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domingo, abril 23, 2023

Quem é o Brasil no concerto das nações




O projeto de paz lulístico não foi adiante, e o país fica agora virando as páginas da partitura para quem toca os pratos.

Por Orlando Tosetto para a Crusoé:

Imagine o amigo que o príncipe regente de Andorra visse na Guerra do Paraguai uma oportunidade de aumentar a relevância do seu país no tabuleiro internacional e se metesse a formular e anunciar um “plano de paz” para o conflito, aproveitando-se da sua neutralidade. E que esse plano fosse muito simples: o Brasil ceder o Mato Grosso a Solano López. E que o príncipe andorrano fosse além e ainda pusesse no Brasil uma parte da culpa pela guerra, talvez por ostentar diante da grama rala paraguaia nosso mato tão grossão, tão cheio de veios.

Bem comparando, essa foi a ideia que o nosso jamais assaz louvado presidente apresentou ao mundo para resolver a pamonha lá na Ucrânia: que ela cedesse a Crimeia à Rússia. E deu seus motivos. O primeiro é que, convenhamos, uma Crimeia a mais, uma Crimeia a menos, que diferença faz? O segundo é que ela, Ucrânia, também não tem nada de inocente nessa história. Alguma coisa ela há de ter feito para ser assim invadida, bombardeada, massacrada; de algum modo ela atiçou a Rússia. Ostentou uma Crimeia, pavoneou uma Odessa, sabe-se lá. De graça é que não foi.

O projeto de paz lulístico não foi adiante: por qualquer motivo inexplicável, a Ucrânia, seus aliados e a Otan não aceitaram esse plano sem jaças. Pelo contrário: até insinuaram, maldosamente, que o Brasil não está neutro, que está dormindo demais no barulho (e que barulho) da Rússia, quem sabe em troca de uma miçanga de gás, de um espelhinho de fertilizante. Pegou mal com a Ucrânia, com a Otan, com todo o mundo, menos com a Rússia.

Depois disso, o senhor presidente foi à China e lá, cercado por crianças que lhe sorriam com flores nos braços — tal e qual sem dúvida aconteceria se ele resolvesse dar uma volta pela Praça XV ou pelo Largo da Concórdia —, ele disse que o Brasil apoia essa história de China una, porque a China é, sim, uma só (o que, na conversa da China, significa que Taiwan é menos que uma, é nenhuma). Pegou mal de novo, desta vez com Taiwan, com o Japão, com a Coreia do Sul, com os Estados Unidos, com os pacifistas e até com os veganos.

Por fim, o senhor presidente aceitou receber o chanceler russo, que veio ver também outros países relevantes da região, outros players pesados como Venezuela, Nicarágua e Cuba, todos governados por gente muito cara ao coração do novo governo velho. E aceitou receber o chanceler não meramente como amigo, mas sim como alguém de casa: como o jornalista Duda Teixeira bem notou nesta revista, o chanceler aportou na terra brasilis em trajes de casual friday. Chegou guapo, de tênis e agasalho, e murmura-se que foi só a muito custo que o convenceram a não ir jantar no Alvorada de havaianas, bermuda e camisa regata. Murmuram, mas, da minha parte, vejo nisso um gesto simpático: nossa fama de terra acolhedora não é casual. Ganhamos em carinho o que talvez percamos em formalidade, mas tudo bem, a gente prefere assim mesmo.

E, mesmo assim, pegou mal outra vez. Os países que até há pouco eram nossos amigos reclamaram muito do Brasil aparecer por aí de braço dado com China e Rússia, todo simpático às aspirações delas, todo deferente, todo lencinhos, flores e risadinhas abafadas. Conhecendo o Brasil, tiraram o país de trouxa.

Mas não, não, não é nada disso. A verdade é que, no concerto das nações, o Brasil fica virando as páginas da partitura para quem toca os pratos. No simpósio das nações, o Brasil é o cara que vai e volta da cozinha com as garrafas térmicas de café. No teatro das nações, o Brasil recebe gorjetas nas portas dos camarotes. No baile das nações, o Brasil é o gordão meio bobo que usa calças pula-brejo e é largado na sala das crianças. No tabuleiro das nações, o Brasil é a cocada que sobra.

Pelo visto, nossa volta ao teatro das nações, nosso retorno do ostracismo começou com o pé esquerdo.


“Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”, disse, pela pena do Machado, o bom Brás Cubas.

O Brasil – Marcela boa, Marcela humilde, Marcela sempre sorridente, Marcela Amélia, Marcela do trisal – amará China e Rússia por muito mais tempo e custará, comparativamente, muito menos.

