André de Souza e Adriana Mendes
O Globo
A médica infectologista Luana Araújo, que ficou menos de duas semanas como secretária de Enfrentamento à Covid-19 no Ministério da Saúde, comparou o tratamento precoce para a doença a ideia da terra plana. Ela chamou ainda de “delirante” a discussão sobre o uso de medicamento sem eficácia para tratar o coronavírus.
— Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente. Ainda estamos discutindo uma coisa sem cabimento. É como se estivéssemos discutindo de qual borda da terra plana vamos pular — disse, em resposta ao relator da comissão, Renan Calheiros (MDB-AL).
SEM INFECTOLOGISTAS – Luana disse ainda que desconhecia a existência de outro infectologista na pasta quando foi chamada para o cargo. Na comissão, em resposta ao senador governista Marcos Rogério (DEM-RO), que citou o número de especialistas em infectologia no Brasil, Luana afirmou que há poucos profissionais na área.
— Não conheci outro colega infectologista — afirmou, explicando que seria a única em nível de secretariado. Depois, disse: — Somos muito poucos. Deveríamos ser muito mais.
Mais tarde, em sua fala, o senador governista Luis Carlos Heinze (PP-RS) informou haver ao menos mais seis infectologistas no Ministério da Saúde.
INFORMAÇÕES INCORRETAS – O relator da CPI, Renan Calheiros, o primeiro a fazer perguntas, citou frases do presidente Jair Bolsonaro e questionou a médica sobre a defesa do mandatário pelo tratamento precoce e o estimulo à população em abandonar medidas não farmacológicas, como uso de máscara, distanciamento social, lavar as mãos. Luana respondeu:
— Eu vi declarações de muitas pessoas, também do presidente. A gente precisa multiplicar lideranças com informações corretas. Na hora que qualquer pessoa, independente do seu cargo, sua posição social, defende algo que não tem comprovação cientifica você expõe a população do seu grupo a uma situação de vulnerabilidade — disse Luana, completando: — Todo mundo que diz isso tem responsabilidade do que acontece depois.
A médica Luana Araújo, que foi vetada para o cargo de secretária de Enfrentamento à Covid-19 no Ministério da Saúde, disse que nunca discutiu com o ministro Marcelo Queiroga sobre o ‘tratamento precoce’. E afirmou que essa seria uma discussão delirante.
VÍDEOS DE BOLSONARO – Em outro momento da sessão, foram exibidos vídeos de Bolsonaro minimizando a pandemia. O senador de oposição Randolfe Rodrigues (Rede-AP), então, perguntou o impacto dessas declarações. Ela começou dizendo que gostaria que sua participação na CPI fosse técnica, mas em seguida disse:
“É uma situação muito difícil e muito complexa, triste para quem trabalha com infectologia, com saúde pública, para quem vê paciente, para quem testemunha as dificuldades e os horrores que a gente vem passando” — disse.
Depois, completou: “Não é possível ouvir uma declaração ou um conjunto de declarações de quem quer que seja, não estou personalizando na figura do presidente, sem sofrer um impacto quase que emocional. Além do racional, que a gente trabalha o dia inteiro. A mim, como médica, infectologista, epidemiologista, educadora em saúde, isso me suscita que eu preciso trabalhar mais, que eu preciso informar melhor as pessoas. A mim me parece que falta informação de qualidade. Quando obtém informação de qualidade, não é mais esse tipo de comportamento que a gente espera que aconteça. Então, a mim me dói”.
SEM NOMEAÇÃO – Luana foi convidada pelo ministro Marcelo Queiroga para ser secretária de Enfrentamento à Covid-19. Dias depois, quando a nomeação dela sequer tinha saído, ela deixou o ministério. Em audiência na Câmara, Queiroga deu a entender que houve veto de Bolsonaro. À CPI, a médica afirmou que “provavelmente não aceitaria” se fosse convidada hoje para o cargo, principalmente devido à exposição. Ela negou ter conhecimento de um “gabinete paralelo” no governo e também de ter conhecido o filho do presidente Carlos Bolsonaro ou outra pessoa da família.
Sobre as ameaças que recebeu, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) questionou se foram identificadas quem as fez. Luana disse que as ameaças sempre foram ligadas ao “pseudo tratamento precoce” e a medidas de tratamento não farmacológico que ela defende. A infectologista também lamentou qualquer possibilidade do veto ao seu nome para o cargo no ministério estar ligado a seu posicionamento em favor da ciência:
AUTONOMIA MÉDICA – Defensores do uso de remédios como a cloroquina contra a Covid-19 costumam citar a autonomia médica como justificativa. Luana disse, porém, que a autonomia é baseada em alguns pilares que precisam ser observados.
— Autonomia médica faz parte da nossa prática, mas não é licença para experimentação. A autonomia precisa ser defendida sim, mas com base em alguns pilares. No pilar da plausibilidade teórica do uso daquela medicação, do volume de conhecimento científico acumulado até aquele momento, no pilar da ética e no pilar da responsabilização. Quando junta tudo isso, você tem direito a uma autonomia e precisa fazer o melhor para seu paciente — disse Luana.
IMUNIDADE DE REBANHO – Em relação ao papel do Conselho Federal de Medicina (CFM), que também defende que o médico é autônomo e responsável pelos seus atos, Luana disse que é “bastante temerário colocar nas costas dos médicos” a responsabilidade de usar uma medicação que não tem eficácia. Ela citou, por exemplo, que muitos pacientes passaram a exigir medicamentos que não tem comprovação contra o coronavírus.
Já sobre a tese da imunidade de rebanho, que chegou a ser defendida por especialistas ligados a Bolsonaro, a médica infectologista afirmou que ela é impossível de ser atingida deixando o vírus circular entre a população. Ela destacou que isso é alcançado apenas pela vacinação.