicação. Demónios. Um mundo infestado de demónios.

Para que o delírio explícito se torne prova irrefutável, basta que o contágio delirante se primitivize, isto é, se comunique boca-a-boca (os mantras alucinatórios são quase sempre doenças oralmente transmissíveis): nas televisões, nas rádios, nas universidades, nos concertos, nos cinemas, gera-se um efeito de bola de neve a partir do qual cada um deduz a sua convicção na existência de demónios da convicção dos demais que, por sua vez, deduziram a sua exactamente da mesma forma encantatória, duplicatória e contaminatória. A crença (inabalável e maioritária) em demónios não exige outra evidência de si que não a concordância colectiva que ela própria cria e replica. Parecendo que não, uma seita de alienados a lançar à água uma mulher acusada de bruxaria para testar se ela flutua também pode ser considerada uma comunidade epistémica. Parecendo que não, um grupo de especialistas a falar na televisão sobre o nexo entre a crise climática e a violência de género, ou entre a crise climática e o “racismo ambiental”, também pode ser considerado uma seita de alienados. É a unanimidade da crença que cria a evidência e não o contrário. Perguntem à mulher afogada que afinal não era bruxa.

E é justamente esta concepção demonológica do real que está na base da histórica predisposição progressista – da Paris de 1793-94 à Minneapolis de 2020, passando pela São Petersburgo/Petrogrado de 1917 – para o recurso à violência. Afinal, como, senão recorrendo à violência, se combatem demónios? Como, senão recorrendo à guilhotina, à bala ou ao fogo? Acaso foi através da persuasão dialógica ou da troca epistolar que São Jorge da Capadócia venceu o dragão de Silene? Para trespassar um dragão não basta ter uma espada: é necessário, antes de tudo, inventar o dragão (não por acaso, um dos capítulos do livro de Sagan é intitulado “The Dragon in My Garage”). Não é, portanto, de admirar que o progressismo, vanguarda do retrocesso, seja sempre contemporâneo do regresso dos autos-da-fé, ainda que as suas modalidades modernas se expressem em engenhos também eles mais hodiernos (e desmaterializados, como convém a adeptos do incorpóreo): “queimar” um “facho” na “praça pública” é uma expressão que extrai o seu sentido das fogueiras inquisitoriais, também elas ocorrendo em praças públicas diante de uma multidão – ontem usufrutuária presencial, hoje usuária digital – sedenta, hoje como ontem, de capturar e punir demónios, sobretudo quando são invisíveis: anjo das trevas que escapa ao olho não escapa à labareda. A distinção entre o Santo Ofício e a “cancel culture” é, também aqui, como a criança e Copérnico, de grau, não de natureza.

Se a regra cartesiana da evidência era: “jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal, isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir nos meus juízos que não se apresentasse tão clara e tão distintamente ao meu espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida” – a regra progressista, isto é, primitivista, é: jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não subordine forçosamente à ideologia, isto é, evitar cuidadosamente a realidade e os factos, e nada incluir nos meus juízos que não se apresente tão vago e tão indistintamente ao meu espírito que eu não tenha nenhum obstáculo para pô-lo ao serviço do preconceito. Também isto, não duvidem, é um discurso do método. Descartes, bem ou mal, com sucesso ou sem ele, pretendeu superar o “demónio da dúvida”, usando a própria dúvida como método de superação da dúvida. Os Descartes modernos e primitivistas, pelo contrário, não pretendem a superação, mas a supressão da dúvida. Não pretendem um método racional contra o engano de “génios malignos”: pretendem, como os hierofantes em que se inspiram, um mundo de enganos reinfestado de demónios.

Observador (PT)

Dogma de gênero




Na disciplina de "Cidadania e Desenvolvimento" não há neutralidade, há intenção de desconstruir o ser binário e hetero-normativo, ao que parece uma «visão dicotômica sem qualquer fundamento científico». 