Revista Crusoé

Gritei tão alto que desmaiei’: Talibã volta a usar antigos métodos de tortura




Jornalistas mostram marcas de espancamento pelo Talibã em Cabul

Relatos coletados pela CNN mostram como pessoas são punidas com detenções e espancamentos por 'descumprirem' regras impostas pelo grupo

Mohammad Zafri diz que sua memória está confusa depois de sobreviver a espancamentos implacáveis do Talibã. Mas um evento difícil de esquecer foi ser convocado na primavera passada para a sede do grupo militante para coletar documentos que ele havia deixado para trás, tendo sido funcionário do governo anterior, apoiado internacionalmente. Não querendo causar problemas, ele foi – apenas para perceber tarde demais que era uma armadilha.

Zafri – cujo nome verdadeiro a CNN não divulga por motivos de segurança – disse que estava do lado de fora dos escritórios do Talibã quando sentiu um forte soco na nuca. Ele caiu no chão e foi arrastado para dentro, ele lembrou.

“Havia cerca de 12 membros do Talibã me cercando, eles me amarraram a uma cadeira e começaram a me bater por todos os lados”, disse Zafri à CNN.

O homem de 36 anos alegou que foi detido e torturado por quase quatro meses, depois que o Talibã o acusou de conspirar contra eles trabalhando com a Frente de Resistência Nacional (NRF), um grupo guerrilheiro que travava uma guerra contra o Talibã.

“Eles tentaram me estrangular e sufocar amarrando um saco plástico em meu rosto, dizendo-me para confessar que trabalhava para a NRF”, disse ele. “Mas como nunca participei, não confessei… Aí me penduraram de cabeça para baixo, uma vez pelos pés, outra pelas mãos.”

Ele acrescentou: “Eu gritei tão alto que desmaiei por causa do trauma”.

Voltando ao seu antigo método

Na época de sua rápida tomada de poder em agosto de 2021, o Talibã rapidamente apresentou uma imagem nova e reformada, relativamente progressista, inclusiva e contida em comparação com seu regime repressivo anterior, de 1996 a 2001.

Uma das promessas que o grupo fez foi que não buscaria retaliação contra seus inimigos políticos. Mas esta e outras promessas foram descartadas desde então, já que o Talibã montou um ataque contínuo aos direitos das mulheres, perseguiu grupos minoritários e fez ex-funcionários desaparecerem à força, de acordo com grupos de direitos humanos – causando medo nos corações da maioria dos afegãos.

Em um movimento vindo direto das páginas de seu antigo manual, em novembro o Talibã ordenou que os juízes impusessem uma interpretação estrita da lei islâmica sob a qual as penalidades para ofensas percebidas podem incluir execuções públicas, açoitamento e amputações, o tipo de punição corporal brutal que era um característica notória de seu governo passado. Semanas depois, o grupo islâmico realizou a primeira execução pública conhecida no país desde que voltou ao poder.

Embora não haja números oficiais disponíveis, um relatório deste ano do relator especial das Nações Unidas sobre direitos humanos no Afeganistão, Richard Bennett, disse que as autoridades teriam açoitado mais de 180 pessoas entre 18 de novembro de 2022 e 15 de janeiro. De acordo com o relatório, homens, mulheres e crianças estavam entre os acusados de crimes como roubo, relacionamentos ilegítimos ou “violação de códigos de comportamento social”.

O relatório, publicado em 9 de fevereiro, observa que a violação sistemática dos direitos humanos de mulheres e meninas no país “se aprofundou ainda mais” desde a apresentação inicial de Bennett de suas descobertas e acusa o Talibã de usar “medo e políticas repressivas” para reprimir comunidades.

A CNN abordou outros afegãos que teriam sido vítimas do regime do Talibã, mas eles se recusaram a falar oficialmente por medo de represálias. Com as restrições da mídia dentro do país afetando severamente a capacidade dos jornalistas de responsabilizar o poder, o Talibã não enfrenta nenhuma responsabilidade real por suas ações.

A CNN procurou o Talibã para obter uma resposta sobre os números detalhados no relatório de Bennett e as reivindicações das vítimas de detenção, tortura e silêncio forçado, mas ainda não recebeu uma resposta.

Punição necessária para ‘reformar a sociedade’

Apesar do controle rígido do Talibã sobre os meios de comunicação e o uso das mídias sociais pelas pessoas, os vídeos ainda conseguem aparecer on-line, lançando luz sobre a vida sob seu domínio.

O Afghan Witness, um grupo independente de direitos humanos que verifica informações sobre os eventos atuais no Afeganistão, disse à CNN que, embora alguns casos de abusos de direitos humanos no país tenham surgido, a verdadeira escala é provavelmente muito maior.

“Às vezes, as vítimas não são identificadas, às vezes os perpetradores não são identificados. No geral, os números reais são provavelmente muito maiores”, disse David Osborn, líder da equipe da Afghan Witness.

