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segunda-feira, janeiro 03, 2022

Liberdade ameaçada pela desinformação - Editorial




Valendo-se da profunda aspiração humana por ser livre, campanhas contra o passaporte da vacina pregam a morte. O cuidado com o outro não agride o regime de liberdade

A lei não se opõe à liberdade, e o cuidado com o outro não agride esse regime.

Entre os maiores desafios do mundo atual, encontra-se o fenômeno da desinformação. Não é apenas que a realidade seja complexa e sujeita a várias interpretações, além de suscitar diferenças de percepção e opinião. A desinformação é a manipulação de fatos e conceitos para sujeitar uma parcela da população a determinados interesses. Essa tática, que sempre existiu, ganhou especial poder corrosivo por meio das redes sociais, com efeitos sobre todo o tecido social.

Um dos conceitos mais atacados pelas campanhas de desinformação é a liberdade. Os manipuladores utilizam a profunda aspiração humana por ser livre para impor suas concepções, em uma perversa inversão de valores. Caso recente ocorreu com a exigência do chamado passaporte da vacina, que é uma medida de elementar prudência, adotada pacificamente ao longo da história para proteção da saúde da população. Havendo um perigo sanitário e existindo meios para reduzir esse perigo, exige-se, pelo bem da coletividade, a adoção desses meios.

No entanto, no mundo inteiro – especialmente, nos Estados Unidos e na Europa, mas também aqui – começou a haver resistência ao passaporte da vacina, cuja exigência para determinadas atividades passou a ser apresentada como violação da liberdade individual. O presidente Jair Bolsonaro disse sobre o assunto: “Eu prefiro morrer do que perder a minha liberdade”. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, fez-lhe coro: “É melhor perder a vida do que perder a liberdade”.

É triste ver autoridades, que foram investidas de poder para cuidar do interesse público, disseminarem esse tipo de falso problema. É evidente que toda exigência do poder público – por exemplo, o passaporte da vacina em meio a uma pandemia ou a proibição de fumar em lugares fechados – envolve alguma limitação à liberdade individual. Este é justamente o papel da autoridade pública: dentro de sua esfera de competência e em conformidade com a lei, deve zelar pelo interesse público.

No entanto, e aqui está a falácia da frase de Bolsonaro, a limitação trazida pela exigência de passaporte da vacina é perfeitamente justificada pelo bem protegido, a saúde de todos. Não há nenhuma proporcionalidade – escapa de qualquer racionalidade – preferir a morte à vacina anticovid.

Há muitas situações em que a defesa da liberdade pode levar ao sacrifício da própria vida. Trata-se de atitude nobre, verdadeiramente heroica. A campanha contra a vacinação, em nome de uma suposta liberdade, é de outra natureza, inteiramente diferente. Em vez de defender a vida e a liberdade, essas pessoas estão pregando a morte; e pior, a morte dos outros.

Há outro aspecto que desvela a falácia dessa suposta defesa da liberdade. Jair Bolsonaro e seus seguidores nunca defenderam a liberdade dos cidadãos em face do Estado. Por exemplo, elogiam a ditadura militar, invocam o AI-5 e defendem a tortura. Ou seja, quando o aparato estatal viola escancaradamente a liberdade dos cidadãos, ficam do lado do Estado. Mas é só mencionar o passaporte da vacina, que não prende ou tortura ninguém, que passam a clamar pela liberdade e o direito de ir e vir.

Como se vê, não há coerência, tampouco consistência teórica. Mesmo a concepção mais liberal de Estado entende que o poder público tem o dever de restringir a liberdade para defender a vida e a liberdade dos cidadãos. No entanto, a desinformação sobre a liberdade, por mais esdrúxula que seja, confunde pessoas, produz desconfiança e gera danos sociais. E não é só com as vacinas.

Outro caso escandaloso de manipulação é a defesa da liberdade de expressão para a prática de crimes. “Mas ele apenas fez um vídeo”, dizem alguns liberticidas, contestando determinadas medidas judiciais do Supremo. Diante de tal confusão, é preciso lembrar o óbvio: há liberdade de expressão, mas não há autorização para agredir, ameaçar ou ofender.

A desinformação ataca princípios óbvios, que sempre fundamentaram o tecido social. Que fique claro: a lei não se opõe à liberdade, e o cuidado com o outro não agride o regime de liberdade.

O Estado de São Paulo

Reformas, recuperação fiscal e privatizações minam caminho das urnas

 




O presidente Jair Bolsonaro enfrenta assuntos sensíveis, como as reformas tributária e administrativa e posições relativas à vacinação contra o coronavírus, pressionado pela queda de popularidade e tendo o ex-presidente Lula como principal adversário à reeleição, segundo as pesquisas de intenção de voto

No Brasil, como em Minas Gerais, temas complexos e que envolvem controvérsia entre Executivo e Legislativo precisarão ser enfrentados neste ano

Por Guilherme Peixoto

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já abriram a disputa às eleições de outubro; em Minas Gerais, o governador Romeu Zema (Novo), que admitiu sua pretensão ao segundo mandato, pode ter como concorrente o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD). O cenário do pleito deste ano começa a tomar forma — sobretudo na disputa presidencial e na corrida rumo ao governo mineiro. Porém, até lá, nas esferas federal e estadual, Legislativo e Executivo precisam cumprir agendas para avançar em temas considerados prioritários e sensíveis.

