Em 1964 os militares com forte colaboração da sociedade civil destituíram o então presidente João Goulart e implantaram uma ditadura quer perdurou por décadas, suprimindo as liberdades, perseguindo seus opositores, censurando a imprensa e qualquer manifestação cultural que contrariasse suas orientações.
Chico Buarque de Holanda, cantor, compositor e escritor, independente e compromissado com as liberdades e inconformado com o sistema repressivo reinante, gravou a música CHAME O LADRÃO e nela ele dizia: “acorda amor eu tive um pesadelo. Sonhei que tinha gente lá fora. Batendo no portão, que aflição. Era a dura, numa muita escura viatura. Minha santa criatura. ...Chame, chame o ladrão. E mais: Tem gente no vão as escada. Fazendo confusão, que aflição. São os homens. E eu aqui de pijama. Eu não gosto de passar vexame. Chama, chama, chame. Chame o ladrão, chame o ladrão.
Era a inversão de valores. Enquanto as forças de segurança que deveriam proporcionar segurança agiam ao contrário, satiricamente, o compositor pedia para chamar o ladrão como substitutivo da ação estatal.
Lembrei-me da música depois de tomar conhecimento de que Cortes de Justiça e Juízos contrariando a ordem natural das coisas, declinando do poder coercitivo que dispõe o Estado Jurisdicional, confessando a sua própria ineficiência para o cumprimento de suas decisões, sem que seja instituição financeira ou estabelecimento comercial, passaram a determinar a inscrição do nome de executados em banco de restrição ao crédito, na SERASA.
O TRT da 2ª Região que engloba São Paulo e região metropolitana e Campinas foi o pioneiro, o que, para mim, revela imoralidade e confissão da falência estatal, seguindo-se com as providências o TRT da 15ª Região, e agora, leio em site na internet, que o juiz da 2ª Vara de Família de Marília, em São Paulo, Dr. Rodrigo Machado de Melo, atendendo solicitação da Defensoria Pública (informação de Danielle Gaioto da agência Bom Dia, 25.11.2010), mandou incluir o nome de quatro devedores de pensão alimentícia em banco de restrição ao crédito.
A República Federativa dispõe dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, art. 2º da CF, cabendo ao Poder Judiciário administrar a justiça, aplicando as leis. Para execução dos seus julgados, o Poder dispõe de uma gama de instrumentos eficazes para materializar o direito tutelado, como expropriação de bens e alienação judicial.
Tamanha é a força do Estado Jurisdicional que a própria CF prevê a restrição da liberdade individual do cidadão mediante cumprimento de pena em regime fechado, aberto ou semi-aberto. Quem segrega pessoa e expropria bens, devidamente autorizado pela norma constitucional, não poderá se socorrer a terceiros, sob pena de privatização na administração da justiça.
A chamada reforma do Poder Judiciário - EC 45, financiada com recursos do Banco Mundial, destinada a suprimir direitos e preservar os interesses das grandes corporações financeiras, desburocratizou o processo de execução, levando, em razão disso, os diversos Judiciários, a, desmedidamente, bloquear ativos financeiros dos executados, muitas vezes, sem oportunizar a nomeação de bens e pondo em risco a sobrevivências das empresas devedoras, o que foi limitado por decisões recentes do STJ que somente passou a admitir à prática processual depois de exauridas as diligências para localização de bens do devedor, fazendo o credor a prova da inexistência de bens.
A denominada “penhora on line” criação do Judiciário do Trabalho, tem seu momento de incidência, não sendo permitida, se o devedor citado nomeia bens com valor suficiente para garantir o juízo da execução. Embora resultado do Judiciário do Trabalho, este, salvo as exceções de alguns magistrados, tem seguido o devido processo legal e a orientação do provimento da Corregedoria do TST. Não raro as Corregedorias e o TST têm se chamados para desconstituir tais atos de ilegalidades, depois de tortuosos caminhos e os tortuosos caminhos recursais.
