O presidente eleito assume governo em país realmente dividido, no qual detém minoria na parte mais populosa e mais importante economicamente. Acertar na economia é vital, mas contar com impulso externo como no seu primeiro governo é estratégia de risco.
Por Fernando Dantas (foto)
A vitória apertadíssima de Luiz Inácio Lula da Silva sobre Jair Bolsonaro no segundo turno sinaliza tempos difíceis para o próximo presidente da República.
Praticamente metade do País votou em Bolsonaro, e é razoável supor que grande parte desse contingente nutra forte hostilidade em relação ao PT e a Lula.
Muito se falou que Bolsonaro “comprou” uma parcela considerável do seu quinhão de votos, distribuindo maciçamente, neste ano eleitoral, benefícios de caráter eleitoreiro a grandes segmentos da população.
Por esse raciocínio, parcela considerável dos votantes em Bolsonaro veio atrelada a esses benefícios, sendo volúvel politicamente e não necessariamente vinculada de forma mais forte ao presidente em exercício.
Entretanto, se é verdade que o governo Bolsonaro tentou aumentar sua votação com esse volume extraordinário de bondades eleitorais – que deixa consequências fiscais sérias para o futuro –, menos certo é que essa estratégia tenha obtido grande efeito.
Naturalmente, isso é algo difícil de medir, mas há alguns sinais. Tome-se, por exemplo, a votação no Nordeste, onde a maior proporção de pessoas na pobreza e na extrema pobreza constitui um fator importante – não o único, naturalmente – da hegemonia eleitoral de Lula e do PT na região.
Apesar da avalanche de benefícios eleitoreiros em 2022, a votação de Bolsonaro no Nordeste se mexeu muito pouco desde o primeiro turno de 2018. Tomando em ordem cronológica a proporção de votos válidos em Bolsonaro nas quatro votações para presidente do primeiro turno de 2018 ao segundo de 2022, os número são 31%, 30%, 27% e 31%.
É claro que é preciso levar em conta também as mudanças de votos de 2018 para 2022 entre os pobres de outras regiões e outros tipos de beneficiários das bondades eleitorais deste ano. Mas a rigidez da votação no Nordeste, que tem possivelmente a população proporcionalmente mais beneficiada por iniciativas como o Auxílio Emergencial, sinaliza que a “compra” de votos pode não ter sido tão eficaz.
E, supondo que essa última hipótese seja verdadeira, existe efetivamente quase metade do eleitorado do País que se identifica com o bolsonarismo – posicionamento político que tem com uma de suas principais características um belicoso antiesquerdismo, muito difícil de conciliar com um governo do PT, mesmo que este caminhe para o centro.
Outro dado notável é que Bolsonaro venceu com folga o segundo turno nas três regiões mais desenvolvidas do Brasil, obtendo 8,5 pontos porcentuais (pp) de diferença no Sudeste, e mais de 20pp no Sul e no Centro-Oeste. Entre as regiões menos desenvolvidas, houve praticamente empate no Norte, com ligeira vantagem para Lula, e a gigantesca diferença de quase 40pp no Nordeste, que elegeu o candidato petista.
Fica claro, portanto, que a maior e economicamente mais poderosa parte do País que Lula vai governar a partir de 2023 é provavelmente mais antipetista do que antibolsonarista, e nela Lula detém a minoria do eleitorado.
Quais são as implicações desse quadro eleitoral? É certo que o bolso do eleitor, a sua “parte mais sensível”, ajudaria Lula a atenuar a força do antibolsonarismo. A própria coluna argumentou que Bolsonaro não deve ter conseguido converter votos de forma maciça com seus benefícios eleitoreiros, mas isso é diferente de um crescimento econômico consistente, com todas suas implicações em renda, emprego, bem estar etc.
Para analisar as perspectivas de desempenho econômico do terceiro governo Lula, por outro lado, há que se levar em conta, em primeiro lugar, o ambiente externo para a economia, que será fundamental.
Como se sabe, nos seus dois primeiros mandatos, Lula foi embalado pelo grande boom de commodities que levou ao sucesso na época não só do governo no Brasil, mas também de diversos outros países latino-americanos – especialmente da América do Sul – nos quais as matérias-primas são muito importantes para a economia.
Os tempos mudaram, porém, depois do fim do boom de commodities, aproximadamente em 2012. Como indicou ontem em sua conta do Twitter o politólogo uruguaio Andrés Malamud, em dez eleições na América do Sul desde 2018, a oposição venceu nove (em ordem cronológica de anos, Colômbia, Brasil, Uruguai, Argentina, Bolívia, Equador, Peru, Chile, Colômbia e Brasil de novo – a exceção foi o Paraguai em 2018).
O cenário internacional à frente ainda é muito incerto. As commodities subiram bastante na saída da pandemia, mas já recuaram parcialmente, ainda se mantendo em nível alto. Muitos fatores peculiares ligados à pandemia e à guerra da Ucrânia interferiram nos preços das commodities recentemente, e é difícil inferir como evoluirão. Por outro lado, a desaceleração da China não contribui para valorizar as matérias-primas.
Outro traço do cenário externo atual no curto e médio prazo são inflação e juros altos em boa parte dos principais centros econômicos do globo, o que não é favorável para emergentes como o Brasil. E as projeções são de economia mundial em baixa velocidade à frente.
Pesando-se todos os fatores, parece arriscado para o novo governo brasileiro contar com uma maré internacional favorável como a de 2004-10 para embalar a economia, a arrecadação e políticas públicas generosas.
Diante de um quadro internacional mais desafiador, mesmo que não adverso, Lula terá que caprichar mais na qualidade da política econômica e arriscar menos na política fiscal. E isso significa caminhar de forma decidida para o centro não só na seara política, mas também na econômica.
A cartada inversa seria a de apostar no populismo gastador, que contaminou parcialmente seu segundo mandato e o governo Dilma, contando com um cenário internacional favorável, com grandes receitas por vir (como as do pré-sal) e com um timing em que um boom de bases frágeis durasse pelo menos até a próxima eleição, antes das inevitável ressaca. Um caminho de alto risco e extremamente danoso para o Brasil.
O Estado de São Paulo