Em janeiro, um vídeo filmado no estádio de futebol de Kandahar que mostrava homens e mulheres sendo açoitados publicamente na frente de milhares de espectadores causou ondas de choque quando foi publicado online. A punição pública foi aprovada pela Suprema Corte do Afeganistão, que disse que nove “criminosos” foram punidos por roubo e adultério.

O vídeo em Kandahar foi gravado em um celular por um afegão para quem a CNN está usando o pseudônimo de Sibghatullah, por questões de segurança. Ele disse que cerca de 5 mil pessoas estavam lá para testemunhar o açoitamento e que, antes de começar, as autoridades do Talibã disseram que a punição era necessária para “reformar a sociedade”.

“Senti que aqueles que foram punidos tinham vergonha [do que fizeram] por isso não gritaram enquanto eram punidos… Não fiquei feliz por terem sido punidos publicamente”, disse ele.

Sibghatullah acrescentou que começou a gravar para que o maior número possível de pessoas pudesse ver o que estava acontecendo, embora os telefones fossem proibidos e ele próprio corresse o risco de ser punido se fosse pego.

“Países ao redor do mundo sabem como são os talibãs, porque ainda mantêm relações com eles, e a comunidade internacional pode ver tudo com seus próprios olhos”, afirmou. “Eu só fiz este vídeo para as pessoas (comuns) verem (o que estava acontecendo).”

Enquanto isso, a segurança e o bem-estar dos jornalistas afegãos estão sob crescente ameaça.

Desde agosto de 2021, foram registrados 245 casos de violação de direitos contra a imprensa, incluindo 130 casos de detenção, segundo o relatório de Bennett. Muitos jornalistas locais enfrentam perseguições, ataques e detenções, o que os deixa com medo de falar ou publicar qualquer coisa que contradiga a mensagem do Talibã.

É algo que Zabihullah Noori, que trabalhou como jornalista por cerca de oito anos na Rádio Takharistan, sabe muito bem.

Zabihullah Noori, 27, tem hematomas nas pernas que diz terem sido infligidos pelo Talibã'

‘Achei que ia morrer’

Noori disse à CNN que estava com sua família quando até 30 membros do Talibã invadiram sua casa na cidade de Taloqan, no nordeste do Afeganistão, em dezembro e espancaram Noori e seus irmãos. Ele disse que eles os atingiram com rifles por causa dos relatórios que ele produziu, que Noori disse incluir uma “mensagem anti-Talibã” publicada antes de seu retorno ao poder.

“Assim que cheguei ao departamento de inteligência (escritórios do Talibã), eles começaram a me espancar com varas elétricas, chicotes e amarraram um saco plástico preto no meu rosto tentando me sufocar”, disse Noori.

“Tentei dizer a eles que sou um repórter e faço reportagens sobre todas as realidades, seja contra o Talibã ou contra o governo anterior”, continuou ele. Noori disse que suas razões não satisfizeram os membros do Talibã e eles continuaram a dizer que ele estava trabalhando com os “infiéis” e “divulgando propaganda”.

“Eles me disseram para ligar para minha mãe, só para ela me ouvir gritar; pensei que fosse morrer”, disse ele.

'Noori diz que foi atingido por seus captores talibãs nas pernas e nas costas com uma haste de metal'

Na primeira noite, disse Noori, seus captores amarraram suas mãos atrás das costas e bateram em suas pernas com uma barra de metal, o que o deixou com muitos hematomas. Após horas de tortura, o Talibã o deixou em uma cela durante a noite e o torturou novamente no dia seguinte, acrescentou.

No terceiro dia, o homem de 27 anos foi libertado depois que os anciãos da comunidade – que o Talibã tinha em alta consideração – escreveram uma carta em nome de sua mãe, vista pela CNN, implorando por seu retorno.

'Ex-jornalista e funcionária da ONU, Torpekai Amarkhel, 42, morreu na costa da Itália em fevereiro depois de fugir do Afeganistão'

Muitos outros afegãos tentaram fugir do país desde que o Talibã retomou o poder, mas nem todos sobreviveram.

Entre aqueles que perderam suas vidas enquanto tentavam começar uma nova vida está a ex-jornalista afegã e funcionária da ONU, Torpekai Amarkhel, 42, que foi uma dos mais de 60 migrantes que morreram depois de embarcar na perigosa jornada para a costa da Calábria na Itália em fevereiro com seu família. Após sua morte, a secretária-geral da Anistia Internacional, Agnes Callamard, twittou “seu afogamento simboliza a traição de uma nação”.

Fereshta Abbasi, pesquisadora da Human Rights Watch, disse à CNN que, desde o retorno do Talibã, um jornalista local disse a ela como o cenário da mídia é sombrio, ameaçando a liberdade de expressão.

“Tínhamos um grande número de meios de comunicação no Afeganistão, tínhamos muitos jornais, programas de TV [onde] as mulheres estavam envolvidas”, disse Abbasi.