Depois da Lei nº. 11.382, de 06.l2.2006 que alterou substancialmente o processo de execução, os juízes federais, aplicando a norma geral – CPC -, a procedimento de natureza especial –LEF -, passaram a bloquear ativos financeiros dos devedores de forma avassaladora, bastando apenas de requerimento da União no sentido. Residem ainda algumas iniciativas, já limitadas pelo STJ.
Com a inclusão de executado em bancos de restrição ao crédito, na prática, é como se estivéssemos privatizando as execuções judiciais. Doravante, proferida a sentença e transitada ela em julgado, o credor pedirá a inscrição do nome do devedor em banco de restrição ao crédito, no caso, a SERASA, e aguardará para que um dia o devedor, precisando regularizar o seu crédito, pague o débito executado.
Vivemos em sociedade capitalista e a preservação do crédito se traduz como um bem. O cidadão com restrição ao crédito passou a ser um meio cidadão. Para desgosto de alguns, nos últimos quatros anos o Brasil se desenvolveu e a expansão do crédito proporcionou a inserção social e o acesso a bens de consumo para os menos favorecidos. Os números recordes na produção e venda de veículos e produtos da linha branca são exemplos. Em razão da facilidade de acesso ao crédito é que foi possível ao menos favorecido adquirir a casa própria, freqüentar aeroportos e adquirir veículos financiados em longo prazo.
Quando o Estado Jurisdicional que dispõe de instrumentos eficazes declina de suas próprias atividades para buscar socorro a entidades privadas, verificamos que o Estado Nacional se converteu em um ente capenga. Ihering na brilhante obra “A Luta pelo Direito” já chamava a atenção: "A justiça tem numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal, a balança sem a espada é a impotência do direito"
A EC 45 e as leis inferiores dela decorrentes concederam excesso de poder as Cortes de Justiça e aos juízes, mascarando uma realidade de que o problema da ineficiência do Estado Jurisdicional não reside no cume da pirâmide, e sim, na base, na ponta da corda. Há excesso de poder e as violações do “devido processo legal” tem sido de difícil correção pelos obstáculos criados para o recebimento de recursos.
Quando os judiciários se socorrem ao particular para o desempenho de suas próprias funções, decreta-se a falência da Justiça. Pensei que a má administração a ineficiência da Justiça no Brasil somente tivesse endereço apenas no Estado da Bahia. Agora vejo que me enganei. Em São Paulo, se antecipa na decretação da justiça brasileira. O que vale dizer, a SERASA é mais temerosa do que as decisões judiciais.
A permitir ao Estado se socorrer dos particulares na administração da justiça, será o mesmo que se declinar da democracia para governo de um só poder, com risco, de que, de futuro, se um credor não recebe o seu crédito, fica autorizado a invadir casa do devedor e lhe despojar dos bens, ou, se no direito criminal, que o ofendido fique autorizado a impor o castigo ao ofensor.
RELEXÃO. Depois de mais de 10 anos participei de uma sessão do Tribunal do Júri. Eram dois os acusados da prática de três crimes, estupro seguido de morte e ocultação de cadáver. Meu cliente foi absolvido de duas imputações e condenado por homicídio. A sessão foi conturbada e não se observou o devido processo legal. Como não havia nos autos uma única prova da autoria de qualquer dos crimes, fiquei consciente de que participei de “erro judiciário”. Já ingressei com recurso de apelação e comecei uma dura e árdua batalha para a corrigenda de uma manifesta injustiça. Em razão da violência banalizada no Brasil, há um equívoco que para fazer justiça tem que se condenar. É preciso uma reflexão.
FRASE DA SEMANA. "Não é a imprensa que faz a opinião, mas a opinião que faz a imprensa." Rui Barbosa.
Paulo Afonso – BA, 03 de dezembro de 2010.
Antonio Fernando Dantas Montalvão.
OAB.Sec.-BA 4425.