Em Brasília, por exemplo, o Congresso Nacional convive com a expectativa em torno da entrega das reformas tributária e administrativa, que eram aguardadas em 2021, mas enfrentaram obstáculos como a pandemia de COVID-19. Parte dos parlamentares defende que as mudanças são essenciais para dar fôlego à retomada da economia e estancar as desigualdades acentuadas pelos efeitos da doença respiratória. Reduzir o abismo entre ricos e pobres, aliás, é outro tema em voga.

Lula supera Bolsonaro, de acordo com pesquisa de intenção de voto
 
Tradicionalmente, anos eleitorais são marcados pela análise de temas menos complexos, quando fatores ligados às urnas não contaminam os debates a ponto de inviabilizá-los. Mesmo assim, o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), mantém o otimismo. “A partir do momento em que toda a sociedade estiver imunizada, e Deus queira que não tenhamos outras ondas tão graves, podemos cuidar da pauta estruturante mesmo se tratando de ano eleitoral”, disse ele em entrevista na semana passada concedida ao Estado de Minas.
 
Pacheco garantiu estar tão focado na agenda nacional a ponto de, neste momento, não se aprofundar nas discussões em torno de possível pré-candidatura ao Palácio do Planalto, desejo dos dirigentes de seu partido. Ele afirma que terminar o desenho das reformas é o grande desafio de 2022. “Precisamos entregar um modelo de arrecadação e um sistema tributário mais simplificado, menos burocratizado, que não onere e não imponha sacrifícios ao contribuinte”.
 
Em termos da reforma administrativa, a ideia, segundo o presidente do Senado, é conciliar o enxugamento da máquina pública à preservação dos direitos adquiridos pelos servidores. “Não podemos misturar o interesse eleitoral e o interesse pela reestruturação do país. Para isso, temos que estar todos unidos: Congresso Nacional, Poder Executivo e Supremo Tribunal Federal (STF)”.
 
Desde o início da gestão, Bolsonaro lida com um limiar entre as pautas de costumes e os pleitos da equipe econômica de Paulo Guedes. O ano passado terminou com a aprovação do Auxílio Brasil e da Emenda à Constituição dos Precatórios, mecanismo que vai permitir a transferência de R$ 400 por mês às famílias vulneráveis ao longo deste ano. Apesar disso, assuntos como a privatização dos Correios parecem ter ficado em segundo plano — as discussões sobre a venda de patrimônios estatais formam bom exemplo de tópicos que, em anos de ida às cabines de votação, ganham travas adicionais.

Árduos ajustes

Em Minas Gerais, as atenções estão voltadas aos embates que marcam as conversas sobre a possível adesão mineira ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), programa proposto pelo governo federal que impõe duro ajuste nas contas dos estados durante nove anos para que eles ganhem melhores condições de pagamento de dívidas com a União. O governo Zema tem defendido o ingresso do estado no sistema como única opção para aliviar problemas no fluxo de caixa, mas, na Assembleia Legislativa, a avaliação é de que uma temática tão complexa não pode ser votada sem conversas aprofundadas.
 
Há temor dos parlamentares quanto a prejuízos em serviços públicos e ao funcionalismo, além da ideia de que é possível viabilizar saída política junto ao Palácio do Planalto para renegociar as dívidas mineiras sem um ajuste fiscal de gosto amargo à população. Com a resistência, a adesão ao RRF não deve ser aprovada na Casa.

Kalil é pedra no sapato do governador de Minas, Romeu Zema

Em outubro último, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, determinou prazo de seis meses para Minas Gerais aderir ao RRF sob pena de cassação das liminares que suspendem o pagamento do débito junto à União. É nisso que Zema se ampara para defender a adesão ao plano.

A estimativa é que, inicialmente, seja necessário desembolsar R$ 30 bilhões. “De onde vamos tirar R$ 30 bilhões para pagar o governo federal? O valor é até superior a isso. Se você tem uma dívida desse tamanho e o governo federal está propondo 30 anos para pagá-la, de forma parcelada, em suaves prestações, principalmente no início, por que não aderir?”, questionou em entrevista ao Estado de Minas no mês passado.

Queda de braço

Entretanto, deputados estaduais asseguram que as tratativas não são tão simples como tenta demonstrar o governador.  “Se o estado quiser fazer um programa de transferência complementar ao federal, não vai poder. Se precisar lançar um programa de aceleração de aprendizagem para crianças e adolescentes que ficaram para trás, não vai poder. Não pode ter nada novo”, criticou André Quintão (PT), líder dos opositores a Zema. “A saída tem que ser política. Passa pela negociação com o governo federal. Não pela mera adesão a um regime de recuperação fiscal que vai prejudicar o cidadão pobre”, completou.
 