“A liberdade de expressão e mídia no Afeganistão foi uma das maiores conquistas do país, que infelizmente acabou.”

Enquanto isso, Zafri continua preso no Afeganistão, apesar das repetidas tentativas de sair após sua detenção e tortura pelo Talibã. Ele disse que agora perdeu a esperança de tentar partir, embora ele e sua família estejam vivendo em condições terríveis.

Ele acrescentou, porém, que se algum dia conseguisse alcançar a segurança, gostaria de escrever um livro sobre seu tempo na prisão.

“Se eu contar tudo sobre as atrocidades do Talibã nas prisões e a opressão dos prisioneiros que testemunhei com meus próprios olhos, talvez ninguém aceite ou talvez digam que sou louco”, disse Zafri.

Com informações de Ehsan Popalzai

CNN

Lula e os putinistas dos outros




A megalomania do Presidente Lula só diz respeito aos brasileiros, excepto quando acaba por contaminar o debate político em Portugal. É o que está a acontecer. E o PS tem culpa.

Por Miguel Pinheiro (foto)

Esta semana, no jantar de aniversário dos 50 anos do PS, Felipe González ficou sentado à esquerda de António Costa. Há aqui uma história interessante. No primeiro congresso do partido, em Dezembro de 1974, Mário Soares estava a ser ameaçado pela ala radical do PS. Dias antes, Vítor Cunha Rego, que ele encarregara de organizar o Congresso e que, por isso, percorreu o país a falar com as estruturas locais e com os militantes, voltou a Lisboa sobressaltado: “Está tudo perdido. Há gente organizada para tomar o PS de assalto por dentro.”

No primeiro dia do Congresso, como contou mais tarde a Maria João Avillez no seu livro-entrevista, Mário Soares entrou na Aula Magna aos empurrões e foi mesmo forçado a identificar-se à porta, numa tentativa de intimidação. Lá dentro, havia homens armados. Como sempre, Soares não se assustou com aquilo que descreveu como “uma situação delicadíssima”.

Para travar os radicais de esquerda no partido, que tinham o incentivo do PCP, Soares contava com ajuda do estrangeiro. Além de ter convidado o líder do PSOE, Felipe González, recebeu também em Lisboa Santiago Carrillo. A estratégia era simples: se o secretário-geral do Partido Comunista espanhol o apoiasse publicamente isso impedia que os adversários internos o acusassem de ser um lacaio da direita. Isso obrigou-o a tomar uma decisão difícil. Como havia demasiadas pessoas inscritas para falar, pediu a Santiago Carrillo que discursasse e a Felipe González que ficasse em silêncio. Furibundo, o líder do PSOE abandonou o Congresso mais cedo, mas antes atirou a Soares: “Pois é, os comunistas dos outros são sempre melhores do que os nossos”.

Agora, quase 50 anos depois, Felipe González fez as pazes com o PS e ficou no jantar com Costa até ao fim — mas o PS continua a procurar equilíbrios impossíveis. Colocando-se numa trapalhada diplomática escusada, os socialistas acabaram por misturar a visita de Lula da Silva a Portugal com as comemorações do 25 de Abril. Uma situação que já era má tornou-se pior com as declarações do Presidente brasileiro sobre a guerra na Ucrânia.

Nos últimos dias, Lula da Silva tem andado a exibir-se pelo planeta a replicar os argumentos de Vladimir Putin, a receber o ministro dos Negócios Estrangeiros russo e a sorrir para as câmaras. Há razões conhecidas para isso: o Brasil quer há décadas liderar um bloco de países “não alinhados” para se apresentar ao mundo como uma grande potência. Para acelerar isso, pretende que o levem a sério como potencial mediador do conflito.

A megalomania do Presidente Lula só diz respeito aos brasileiros, excepto quando acaba por contaminar o debate político em Portugal. É o que está a acontecer. Quando Lula diz o que diz e defende o que defende, empresta legitimidade e força àqueles que simpatizam com a causa russa; e introduz a dúvida e a incerteza naqueles que o veem como um líder da verdadeira esquerda. Há dias, ouvimos Jamila Madeira a defender, enquanto porta-voz do PS, que é necessário “tentar procurar o mais possível que, no quadro mundial, se retome a premissa da paz”. Trata-se de uma falácia amplificada diariamente por Lula: é falso que todas as guerras terminem com uma negociação de paz que implique cedências de ambas as partes. A Segunda Guerra Mundial, por exemplo, acabou com uma rendição incondicional; a guerra do Vietname acabou com um abandono. A História mostra que a paz pode chegar por uma vitória e não por um acordo.

No meio do tumulto internacional provocado pelo Presidente do Brasil, estamos assim: por vontade do PS, no dia 25 de Abril vamos ter Lula da Silva a discursar no Parlamento português. É como dizia Felipe González: os putinistas dos outros são sempre melhores do que os nossos.

