Por Elio Gaspari (foto)
O Brasil corre o risco de viver a sua maior crise institucional desde o dia 13 de dezembro de 1968, quando o marechal Costa e Silva baixou o Ato Institucional nº 5. Ela tem data e hora marcadas: a noite de 2 de outubro, quando se conhecerá o resultado da eleição.
O cenário é previsível: fecham-se as urnas, totalizam-se os votos e, caso Jair Bolsonaro seja derrotado, ele anuncia que não aceita o resultado.
Em 1951, essa cartada foi tentada contra a posse de Getúlio Vargas, com o argumento de que ele não conseguira a maioria absoluta dos votos. Não prosperou, mas o desconforto militar reemergiu e em 1954 custou a vida ao presidente.
Em 1951, tratava-se de uma chicana conceitual. Hoje o presidente é um crítico do sistema de coleta e totalização dos votos. Chega a dizer que foi eleito em 2018 no primeiro turno, mas surrupiaram-lhe a vitória. Faltam cinco meses para a eleição e Bolsonaro faz sua campanha hostilizando o Judiciário e propondo que as Forças Armadas participem do processo de totalização.
Bolsonaro revelou parte da questão:
“Uma das sugestões das Forças Armadas é que, ao final das eleições, os dados vêm pela internet para cá (Brasília) e tem um cabo que alimenta a sala secreta do TSE. Uma das sugestões é que desse mesmo duto seja feita uma ramificação para que tenhamos um computador do lado das Forças Armadas para que possamos contar os votos no Brasil.”
Noves fora a urucuabaca trazida pelo uso da palavra “cabo”, é melhor discutir essa questão a partir de hoje. Deixá-la para outubro é um forma de botar veneno na crise.
(Em 2018, o deputado Eduardo Bolsonaro disse que “para fechar o STF basta um cabo e um soldado”. O cabo a que seu pai se referiu agora é outro.)
Deixe-se de lado a discussão sobre as motivações de Bolsonaro. Sua proposta é aceitável. O segundo cabo não deveria abastecer só “um computador do lado das Forças Armadas”, mas a máquina de uma comissão complementar na qual poderiam entrar cidadãos das mais diversas atividades.
O processo de coleta e totalização eletrônica já funcionou em diversas eleições e, salvo a teima de Bolsonaro, nunca teve contestação. Contudo, o presidente demonstra estar mais preocupado com o resultado do que com o processo. E aí assim se pode chegar à crise de outubro.
Um bom quintanista de Direito é capaz de redigir todos os protocolos necessários para tornar públicos os debates e as propostas da Comissão de Transparência. Alguns detalhes técnicos não podem ser divulgados. Tudo bem, um responsável embarga o item e coloca ao lado sua assinatura, responsabilizando-se por ele.
Em maio essas minúcias podem parecer trabalhosas. Se a questão for empurrada com a barriga, na crise de outubro as restrições de hoje serão lembradas com arrependimento. O que está em jogo, há anos, é o respeito ao resultado eleitoral. Quem está jogando com a sua contestação pouco liga para argumentos constitucionais ou regimentais.
Na crise de 1968, o jogo estava jogado. O deputado Márcio Moreira Alves havia feito na Câmara um discurso considerado ofensivo por militares. (Conspirava-se no Gabinete Militar da Presidência com o ministro da Justiça, mas essa era outra história.) O senador Daniel Krieger, presidente do partido do governo e seu líder na Casa, mostrou ao presidente Costa e Silva que o pedido de licença para suspender seu mandato seria rejeitado. Deu no que deu.
A noite do Ato Institucional nº 5 durou 20 anos. Passou o tempo e um dos participantes da reunião em que se proclamou a ditadura em nome da preservação da democracia, contaria:
“Naquela época do AI-5 havia muita tensão, mas no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas, havia descontentamento militar, mas havia sobretudo teatro. Era um teatro para levar ao Ato.”
Tancredo neutralizou o teatro de 1984
Havendo teatro e conspiradores palacianos, nem sempre se chega a uma excentricidade constitucional.
Em 1984, espertalhões tentaram alguns truques contra a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Com sua capacidade aglutinadora, ele devorou todas as tramas. Teve o apoio da maioria dos comandantes militares, sobretudo do general Leônidas Pires Gonçalves.
Tancredo viveu também outra crise, jogando com as pedras do golpe (para quem o tomou) ou do contragolpe (para quem o deu).
Em novembro de 1955, estava tudo pronto. O deputado Carlos Luz na Presidência interina da República melaria a vitória de Juscelino Kubitschek. (O titular, Café Filho, estava num hospital.) Bastava tirar o general Henrique Lott do ministério da Guerra, colocando no seu lugar o colega Fiuza de Castro.
No dia 9, Carlos Lacerda, o derrubador de presidentes, havia anunciado:
— É preciso que fique claro, muito claro, que o presidente da Câmara não assumiu o governo da República para preparar a posse dos srs. Juscelino Kubitscheck e João Goulart. Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar posse, não tomarão posse.
Na tarde do dia 10, Carlos Luz chamou Lott ao palácio e deu-lhe um chá de cadeira de quase duas horas ao fim do qual disse-lhe que estava demitido.
Fiuza aceitou o ministério e marcou a posse para a tarde do dia seguinte.
Lott foi para casa e conversou com o comandante da guarnição do Rio, general Odylio Denys. (Ambos esperavam pelo lance.)
Às 22h, a tropa começou a ir para a rua. Ao fim do dia seriam 25 mil homens.
Luz decidiu embarcar com parte do governo no cruzador Tamandaré e Carlos Lacerda foi junto. Lott mandou que as fortalezas disparassem tiros de advertência.
Dois dias depois, sem víveres e com passageiros mareados, o Tamandaré voltou melancolicamente para o Rio.
Luz estava deposto e Tancredo Neves ajudou a convencê-lo a assinar uma carta de renúncia. Carlos Lacerda asilou-se numa embaixada e o presidente do Senado, Nereu Ramos, assumiu a Presidência da República.
(O presidente Café Filho tentou voltar ao governo, Lott dobrou a aposta e arrastou as fichas.) Em dez dias o general depôs dois presidentes.
Em janeiro de 1956, Nereu Ramos empossou Juscelino Kubitschek.
(Em outubro de 1977, quando demitiu o ministro Sylvio Frota, o presidente Ernesto Geisel fez questão de que a transferência do cargo se desse no mesmo dia. Lembrava de 1955.)
O Globo