Por Eugénia de Vasconcellos (foto)

«- Bem sei, mas tudo isso que você lhe ensinaria que não se deve fazer, por ser um pecado que ofende a Deus, já ele sabe que não se deve praticar, porque é indigno de um cavalheiro e de um homem de bem… (…) Ouça abade. Toda a diferença é essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo às caldeiras de Pêro Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do céu…»
Eça de Queiroz, in Os Maias

Portugal está ao rubro a partir de Famalicão, e mais uma vez a propósito da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, obrigatória desde o ano lectivo de 2018/2019, data em que dois irmãos, alunos do Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco, foram proibidos pelos pais de frequentar a disciplina. Os pais objectaram a dois dos seus módulos: «Educação para a igualdade de género»; «Educação para a saúde e sexualidade». Ontem [05.07.22], no Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão, o processo de promoção e protecção dos dois alunos viu confirmado o previsível adiamento da sessão para Setembro ou Outubro.

Foi pela mão do Ministério Público [MP] que este braço de ferro se tornou kafkiano.

Ainda que discorde da atitude dos pais, por muito que o conteúdo dos módulos seja pobre e de um dogmatismo incompreensível não só à ciência mas ao Estado de Direito, a verdade é que muito mais discordo do MP — para além de suspeitar que esta sua palhaçada nos vai sair muito cara pois serão os contribuintes portugueses a pagar o que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos acabar por decidir que é devido a esta família.

O MP pretende retirar a tutela destes dois irmãos aos pais e entregá-la à escola durante o período escolar para os «afastar da situação de perigo existencial». Isto para não falar da putativa «coerção emocional» que os pais exercerão sobre os filhos para além de serem exemplares «foras da lei». Este exercício de criatividade faz parte da argumentação do MP. Em 2022. E no país em que a disciplina de Religião e Moral se tornou opcional, e bem, em 1969. Repito: 1969.

Enquanto nos Estados Unidos se luta pela manutenção da separação entre o Estado e a igreja, uma preocupação que a composição ultra-conservadora do Supremo Tribunal impõe a quem é vigilante da democracia, em Portugal age-se duplamente à revelia da Constituição da República Portuguesa [CRP]. Isto é, retira-se aos pais os direitos e deveres que lhes cabem, e introduz-se nos curricula obrigatórios o que no seu artigo 43º a CRP proíbe: (…) O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.

Regredir, seja à direita ou à esquerda, é coleccionar perdas.

Esta não é uma situação distinta daquela que aqui apresentei. Não basta ao Estado de Direito a garantia da neutralidade religiosa. É precisa a garantia da neutralidade ideológica na academia. Na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento não há neutralidade, há a intenção, e ela é clara, de desconstruir o ser binário e hetero-normativo, ao que parece uma «visão dicotómica sem qualquer fundamento científico», e a forma como esteve ao serviço das estruturas de poder patriarcais. E as construções sociais num mantra beauvoiriano-butleriano exponencial e pseudo-científico. Isto é uma moldura ideológica sem qualquer contraditório – assim não há neutralidade, assim não há academia. A escola não deveria ser o lugar do dogma. O activismo per se não produz ciência. Nem quando reforça ideologias. Mas arrisca-se a produzir distopias, basta recordar a história.

Observador (PT)

Boris e o limite da desonestidade - Editorial




O Partido Conservador precisará restaurar os valores institucionais pressionados até o limite pelo premiê

Em três anos como primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson desafiou as leis da gravidade política e atravessou uma sucessão de escândalos combinando carisma, contemporização, prevaricação e franca desfaçatez. Há um mês, sobreviveu a um voto de desconfiança no Parlamento, por causa de festas na sede do governo no auge da pandemia. A revelação de que havia indicado um colega para uma função disciplinar chave sabendo de alegações de assédio sexual foi a gota d’água. Em 36 horas excruciantes, dezenas de membros do governo, a começar pelos ministros das Finanças e da Saúde, renunciaram. “Temos razões para questionar a verdade e a integridade sobre aquilo que nos foi dito”, resumiu ao Parlamento o ministro demissionário da Saúde, Sajid Javid. “Temos de concluir que basta.” Johnson relutou, mas teve de concluir a mesma coisa, e renunciou.