Observador (PT)

23 Os dois lados da estratégia da China para tentar se tornar a maior potência global




O presidente chinês Xi Jinping 

Por Tessa Wong

No dia 15 de abril, poucas horas depois do chá entre o presidente chinês, Xi Jinping, e o presidente da França, Emmanuel Macron, pedindo a paz na Ucrânia, jatos de combate voaram sobre o estreito de Taiwan, em uma demonstração do poderio militar chinês.

Com a intenção de intimidar Taiwan, os exercícios chineses começaram no dia seguinte à visita de Estado de Macron, que marcou um ponto importante para a diplomacia chinesa.

Esta dissonante simultaneidade foi o exemplo mais recente das duas faces que a China vem apresentando ao mundo: de um lado, uma pomba da paz - um país pacifista e conciliador internacional; de outro, um cão de guarda, mostrando seus dentes para defender o que considera ser seu território.

Poderá Pequim manter esta estratégia?

No campo diplomático, a China não perdeu tempo desde o isolamento causado pela pandemia. Nos últimos meses, o presidente Xi reuniu-se com o presidente russo, Vladimir Putin; recebeu diversos líderes mundiais, incluindo o presidente Lula; enviou o importante diplomata Wang Yi para cortejar a Europa; e apresentou uma proposta de solução com 12 pontos para a guerra na Ucrânia.

Pequim também intermediou um acordo entre o Irã e a Arábia Saudita, em um dos maiores feitos diplomáticos da China. É muito significativo este acordo no Oriente Médico, onde as intervenções norte-americanas vêm mergulhando em fracassos e dificuldades.

Ao mesmo tempo, Pequim publicou diversas propostas de segurança global e desenvolvimento - um claro sinal de que está atraindo para si o chamado "sul global", como fez com a Nova Rota da Seda, uma iniciativa que despejou bilhões de dólares em outros países.

A China pareceu até reduzir o tom da sua retórica de confrontação do "lobo guerreiro", transferindo de cargo o controverso diplomata Zhao Lijian e promovendo figuras mais equilibradas como Wang Yi e Qin Gang - embora Xi Jinping continue a incentivar seus diplomatas a mostrar "espírito combativo".

O 'sonho chinês'

Esta mudança diplomática, que posiciona a China como importante negociador global, pode ter suas raízes no antigo conceito nacionalista do "rejuvenescimento da nação chinesa", que propõe que a China reivindique sua posição central no planeta.

Apresentado mais recentemente por Xi Jinping ao chegar ao poder como o "Sonho Chinês", o conceito reflete o governo atual e sua "confiança no próprio caminho e foco na modernização", segundo o professor de política e relações internacionais Zhang Xin, da Universidade Normal do Leste da China.

Mas não é apenas questão de divulgar as ideias chinesas para o mundo. Grande parte do conceito também pretende reforçar os laços econômicos globais.

"O presidente Xi sabe que não pode rejuvenescer a nação chinesa sem uma boa economia", afirma Neil Thomas, acadêmico de política chinesa do Instituto de Política da Asia Society. "A China precisa continuar a crescer enquanto adquire influência diplomática."

"Você não pode fazer isso se isolando do Ocidente. Você ainda precisa manter boas relações econômicas", prossegue o professor. "Isso exige diplomacia e abandono dos aspectos mais [fortes do] 'lobo guerreiro'."

Mas a principal razão do recente turbilhão diplomático é o fato de que a China se sente cada vez mais sitiada.

'Logo que chegou ao poder, em 2013, Xi Jinping apresentou a ideia do ‘Sonho Chinês’

As suspeitas do Ocidente resultaram em pactos de defesa mais abrangentes, como os acordos Aukus (entre a Austrália, Reino Unido e EUA) e Quad (Japão, EUA, Austrália e Índia), além de restrições sobre o acesso chinês a tecnologias avançadas.

Em março, o presidente Xi acusou "os países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos" de "contenção, cerco e supressão da China, o que trouxe desafios graves e sem precedentes ao desenvolvimento do nosso país".

Esta é uma sensação que se ampliou no ano passado, com a guerra na Ucrânia e o fortalecimento dos laços entre os países da Otan, segundo o acadêmico não residente Ian Chong, do instituto Carnegie China.

"Pequim percebeu que os Estados Unidos têm muitos amigos poderosos", afirma ele. "Os chineses sentem mais essa contenção, o que lhes dá mais ímpeto para sair dela."

É por isso que o "mundo mutipolarizado", com diversos centros de poder, é uma bandeira importante da estratégia chinesa. Pequim promove esta ideia como alternativa ao que chama de "hegemonia norte-americana", que, na sua visão, forçou os países a formar blocos de poder, o que agrava as tensões.