Em meio ao confronto, houve até mesmo acusações de uso do projeto que congelou o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA), proposto e aprovado na Assembleia Legislativa, e, agora, com sanção garantida por Zema, como meio de pressionar os parlamentares a votar a adesão de Minas ao Regime de Recuperação Fiscal. O tema econômico inicia 2022 travando a pauta da Assembleia, o que impede outras votações. “Não é justo que a gente vote, praticamente no último ano de um governo, travas condicionantes que vão permanecer por mais dois governos”, pontuou André Quintão.

SEM CONSENSO

No país

» Reforma tributária
» Reforma administrativa
» Privatizações

Em Minas

» Adesão do estado ao Regime de 

Recuperação Fiscal

» Privatizações
» Vaga no Tribunal de Contas do Estado
Corrida embolada para colocar o bloco na rua

Para conquistar um segundo mandato, o presidente Jair Bolsonaro precisará lidar com a rejeição recorde do eleitorado, que chegou a 60% nas pesquisas de intenção de voto, segundo o Instituto Datafolha. A descrença em relação às vacinas também marca o início de ano do presidente. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, é defensor da apresentação de prescrição médica para permitir a imunização de crianças entre 5 a 11 anos, mas diversos secretários estaduais de Saúde, como o mineiro Fábio Baccheretti, já afirmaram que o atestado não será exigido.
 
Na semana passada, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, chegou a pedir “humildade” a todos os envolvidos no assunto — inclusive o chefe do poder Executivo federal —, para que haja respeito ao parecer técnico dado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nos últimos levantamentos sobre intenções de voto, o capitão reformado aparece atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
 
Embora esteja na liderança das pesquisas, Zema começa 2022 com a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) na mira de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia. O relatório do comitê está previsto para ser entregue nos primeiros momentos do novo ano legislativo. No entanto, o governador garante que os planos de privatizar a estatal continuam existindo. A estratégia de vendas de empresas públicas tem, neste momento, a alienação da Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig) como carro-chefe.
 
Em termos eleitorais, apesar de admitir que a posição de prefeito belo-horizontino o credencia a tentar ser governador, Alexandre Kalil prega cautela. “O prefeito que quer fazer campanha eleitoral levanta da cadeira, vai fazer campanha e põe outro no lugar. Esse povo não pode ficar abandonado, com prefeito viajando igual a um 'peru' para fazer política”, disse Kalil ao EM.
 
O senador Carlos Viana (MDB), já se coloca como possível postulante ao Palácio Tiradentes. “O governador está, naturalmente, agindo, como o grupo político dele incentiva, tentando recuperar o espaço político que não assumiu — e foi até contra, criticou muito, — no início. Daí o embate com a Assembleia”. “Não venho para falar de problemas; quero falar de soluções”, promete.
 
Em outra perspectiva, o Legislativo mineiro tem importante decisão a tomar no início do ano: o preenchimento da cadeira vaga no Tribunal de Contas do Estado (TCE). Na disputa, estão Duarte Bechir (PSD), Alencar da Silveira Júnior (PDT), Celise Laviola e Sávio Souza Cruz (ambos do MDB). Ainda no Parlamento, mas de volta a Brasília, pode haver aumento da influência mineira nas discussões nacionais, porque os deputados federais Reginaldo Lopes e Tiago Mitraud vão liderar, respectivamente, as bancadas de PT e Novo na Câmara. (GP)

Estadão / Estado de Minas

Quais são os principais desafios da política alemã em 2022?




Friedrich Merz (no centro) deve ser confirmado como novo presidente da CDU e conduzir partido para a direita

Sob a liderança de um novo chanceler após 16 anos, Alemanha enfrentará questões como obrigatoriedade da vacina contra covid-19, crise climática e maior visibilidade na política externa.

A questão mais importante que os alemães enfrentam no início de 2022 é a mesma do ano anterior: a pandemia de covid-19. No entanto, há uma diferença fundamental: naquela época, a recém iniciada campanha de vacinação ainda dava esperança de que o fim da pandemia estava próximo.

Mas, um ano e bem mais de 100 milhões de doses de vacinas depois, o número de novas infecções na Alemanha é substancialmente maior do que no início de 2021.

Para que mais pessoas sejam vacinadas, a obrigatoriedade da vacinação pode ser implementada em breve. 

Isso, porém, significaria uma quebra de promessa de importantes políticos, já que a ex-chanceler federal Angela Merkel, da CDU, seu sucessor Olaf Scholz, da SPD, e o líder do FDP, Christian Lindner, agora ministro das Finanças, haviam descartado anteriormente tal obrigatoriedade.

As medidas tomadas para controlar a pandemia na Alemanha dividem a sociedade – embora uma maioria de pessoas apoiem a vacinação, há uma minoria barulhenta que se opõe a ela.

Planos climáticos ambiciosos

O novo governo de social-democratas de centro-esquerda (SPD), verdes e democratas livres neoliberais (FDP) quer manter o ímpeto positivo quando se trata de ação contra as mudanças climáticas. "Ouse mais progresso" foi o título do acordo de coalizão, em alusão ao lema de 1969 do ex-chanceler Willy Brandt (SPD), "Ouse mais democracia".