Para o bem ou para o mal, o Brexit é o seu maior legado. Sua atuação nas grandes crises globais foi decisiva, fomentando o desenvolvimento das vacinas na pandemia e apoiando a Ucrânia. Mas o acúmulo de escândalos, e das mentiras para apaziguá-los, consumiu seu governo.

Johnson caiu por seu caráter amoral. Mas também subiu por ele. Se, quando eleito, conquistou a mais numerosa maioria parlamentar em décadas, foi pela capacidade de mobilizar as duas facções do Partido Conservador. Sua política de “ter o bolo e comê-lo”, como disse nas negociações pós-Brexit, fez com que prometesse de tudo a todos: a uns mais gastos e protecionismo, a outros menos impostos e mais livre mercado. O seu encanto se exauriu, mas essas contradições, e as dificuldades socioeconômicas precipitadas por elas, permanecem.

O Reino Unido tem a maior inflação e o crescimento mais baixo do G-7. A dívida pública está em alta e a libra, em baixa. O custo de vida espreme os britânicos. Escócia e Irlanda do Norte questionam sua integração na União. As relações com a Europa estão longe de normalizadas. O apoio ao Partido Conservador caiu e seu desempenho nas eleições, daqui a dois anos, está comprometido.

O próximo primeiro-ministro precisará da mesma energia de Johnson, mas com qualidades que lhe faltam: visão, coerência e, acima de tudo, a disposição de fazer escolhas duras, ainda que impopulares.

Mas, mais do que pragmatismo, o Partido Conservador precisará se mostrar capaz de restaurar os valores institucionais pressionados até o limite por Johnson. Mesmo nos estertores, ele chegou a flertar com um momento “Trump”, alegando, contra a ordem constitucional, um mandato direto do povo. Nos EUA, o Partido Republicano continua a inflamar humores populistas. No Reino Unido, o Partido Conservador aparentemente recuou. Nas palavras de Sajid Javid, “andar em uma corda bamba entre a lealdade e a integridade se tornou impossível”.

A moral da história nessa parábola de ascensão e queda é que, mesmo na era da “pós-verdade”, a desonestidade tem limite. Sem confiança, não há governo. Ao forçar a saída de Johnson, o Partido Conservador postulou a verdade de que o caráter é essencial para a política. Agora precisará prová-la.´

O Estado de São Paulo

O círculo vicioso latino-americano - Editorial




Dossiê da revista britânica ‘The Economist’ expõe a urgência de resgatar a civilidade política para empregar as riquezas da América Latina na reversão de sua degradação socioeconômica

O grupo The Economist produziu um dossiê sobre a América Latina. O tema rendeu uma matéria de capa na revista. O título não poderia ser mais eloquente: Como as democracias declinam – Estagnação econômica, frustração popular e polarização política estão reforçando umas às outras.

Há não muito tempo o futuro era promissor. O superciclo das commodities possibilitou novos programas sociais. A redução da desigualdade reforçava a redemocratização. Mas os governantes não empenharam seu capital político em modernizações estruturais (políticas, tributárias, administrativas) e desperdiçaram o capital físico que deveria ser investido nas engrenagens de um crescimento sustentável, como infraestrutura, educação, produtividade e diversificação econômica.

Se aquele círculo virtuoso era frágil, o atual círculo vicioso é forte. Uma década de estagnação acentuou a frustração, especialmente entre os jovens, com a falta de oportunidades. A ira popular se voltou não só contra os incumbentes políticos, mas contra a política. A esperança em salvacionistas autoritários cresce. Mas, além de serem tão ou mais ineficientes que seus pares moderados, eles dilapidam o Estado Democrático de Direito. Mesmo países que logravam um razoável desenvolvimento econômico e, em parte, social, como Chile, Peru ou Colômbia, foram tomados pela febre populista.

O Financial Times publicou um editorial com um título igualmente sugestivo: O tumulto político na América Latina durará até que suas economias sejam reformadas. Com efeito, a combinação de privilégios oligopolistas e protecionismo perpetua a baixa produtividade do setor privado e a falta de investimentos e inovação que são chave para a mistura tóxica de desigualdade e baixo crescimento – tornada explosiva pela violência política, criminal e social.