A posição chinesa ficou evidente durante a visita de Macron, quando Xi conclamou a Europa a pensar em si própria como "polo independente", reforçando a retórica do presidente francês sobre "autonomia estratégica".

Ofensiva sedutora

Enquanto Pequim argumenta que uma distribuição de poder mais equilibrada aumentaria a segurança do planeta, outros consideram que se trata de uma tentativa de afastar os países da órbita americana e aproximá-los da influência chinesa.

A China costuma destacar os fracassos da política externa norte-americana no Iraque e no Afeganistão e projetar-se como um país sem sangue nas mãos, indicando que seria um candidato melhor a liderar o mundo. E uma linha comum da retórica chinesa afirma que a China comunista nunca invadiu outro país, nem combateu guerras por procuração.

Mas a China anexou o Tibet e participou da guerra do Vietnã. E o país foi também acusado de conquistas territoriais em recentes conflitos de fronteira com a Índia e em disputas marítimas com diversos países no Mar do Sul da China. E ainda considera Taiwan, com seu governo próprio, uma província rebelde, que prometeu recuperar usando a força, se for necessário.

Com tudo isso, será que a ofensiva sedutora está funcionando?

No "sul global" e em outros países não tão alinhados com a China ou com os Estados Unidos, provavelmente ela está sendo bem-vinda. A China está adotando uma estratégia de mediação não coercitiva, que teria "apelo amplo", segundo Zhang.

Esta ideia de não interferência seria particularmente bem recebida em países com governos autoritários. "Muitos países não têm preocupação com a democracia e os direitos humanos e a China seria sua defensora na governança global", segundo Thomas.

Mas "não se sabe se eles estão suficientemente de acordo, a ponto de se arriscar pela China", ressalta Chong.

Existem limites que esses países não cruzam, como se viu na votação sobre a guerra na Ucrânia, nas Nações Unidas. A maioria dos países decidiu condenar a invasão, enquanto a China se absteve.

Enquanto isso, aliados tradicionais dos Estados Unidos, como a Europa, continuam a debater como lidar com a abertura chinesa.

Alguns deles não parecem se influenciar facilmente, como a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Ela adotou um tom mais austero com o presidente Xi ao acompanhar Macron à capital chinesa. Mas outros líderes, dispostos a preservar as relações econômicas dos seus países com a China, foram mais abertos.

Durante sua visita, o presidente Macron foi generosamente tratado pelos chineses, que organizaram uma parada militar para recebê-lo. E, em um gesto incomum, Xi o acompanhou pessoalmente à cidade de Guangzhou, no sul do país, onde afirmou que os dois são "amigos do peito".

Macron afirmou aos repórteres posteriormente que a Europa não teria interesse em se envolver com Taiwan e "ficar presa em uma crise que não é nossa". Desde então, ele defendeu seus comentários, ressaltando que ser aliado dos Estados Unidos não significar ser seu "vassalo".

'A reunião entre a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, e o presidente do Congresso americano, Kevin McCarthy, irritou profundamente a China'

Para alguns, isso prova que o apelo do presidente Xi funcionou.

A Europa está se tornando o "campo de batalha central" das relações entre a China e os Estados Unidos. É o "fiel da balança" - quem ela apoiar sairá favorecido, segundo Thomas.

Mas, por enquanto, Macron é um dissidente entre os líderes europeus. Seus comentários geraram críticas e a Alemanha enviou seu ministro do Exterior para Pequim, reforçando a posição mais rígida da União Europeia sobre Taiwan.

Thomas afirma que a Europa pode estar dividindo suas apostas entre Washington e Pequim, mas "ela sabe que a melhor aposta ainda está com os Estados Unidos".

A questão taiwanesa

A ofensiva sedutora chinesa começa a se desfazer quando o assunto é Taiwan.

Os recentes exercícios militares de Pequim - lançados em resposta à reunião da presidente taiwanesa, Tsai Ing-wen, ao presidente do Congresso norte-americano, Kevin McCarthy - trouxeram o conjunto habitual de táticas, com aviões e navios de guerra simulando ataques à ilha.

Taiwan acusa a China de ter aumentado as incursões à sua zona de defesa aérea nos últimos anos, com aviões militares chineses excursionando centenas de vezes todo mês.

Analistas afirmam que estas medidas prejudicam as tentativas da China de ser vista como pacificadora. Embora outros países considerem esses exercícios uma agressão militar, Pequim sempre insistiu que são ações defensivas e, portanto, uma questão doméstica.

Mas uma guerra sobre Taiwan teria consequências mundiais, segundo Ian Chong. A ilha produz 60% dos semicondutores do mundo e fica no cruzamento de algumas das mais movimentadas rotas marítimas e cabos submarinos de telecomunicações do planeta, que conectam a Europa à Ásia.

A China também não pode ignorar o fato de que será considerada culpada, ao menos parcialmente, por desestabilizar a Ásia, no caso de um conflito.