A coalização no poder promete tomar medidas para proteger o clima por meio de fontes de energia renováveis ​​e, de preferência, eliminar a energia gerada pelo carvão antes do planejado - possivelmente em 2030.

O que os eleitores alemães pensam sobre os planos do novo governo determinará os resultados de quatro eleições estaduais: Sarre, Schleswig-Holstein, Renânia do Norte-Vestfália e Baixa Saxônia. De acordo com pesquisas recentes, espera-se que o ressurgimento dos social-democratas continue, depois de anos de declínio.

O CDU se moverá para a direita?

No início do novo ano, os democratas-cristãos de centro-direita (CDU) estão se acomodando em seu novo papel como partido de oposição após 16 anos no poder e esperam um novo ímpeto quando o novo presidente do partido for oficialmente confirmado, agoa em janeiro. 

Friedrich Merz, de 66 anos, recebeu o apoio da maioria dos 400.000 membros do partido em dezembro, após duas tentativas fracassadas de assumir o cargo. Merz, ex-líder do grupo parlamentar e inimigo de Angela Merkel, é um ferrenho conservador e deve conduzir a CDU mais para a direita. 

Em fevereiro, a escolha do presidente da Alemanha não deve ter surpresas. O atual presidente alemão Frank-Walter Steinmeier, do SPD, quer permanecer no cargo. Suas chances parecem boas - até agora ninguém manifestou interesse em assumir a vaga.

Além disso, os atuais partidos da coalização governamental têm maioria na Assembleia Federal, composta por membros do Bundestag e representantes dos 16 estados responsáveis por eleger o próximo presidente.

Política externa

Em termos de política externa, 2022 pode ser a hora de a Alemanha se destacar, sobretudo durante sua presidência do G7. As ameaças russas contra a Ucrânia e a China cada vez mais triunfante na política global são apenas dois grandes desafios nessa área.

A nova ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, do Partido Verde, sinalizou que adotará uma abordagem diferente da do governo da ex-chanceler Angela Merkel no que diz respeito à China. Ela deseja seguir uma política externa baseada em valores e ser mais ativa nas questões de direitos humanos em estados totalitários.

'Annalea Baerbock quer conduzir negócios com a China baseada em valores'

Mas o cientista político Johannes Varwick, da Universidade Martin Luther Halle-Wittenberg (MLU), prevê que Baerbock "logo sentirá as restrições do cargo e a pressão da realpolitik" (política ou diplomacia baseada principalmente em considerações práticas, e não ideológicas.)

"Vejo isso especialmente na questão de saber se os direitos humanos podem realmente ser considerados a referência final para a ação da política externa", explica.

O chanceler Olaf Scholz parece querer continuar a abordagem reservada de política externa de sua antecessora. "É preciso haver cooperação no mundo, também com governos que são muito diferentes dos nossos", disse ele à emissora pública alemã de televisão ZDF, após assumir o cargo.

Nesse contexto, será interessante ver se o novo governo ficará ao lado do presidente dos EUA, Joe Biden, e será levado a um confronto mais forte com a China.

Henning Hoff, do Conselho Alemão de Relações Exteriores (DGAP), diz que a Alemanha precisa "parar de se preocupar com o fato de a indústria alemã não ter futuro sem o mercado chinês, e adotar uma postura muito mais forte e estratégica e lidar com a China como um rival sistêmico".

Hoff acredita que, quando se trata da Rússia, é preciso usar  "o gasoduto Nord Stream 2 para pressionar Moscou" e "interromper o projeto se houver alguma agressão à Ucrânia".

Planos para a Europa

No que diz respeito à Europa, o acordo de coalizão estabelece o objetivo de longo prazo de a União Europeia (UE) se transformar em um "estado europeu federal". Há muito tempo que essas ideias ambiciosas não eram ouvidas.

Ao mesmo tempo, o novo governo de Berlim apela a uma política de asilo a refugiados relativamente liberal também a nível europeu, o que pode revelar-se difícil de se concretizar.

Mais unidade da UE e refugiados são questões polêmicas - isso ficou claro no final do ano passado em dois países do bloco que têm particular importância para a Alemanha: Polônia e França. 

Jaroslaw Kaczynski, chefe do partido governista Lei e Justiça (PiS), disse que as políticas do novo governo alemão colocam em risco a soberania dos países europeus. 

'Scholz quer manter postura reservada na política externa'

A França tradicionalmente tem uma parceria estreita com a Alemanha, mas os dois países não concordam em algumas questões cruciais. 

Em abril, a França realizará eleições presidenciais – e o principal tópico da campanha deve ser a imigração indesejada. 

O presidente Emmanuel Macron quer usar a virada iminente de seis meses da França na presidência rotativa do Conselho da União Europeia para proteger as fronteiras externas do bloco, algo que não é uma prioridade para a coalizão de Berlim. 