Mas, na esfera pública, o centro desmorona, a direita, em nome da “liberdade”, se aferra a regalias elitistas e a esquerda, em nome da “igualdade”, a manias utopistas e ultrarregulatórias (exacerbadas quase a ponto da caricatura, por exemplo, na Constituinte do Chile).

“A política está marcada não apenas pela polarização, mas também pela fragmentação e a extrema fraqueza dos partidos políticos, tornando difícil congregar maiorias governantes estáveis”, diagnostica a Economist. “Essa espiral descendente é acelerada pela influência maligna das redes sociais e pela importação de políticas identitárias do Norte.”

O Brasil é um caso exemplar do círculo vicioso latino-americano. Exasperados com a precariedade dos serviços públicos, a corrupção e a deterioração socioeconômica, os brasileiros elegeram o (supostamente) anti-establishment Jair Bolsonaro. Mas a sua mistura de autoritarismo político e indigência administrativa só piorou essas condições. Para sustentar seu mandato ele franqueou as cartas do Executivo aos fisiologistas do Congresso, e para renová-lo inflama sua ideologia reacionária e disruptiva. Resta pouca esperança quando o favorito às eleições, Lula da Silva, só tem a oferecer os mesmos hábitos e ideias retrógrados que gestaram as condições para a ascensão de Bolsonaro.

A armadilha do subdesenvolvimento latino-americano é tanto mais dramática porque não faltam recursos para desarmá-la. Afastada de conflitos geopolíticos graves, a região é rica em culturas multiétnicas e em alimentos, minérios e energia renovável que a colocam em uma posição-chave para tirar proveito de grandes tendências políticas e econômicas globais, como a disputa entre China e EUA ou a alta das commodities, e solucionar grandes desafios do século 21, como a segurança alimentar ou as mudanças climáticas.

“A tentação será ignorar o mal-estar econômico e político e simplesmente surfar no novo boom das commodities detonado pela guerra na Ucrânia. Isso seria um erro”, adverte a Economist. “Não há atalhos. Os latino-americanos precisam reconstruir suas democracias de baixo para cima. Se a região não redescobrir a vocação para a política como um serviço público e reaprender o hábito de forjar consensos, seu destino só piorará.”

O Estado de São Paulo

Shhhh, Marcos Valério ai falar (mas será que alguém vai ouvir?)




Se depuser mesmo na Câmara, tudo o que Marcos Valério falar será apenas para confirmar certezas.

Por Paulo Polzonoff 

A Comissão de Segurança Pública da Câmara aprovou o convite para que Marcos Valério – é, aquele carequinha do Mensalão – fale aos deputados sobre a suposta, muito suposta, supostíssima relação entre o sempre impoluto Partido dos Trabalhadores e o PCC – facção criminosa para a qual não convém usar adjetivo irônico. Já volto ao tema, mas, até para provar meu ponto, deixe-me antes escrever algo que ninguém vai ouvir. Ou, no caso, ler.

(Almas em frangalhos formam outro grupo privilegiado que perdeu o lugar de fala. Tão ruidosos e onipresentes são os mimimis e os discursos de vitimismo identitário que o apreço pelo sofrimento verdadeiro hoje praticamente não existe. O mundo se lambuzou todo no mel do falso sofrimento, de tal modo que perdeu a capacidade de sentir a candura do sofrimento real. Curiosamente, acreditam na permanência da felicidade hedonista apenas os que acham que não precisam ouvir para saber o que vai ser dito).

Mas você quer saber mesmo de Marcos Valério. Eu sei. Sabemos todos. Tenho que admitir que se trata de uma figura mais interessante do que parece. Valério não é apenas alguém que, num passado que parece remoto, se envolveu em corrupção. Ele é um homem na teoria solto, mas na prática para sempre preso às concessões éticas que fez para se tornar... No que Marcos Valério se transformou? Por acaso hoje em dia tem a paz de alguém que pagou sua dívida com a sociedade? E mais uma pergunta, se me permite o presidente da Comissão: senhor Marcos Valério, valeu a pena?