A maioria dos observadores acredita que a China não pretende invadir Taiwan no curto prazo. Mas a preocupação é que a escalada militar possa levar a um erro de cálculo perigoso e à guerra contra os Estados Unidos, que se comprometeram a ajudar na defesa de Taiwan se a ilha for atacada.

"Xi Jinping está tentando reviver a presença diplomática [chinesa], ao mesmo tempo em que projeta sua força sobre a questão de Taiwan", afirma Neil Thomas. "Irá ficar cada vez mais difícil equilibrar esses objetivos, à medida que mais países se preocupem com a capacidade da China de atacar Taiwan."

Enquanto Pequim amplia sua campanha para ganhar o mundo, o escrutínio sobre suas ações passa a ser cada vez mais rigoroso. Em breve, ela precisará decidir se será o cão de guarda ou a pomba da paz.

Com reportagem adicional de Grace Tsoi.

BBC Brasil

Ranhuras no império americano




Por Marcos Azambuja, diplomata

Hegemonia sob ameaça

Embora já tenha sido previsto não poucas vezes no passado, o declínio do império norte-americano me parece hoje inegável. Os Estados Unidos enfrentam de uns anos para cá um desafio à sua hegemonia que foi em vários momentos virtualmente exclusiva. Devem fazer agora a transição de um mundo uni ou bipolar para a geometria mais complexa e exigente de um mundo multipolar. É da natureza dos impérios nascerem, crescerem, se consolidarem e enfrentarem seu ocaso. Ocaso este que, em relação aos Estados Unidos, não será súbito, mas provavelmente muito lento e gradual. Os Estados Unidos não deixarão de ser, até onde a vista enxerga, uma potência de primeira grandeza. Mas perderão a primazia virtualmente solitária que hoje detêm, como aconteceu no passado com o império britânico. Não preciso ir mais longe no tempo, mas os exemplos de processos de expansão, apogeu e ocaso de impérios são muitos e parecem ciclos quase inexoráveis, apesar de acontecerem em velocidades e circunstâncias históricas muito diversas.

Ciclo natural

Impérios não costumam nascer impérios, mas surgem em países na sua origem relativamente pequenos ou militarmente fracos que, no entanto, se transformam em sede e cabeça de poderosas entidades. A pequena Holanda criou um vasto império marítimo. Portugal, diminuto, construiu e defendeu o seu. Espanha e França por longos períodos conservaram seus vastos impérios. O mais poderoso de todos, por extensão e por influência, nos tempos modernos, foi o império britânico que, em determinado momento, controlava mais da metade do nosso planeta. Diferentes deles, que projetavam sua autoridade e ambições através do poder naval e administrações coloniais funcionando muito além de suas fronteiras, estão hoje países como a Rússia, a China, a Índia e o Brasil. Escolhi arbitrariamente os quatro grandes sócios originais formadores do clube dos Brics, que, por sua população e extensão territorial, recursos naturais e por serem detentores de outras e importantes dimensões de poder, são virtualmente inconquistáveis. Mesmo sem os antigos territórios soviéticos, a Rússia é ainda duas vezes maior do que o Brasil, duas vezes maior do que os 27 países da Europa, ocupando metade da América do Sul. São territórios que podem eventualmente ser derrotados, mas nunca plenamente conquistados, porque sua ocupação é quase impossível por ser tão onerosa em termos econômicos, logísticos e militares. O que estou sugerindo é que, em política internacional e, sobretudo, na definição de poder, tamanho é documento. Dessa condição de que já são incontornáveis titulares ou potenciais impérios os grandes países presentes na cena internacional não podem abrir mão. Não têm como renunciar ao que intrinsecamente são.