O analista político Hoff considera as "ambições de política europeia" do novo governo alemão não apenas corretas, mas necessárias. "Se a UE quer se tornar mais soberana e confiante - e deve se quiser perdurar - não será capaz de evitar maior reestruturação".

Mas Varwick rejeita a meta de um estado federal europeu como irrealista: "Isso vai se desmantelar rapidamente diante das realidades políticas europeias. Ninguém na Europa realmente quer isso".

Em vez disso, ele elogiou o conceito de "liderança servil" para a Europa que também pode ser encontrado no acordo de coalizão: "Porque se trata de usar o poder e a influência da Alemanha de uma forma que não desencadeie reflexos defensivos, mas, em vez disso, abre espaço para manobra . "

Seguindo os passos de Merkel

A ex-chanceler Angela Merkel teve um papel especialmente importante no cenário diplomático global e de liderança absoluta na política europeia. Olaf Scholz vai querer seguir os passos dela - e será capaz?

Henning Hoff aponta que Scholz mostrou as qualidades de liderança importantes de "prudência e um pragmatismo voltado para soluções".

Johannes Varwick acredita que Scholz "não pode competir com a experiência de Angela Merkel". No entanto, acrescenta que a Alemanha tem grande peso político, independentemente de quem seja o chanceler. 

Scholz, "com sua natureza despretensiosa e conciliadora, parece um sucessor adequado para a 'chanceler eterna'", disse Varwick.

Deutsche Welle

França retira bandeira da UE do Arco do Triunfo após crítica




Símbolo havia sido colocado no monumento para marcar início da presidência de seis meses da França na União Europeia. Ação foi duramente criticada pela direita e extrema direita. Governo nega que tenha cedido à pressão.

As autoridades francesas retiraram neste domingo (02/01) do Arco do Triunfo, em Paris, uma grande bandeira da União Europeia (UE), depois que oponentes de direita e de extrema direita do presidente Emmanuel Macron o acusaram de "apagar" a identidade francesa.

A bandeira foi colocada temporariamente no local na véspera de Ano Novo, para marcar o início da presidência de seis meses da França na UE. O governo francês nega que a bandeira tenha sido retirada por pressão e afirma que a remoção ocorreu conforme o previsto.

"Presidir a Europa sim, apagar a identidade francesa, não!", escreveu no Twitter Valerie Pecresse, a candidata conservadora dos republicanos.

Pesquisas indicam que ela pode ser a principal adversária de Macron nas próximas eleições presidenciais, que ocorre este ano.

Ela pediu a Macron que restaurasse a bandeira francesa no icônico monumento de guerra.

"Devemos isso aos nossos soldados que derramaram seu sangue por isso", disse ela.

Le Pen comemora retirada

A líder da extrema direita francesa, Marine Le Pen, classificou a remoção da bandeira como uma vitória. Um dia antes, ela ameaçou apelar ao Conselho de Estado da França para retirar a bandeira.

"O governo foi forçado a remover a bandeira da UE do Arco do Triunfo, uma bela vitória patriótica no início de 2022", disse Le Pen.

Ela afirmou no Twitter que uma "mobilização massiva" forçou Macron a derrubar a bandeira da UE.

Macron derrotou Le Pen em 2017, no segundo turno, por 66% a 34% dos votos válidos. Ele ainda não declarou sua candidatura, mas deverá concorrer novamente à reeleição em abril. A populista Le Pen já lançou sua campanha.

França nega ter cedido à pressão

O ministro francês dos Assuntos Europeus, Clement Beaune, que na sexta-feira disse que a bandeira ficaria por "vários dias" no Arco do Triunfo, afirmou que ela havia sido retirada conforme o planejado.

"Estava programado que a bandeira seria retirada neste domingo, não tínhamos estabelecido uma hora exata", disse Beaune à rádio France Inter.

Ele disse que o governo não "recuou" e acusou os opositores de "perseguirem desesperadamente as controvérsias estéreis da extrema direita".

"Não recuamos, não houve mudança de planos. Presumo totalmente que o destino da França seja a Europa", disse Beaune, acrescentando que a instalação da bandeira da UE não substituiu a bandeira francesa, porque não era uma exibição permanente.

Deutsche Welle

Mais um portal de notícias de Hong Kong encerra atividades

 




CitizenNews, fundado por jornalistas em 2017, informou temer pela segurança de colaboradores. Mídia independente do território vem sendo sufocada pelo regime chinês nos últimos dois anos.

O portal de notícias CitizenNews, de Hong Kong, anunciou neste domingo (02/02) que vai encerrar suas atividades para "assegurar a segurança de todos".

O anúncio ocorre dias depois de uma operação policial contra outro portal, o Stand News, ter resultado na prisao de seis ex-colaboradores por "conspiração para publicações sediciosas" - acusação que as autoridades do autoritário regime chinês costumam usar contra jornalistas não alinhados. Os jornalistas tiveram o pedido de fiança negado.