(Antes continuar falando sobre o que você quer ler, contudo, me permita mais este parágrafo falando da tristeza que se engole em seco, que não tem forças para se transformar em poesia nem talento para virar música – quanto mais crônica! Um sofrimento que não encontra acolhida em ouvidos que assimilam apenas indignação e desejos de vingança. E, para que fique bastante claro, sobretudo àqueles que tendem a ler tudo em meio à visão turvada pelo cinismo, nesses parágrafos intercalados não estou me referindo ao sofrimento de Marcos Valério. Essa dor é de outro e ele não tem como processá-la por meio de mirabolantes esquemas com laranjas, doleiros, agências de publicidade e bancos).

Ao falar o que fala, quando fala e para quem fala, Marcos Valério está usando da mesma tática do opositor russo Alexei Navalny, que acreditava que a exposição midiática o manteria livre – e principalmente vivo. Não deu muito certo para o russo, mas espero que para Marcos Valério funcione. Até porque acredito, ou pelo menos tento acreditar, que há uma redenção no fim deste túnel. Marcos Valério, coitado, tem que se apegar a essa esperança que, no caso, é minha e não tem qualquer base racional. Qualquer outra, inclusive a de realmente se fazer ouvido e, a partir de suas palavras, ver surgir algo assemelhado à justiça, é improvável.

(Ah, quem me dera a tristeza pudesse, como o dinheiro sujo do Mensalão, ser lavada e sair do outro lado na forma da melancolia divina que, ao longo da história, deu origem a tantas obras-primas. É uma melancolia que idealizo, reconheço, mas me deixa, vai. Só por hoje. E, no mais, é improvável que você esteja lendo isso mesmo. Mimimi mimi mi mimimimi – deve ser assim que este eu-lírico soa aos seus olhos cansados de pesquisas eleitorais e ansiosos por uma palavra capaz de convencer todos os brasileiros de que a esquerda é o que é. Permita-me, porém, uma última reflexão: e se nos irmanássemos na tristeza mais do que na derrota? E, já que estou no embalo, outra: será que dessa tristeza tiraríamos algo diferente da revolta impotente?)

Na próxima quinta-feira (14), quem acompanhar o depoimento de Valério aos deputados (se é que ele vai mesmo) ouvirá o que quiser. E não ouvirá o que também quiser. Os substantivos, verbos, advérbios soarão como Verdade para uns e mentira para outros. Acreditarão em tudo os que já acreditam; mais desconfiados ainda ficarão os que já desconfiam de tudo. E, ao fim e ao cabo, todos sairão com aquela gostosa impressão de que sempre estiveram com a razão. Certezas serão cimentadas.

(Mas, se por um acaso você estiver preocupado, não fique. A tristeza sempre passa. Ou no mínimo se reconhece contaminada pelo mimimi, dá de ombros e, depois de um tempo, se permite sair pela avenida cantando uma marchinha qualquer. Há euforia fácil e barata em todas as esquinas e canais de streaming (na verdade a série “Euphoria” está disponível apenas na HBO Max, mas, ah, você entendeu). E, no mais, nunca se esqueça: tristeza nada mais é do que a incapacidade de reconhecer os bons desígnios de Deus).

Nos próximos dias, prevejo as expressões “bala de prata” e "a montanha pariu um rato" nos textos menos inspirados. Marcos Valério será herói numa hora, vilão na outra. Digno de crédito num dia, o rei da mentira noutro. O suprassumo da coragem aqui, o covarde supremo ali. Se bem que o cargo de covarde supremo já está ocupado por um hendecavirato (essa você vai ter que pesquisar). E a vida, arrisco dizer, seguirá praticamente inalterada, a não ser por esse grãozinho a mais da tristeza invisível que nos une e à qual reagimos com um desprezo que deveria estar reservado apenas aos mimimis da subliteratura cotidiana.

Gazeta do Povo (PR)

Em destaque

Bolsonaro cita recurso contra decisão de Moraes e diz que Michelle irá à posse de Trump

Foto: Reprodução/X/Arquivo O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a sua esposa, Michelle Bolsonaro 16 de janeiro de 2025 | 15:03 Bolsonaro ci...

Mais visitadas