O CitizenNews, um portal de notícias apartidário e financiado pelos seus utilizadores, foi fundado em 2017 por um grupo de jornalistas veteranos e era um dos veículos de notícias online mais populares de Hong Kong, com mais de 800.000 seguidores nas redes sociais.

Perseguição

Durante o ano passado, o portal contratou vários jornalistas de outros meios de comunicação, à medida que as autoridades aumentavam a pressão sobre a imprensa.

Na ocasião, a Rádio Televisão de Hong Kong passou para o controle de líderes pró-governo e o jornal pró-democracia Apple Daily foi fechado em junho e o seu fundador, Jimmy Lai, foi condenado.

Hoje, o CitizenNews anunciou "com o coração pesado" que irá encerrar a atividade na terça-feira e que o seu portal na Internet será removido "mais tarde".

"Infelizmente, não podemos mais nos esforçar para transformar as nossas crenças em realidade sem medo, devido à drástica mudança na sociedade nos últimos dois anos e à deterioração do ambiente dos meios de comunicação", informou o CitizenNews num comunicado.

 Quatro dos cofundadores do CitizenNews são ex-presidentes da Associação de Jornalistas de Hong Kong.

Pequim passou a sufocar a imprensa livre e a oposição em Hong Kong após os protestos pró-democracia massivos que sacudiram em 2019 a ex-colônia britânica e região administrativa especial da China (desde 1997).

Hong Kong tem perdido cada vez mais liberdades desde que Pequim impôs, em junho do ano passado, uma polêmica lei de segurança nacional. No início deste mês, Hong Kong realizou uma eleição legislativa de fachada "apenas para patriotas" - ou seja, com candidatos alinhados com o regime.

Em setembro, organizadores da vigília anual em homenagem às vítimas do massacre da Praça da Paz Celestial disseram que polícia ordenou que páginas do grupo fossem tiradas do ar. O grupo anunciou no mesmo mês que estava encerrando suas atividades. Em outubro, a Anistia Internacional fechou escritórios em Hong Kong.

Em dezembro, a universidade mais antiga de Hong Kong removeu a chamada Coluna da Infâmia, de oito metros de altura, que retrata 50 corpos retorcidos e empilhados uns sobre os outros. A obra foi feita pelo escultor dinamarquês Jens Galschiot para simbolizar as vidas perdidas durante o massacre na Praça da Paz Celestial, que reprimiu de forma sangrenta protestos pró-democracia em Pequim em 4 de junho de 1989.

Deutsche Welle

Os ditadores e o erro do povo chileno




Defendi a candidatura de Kast, que me parecia representar uma continuação sensata da política econômica que levou o Chile a quase alcançar certos países europeus e a se distanciar muito do restante da América Latina. 

Por Mario Vargas Llosa (foto)

Recusei o encontro com o jornal francês que publicou o texto dos cinco professores que protestaram contra minha eleição para a Academia Francesa, mas reconheço que tal protesto foi legítimo. Ainda assim, de acordo com os jornais peruanos, esses professores me tacharam de “pinochetista”, coisa que nunca fui. No próprio dia do golpe de Pinochet, em 1973, ataquei-o duramente na televisão francesa e devo ter assinado, além disso, cerca de vinte manifestos protestando contra os crimes cometidos pela ditadura chilena, que critiquei de Santiago, no Chile, manifestando minha solidariedade aos seus adversários.

Tenho, desde menino, uma aversão visceral a todos os ditadores que lançaram sua sombra na história política da América Latina e impediram a realização do sonho de Bolívar, uma união continental nos moldes dos Estados Unidos.

Antes mesmo de eu usar a razão, na minha família já éramos inimigos dos ditadores. O ditador da vez no Peru, General Odría, tinha deposto em um golpe militar o Dr. José Luis Bustamante y Rivero, parente do meu avô materno.

Havia na família um culto heróico à figura de José Luis Bustamante y Rivero. Por ser elegante e eloquente, como bom arequipeño, por se vestir bem e pelo cuidado que tinha também com as palavras que dizia, e com os erres de Arequipa que ninguém em Lima era capaz de pronunciar. Eu já o tinha visto e até falara com ele, em uma ocasião em que José Luis era embaixador do Peru em La Paz e veio se hospedar na nossa casa, em Cochabamba, onde meu avô era cônsul do Peru. Sempre lembrava da bela gorjeta que chegou às minhas mãos quando José Luis partiu, com seu chapéu sombrerito e os óculos que impunham tanto respeito quanto seus esplêndidos discursos.

Ele tinha sido um luxo de presidente até que as garras de Odría, e seus tanques, só lhe permitiram exercer a presidência do Peru, que ele ganhara legitimamente, por três dos cinco anos para os quais ele fora eleito pelos peruanos.

Cresci odiando Odría, como toda a família da minha mãe, e daí me vem o rechaço a esta espécie horrenda: os ditadores que, naquela época (agora estão voltando), eram a praga da América Latina. Ainda não tinha lido Jan Valtin, que seria meu primeiro mentor político, mas já detestava esses generais que acreditavam que a presidência do país lhes correspondia em função do generalato e, para tanto, dispunham dos tanques.

Os ditadores me afastaram do partido comunista, no qual militei durante o primeiro ano da Universidade de San Marcos, e de Cuba, apesar das muitas respostas que recebi defendendo as eleições livres e o direito de cada povo escolher seus governantes por meio de pleitos legítimos.

Este tem sido um eterno mal-entendido com os militantes da extrema esquerda: sua convicção de que havia ditadores “bons”, como Stalin ou Fidel Castro. Acredito, e esta é uma das convicções às quais me mantive fiel na minha vida política, que todos os ditadores, sejam de direita ou esquerda, são péssimos, autores de todo tipo de atropelo e roubo, e que os países que alcançaram a civilização política não elegem ditadores, permitindo em vez disso que o povo escolha seus presidentes em eleições livres e genuínas.

É claro que os povos podem se equivocar, como ocorreu na Venezuela ou em Cuba, e escolher mal nas eleições, erros que tendem a produzir consequências nefastas para esses povos, que levam anos para corrigi-las.

Os regimes democráticos podem se equivocar, e o exemplo que os peruanos acabam de dar é mais que suficiente para ilustrar isso. Os peruanos já elegeram, contando até com meus próprios votos, um grande número de ladrões, acreditando tratar-se de pessoas dignas. Mas tais erros podem ser corrigidos com o tempo, foram corrigidos e serão corrigidos, enquanto que em uma ditadura uma retificação é muito mais difícil, pois conta com essas pessoas convencidas de que a justiça social passa por um regime autoritário, ainda que tal desenvolvimento jamais tenha sido demonstrado.

Por isso prefiro os regimes democráticos em lugar das ditaduras, sejam elas de direita ou de esquerda, que se confundem e confundem suas vítimas. As medíocres democracias são preferíveis, ainda que apresentem muitas deficiências, entre as que prevalecem, sobretudo nos países desenvolvidos, as mãos grandes dos governantes eleitos ou por eleger. Há mais oportunidades de mandá-los para a prisão nesses regimes débeis do que nas solenidades e segredos que guardam suas vergonhas para determinadas ocasiões. E, como temos inúmeros exemplos, para quando os ditadores já estejam mortos ou enterrados.

A mais medíocre democracia é preferível à mais perfeita ditadura, seja ela encabeçada por Pinochet ou Fidel Castro. Esta é minha bandeira e por isso defendo as imperfeitas democracias contra todas as ditaduras, sem exceção. Esta é uma escolha muito simples, e aqueles que me julgam politicamente precisam ter isso em conta com clareza.

Agora o Chile acaba de celebrar eleições e, para mim, não há dúvida que, no momento presente, a maioria dos eleitores chilenos cometeu um grave equívoco. O Chile vinha sendo um exemplo para os liberais de todo o mundo. Por isso nos surpreendeu tanto a violência das manifestações nas quais uma multidão incendiou edifícios e estações de metrô. Nada parecia indicar que esta seria a resposta popular a uma economia em crescimento, na qual todas as forças políticas, sem exceção, pareciam estar de acordo. Ao que parece, as coisas não eram assim, o que surpreendeu a todos. O que ocorrera para que um país aparentemente privilegiado na América Latina mostrasse um rosto tão diferente e feroz?

Defendi a candidatura de Kast, que me parecia representar uma continuação sensata da política econômica que levou o Chile a quase alcançar certos países europeus e a se distanciar muito do restante da América Latina. Por isso, acredito que os chilenos, dando uma vitória expressiva a Boric, cometeram um equívoco. Mas seu direito de se equivocar deve ser levado em conta e respeitado. Algo devia andar mal para que Boric obtivesse uma vitória tão clara e expressiva. Principalmente, levando em consideração que as críticas de Boric diziam respeito à política econômica, em primeiro lugar, e nisso o eleitorado chileno parece ter lhe dado a razão.

É muito desconcertante, sem dúvida, que um país rechace de maneira tão evidente algo que parecia lhe trazer múltiplos benefícios. Mas assim são as coisas da vida política: algo tão inesperado e surpreendente quanto o que ocorreu no país. Em todo caso, esta nova política, que corrige a anterior, deve ser colocada em prática mesmo que traga consequências muito negativas para o país que parecia crescer de maneira sistemática nos anos mais recentes. Logo o Chile terá tempo para corrigir seu erro, caso tenha errado, e preservar os feitos alcançados graças à política que foi agora derrotada.

Estas são minhas convicções. Posso estar enganado, mas, em todo caso, meus erros respondem a uma ideia que me parece ser profundamente democrática: os povos têm o direito de errar. Em uma democracia, tais erros podem ser retificados e emendados.

O Estado de São Paulo

200 anos de Brasil: pouco a celebrar, muito a questionar

 




Olhando para a frente, podemos nos perguntar se ainda somos um país viável no sentido de sermos capazes de formarmos uma sociedade includente, sem a enorme marginalização que hoje a caracteriza

Por José Murilo de Carvalho* (foto)

O Brasil não tem sorte com seus centenários. O primeiro, em 1922, teve de conviver com os restos da devastação causada pela gripe espanhola, chegada ao País em 1918. Calculam-se em cerca de 35 mil as mortes causadas no País, concentradas no Rio de Janeiro e São Paulo. Entre elas não estava, como se costuma afirmar, o presidente eleito, Rodrigues Alves, embora tenha morrido antes de assumir. O ano de 1922 foi ainda marcado pela primeira revolta tenentista e pela decretação do estado de sítio pelo presidente Epitácio Pessoa, destinada a garantir a posse do presidente eleito, Artur Bernardes. Nas celebrações, destacou-se a Exposição Internacional de que participaram 14 países. O segundo centenário, a ocorrer ano que vem, virá na cauda de outra pandemia, a da covid-19, chegada ao País em 2020 e que já matou cerca de 620 mil brasileiros, embora também sem matar presidente. Junto com a pandemia, temos hoje um país às voltas com um tumultuado mandato presidencial que gerou dúvidas sobre a solidez de nossa jovem democracia e, mais ainda, com o imenso drama social do desemprego, da desigualdade, da exclusão, da fome. Até agora, não há indicação de que haverá alguma importante celebração oficial, ficando os registros da efeméride a cargo da mídia, das instituições e do meio acadêmico.

Nesses registros, naturalmente, haverá retomadas de temas estritamente históricos, mas é importante que sejam também usados como oportunidade para uma avaliação dos 200 anos de nossa vida independente. Quero dizer com isto examinar a natureza do percurso feito, verificar onde acertamos, onde erramos e como chegamos à situação atual. Baseados neste exame podemos também perguntar sobre o que nos pode esperar no futuro próximo. Mao Tsé-tung dizia ser ainda cedo para avaliar adequadamente o impacto da Revolução Francesa. Para nós, no entanto, que sofremos de Alzheimer coletivo, dois séculos já são tempo suficiente para fazermos um balanço do que fizemos e perscrutarmos nosso futuro próximo.

As mudanças nesses 200 anos foram enormes. Passamos de um país de cerca de 5 milhões de habitantes, dos quais um milhão de escravos e 800 mil indígenas, para outro de 214 milhões; de um país com cerca de 10% de população urbana em 1822 para outro de 85% hoje; de um país de economia totalmente agrícola em 1822 para outro com larga participação industrial hoje; de uma população formada exclusivamente por indígenas, africanos e lusos para outra muito mais diversificada pela entrada de italianos, espanhóis, alemães, sírios, libaneses, japoneses; de uma população concentrada na região costeira para outra que cobre todo o território nacional. No entanto, todos os analistas que se encarregaram do tema de nossa trajetória, como Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Viana, Nestor Duarte, Raimundo Faoro, Gilberto Freyre, Roberto DaMatta, entre outros, reconhecem que há mais continuidades do que rupturas. Somos um país sem revoluções. O que chamamos de revolução, como a de 1930, não passou de ajustes entre grupos dirigentes. O povo só entrou no sistema político a partir da segunda metade do século 20, tendo sido logo contido por uma ditadura.

Quando falo do drama social que desautoriza celebrações me refiro, naturalmente, ao problema da desigualdade, que é de todos conhecido, mas sobre o qual, a meu ver, mais se fala do que se faz. Lembro alguns dados de amplo conhecimento. Segundo dados do IBGE, o auxílio emergencial criado para atender os mais necessitados, adicionado aos recursos do agora extinto Bolsa Família, abrangeu cerca de cem milhões de pessoas, quase a metade da população. Somos o oitavo país mais desigual do mundo e ocupamos a 84.ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano. Em 2010, o 1% mais rico da população detinha 44% da riqueza nacional. Ao mesmo tempo, há três décadas, estamos crescendo a taxas medíocres incapazes de gerar os empregos necessários e viabilizar políticas sociais mais substanciais. No entanto, apesar de termos uma das mais altas franquias eleitorais do mundo ocidental (16 anos), temos sido incapazes de aprovar no Congresso medidas redistributivas de renda, como o aumento do imposto sobre heranças, a taxação de dividendos, a alteração nas faixas do Imposto de Renda. Distribuímos, mas não redistribuímos.

Nossa faixa mais alta de Imposto de Renda é de 27,5%. Nos Estados Unidos, ela é de 37%, no Chile, é de 40%, em Portugal, de 48%, no Japão, de 56%. Estamos acumulando uma enorme massa de desempregados, subempregados e não empregáveis sem perspectiva realista de solucionar o problema. Olhando agora para a frente, mesmo que em prazos mais curtos do que os dos chineses, digamos uns 30 anos, podemos nos perguntar se ainda somos um país viável no sentido de sermos capazes de formarmos uma sociedade includente, sem a enorme marginalização que hoje a caracteriza.

A hipótese pode soar apocalíptica, mas talvez estejamos a brincar, ou a brigar, na praia, alheios ao tsunami que se delineia no horizonte.

*Formado na UFMG, mestre e PH.D em Ciência Política e pós-doutor em História pela Universidade de Stanford

O Estado de São Paulo

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