Formação do império norte-americano

Os Estados Unidos nasceram com as 13 colônias na costa atlântica no fim do século XVIII. Fizeram uma revolução bem mais importante e influente a longo prazo do que foi a francesa. Ela gerou uma ordem constitucional e uma normatividade que sobrevive há 200 anos, apesar das turbulências e ameaças da recente administração de Donald Trump. É quase incrível que em duas ou três cidadezinhas, como era então Boston e Filadélfia, e mesmo Nova York, já existisse naquele momento de fundação, no fim do século XVIII, uma elite intelectual com homens e gênios como foram Adams, Jefferson, Franklin, Madison e Hamilton. É quase um milagre, como aquele que aconteceu na também pequena Atenas, em um outro momento bem mais remoto da história. A construção política que ergueram os “founding fathers” foi de tal brilho, de tal qualidade, que sobrevive vigorosa até hoje. Os Estados Unidos foram construídos ideologicamente a partir da ideia da sua excepcionalidade, como nação escolhida por Deus, dotada de um destino manifesto. Como os judeus, aliás. Mas os norte-americanos carregam muito mais vantagens. Golda Meir dizia que Deus escolheu o povo judeu, mas lhe deu o pior lote do Oriente Médio, porque era o único que não havia petróleo. Não é definitivamente o caso dos norte-americanos. Através da retórica imperial da porta aberta a todos, do slogan de que os Estados Unidos são “a terra de oportunidades”, os norte-americanos acenam com a esperança de uma vida melhor e mais livre, mensagem de um vigor extraordinário. Atraíram e ainda atraem a melhor imigração e os grandes talentos, sobretudo europeus e asiáticos. Um de seus símbolos mais importantes foi a Estátua da Liberdade. Não é só como o nosso Cristo apenas benévolo e acolhedor. É uma estátua que diz em sua base – “Venham do mundo para aqui as massas esfaimadas, os seus pobres, os seus abandonados”. Ao longo do século XIX, os Estados Unidos crescem quase que organicamente, expandindo-se por meio de conquistas e aquisições. Alcançaram, assim, a dimensão continental e bioceânica que hoje têm. Possuem como império a melhor geografia possível. Sua configuração geográfica lhes permite ser grande potência no Atlântico e no Pacífico, com notável projeção sobre o Golfo do México e sobre o Ártico. Os norte-americanos não têm nenhum rival próximo. Embora o Canadá possua também um imenso território, conta com uma população irrisória de trinta e poucos milhões de pessoas. Também o México nunca foi uma ameaça – muito pelo contrário, foi a grande vítima da expansão imperial do seu vizinho. Enquanto a China construiu no passado uma grande muralha para se proteger dos ataques de povos mais agressivos do que ela, os Estados Unidos pensaram em construir o seu por um outro tipo de temor; para não serem invadidos pela pobreza do México e por países ainda mais pobres do Caribe e da América Central. É verdade que por vezes os Estados Unidos são seduzidos por uma visão isolacionista, que no fundo é ingênua porque o poder em escala global só se sustenta se o país se engaja e influi em múltiplos teatros.

Um vitorioso e vários derrotados

Os grandes derrotados da expansão imperial americana foram o império espanhol e seus herdeiros, com as perdas sucessivas dos territórios mexicanos, caribenhos e, por fim, das Filipinas e de Cuba – estas sendo a última grande humilhação sofrida por uma Espanha declinante. Daí os nomes de quase metade de seu território: Novo México, Arizona, Flórida, Nevada e Califórnia, que atestam a extensão e a origem dessas conquistas. O poder em Washington também submeteu os então imensos territórios indígenas, cuja lembrança permanece nos nomes de estados como o Wyoming, Indiana, entre tantos outros lugares. O que se fez com os índios nos Estados Unidos é uma história de horror. Os norte-americanos mataram todos os búfalos porque sem búfalos haveria muito poucos índios, que viviam de se alimentar da sua carne. Enquanto os Estados Unidos, ao mesmo tempo, são o lugar da promessa, da abundância e da esperança, são também o lugar de uma ferocidade implacável contra tudo que estiver em seu caminho. Essa dualidade acompanha quase sempre o comportamento das superpotências: a coexistência do poder absoluto e ao mesmo tempo imensamente criativo; poder imensamente generoso, mas também miseravelmente cruel.

A escalada ao posto de potência

O século XX foi, sem dúvida, o século norte-americano. Foi um século curto que, para os historiadores, começa com a Primeira Grande Guerra, em 1914, quando os Estados Unidos entraram no conflito ao lado da Grã-Bretanha e da França, e, juntos, derrotaram a Alemanha, em 1918. A Alemanha era um império frustrado. Quando os alemães afinal se tornaram um único Estado, a partir da união daquela miríade de principados, grão-ducados e reinos, em 1871, tiveram a sensação de ter chegado ao jantar dos impérios quando já se estava servindo a sobremesa. Já estavam estabelecidos na Ásia, na África e no Caribe o império britânico, o francês, e até o holandês e o português. Os alemães tiveram de se contentar com Namíbia, Togo e Tanzânia. A Alemanha se sentia roubada do seu destino – logo ela, que se percebia como a nação mais talentosa e mais criativa. A Primeira Grande Guerra foi na sua essência um conflito continental europeu que a ninguém interessava e que começou pelos automatismos previstos em acordos de assistência recíproca. Esses pactos obrigavam os aliados a mobilizar forças em prazos mínimos e pôr em marcha, também de forma breve, as engrenagens de um sistema de acordos de reação automática e que continham incontornáveis gatilhos temporais. Fazia, então, pouco sentido, e hoje nenhum sentido, que um arquiduque austríaco assassinado em Sarajevo pudesse detonar uma catástrofe como aquela. A declaração de guerra da Áustria à Sérvia obrigou a entrada no jogo da Rússia; a entrada da Rússia obrigou a entrada da Alemanha; a entrada da Alemanha obrigou a entrada da França e da Inglaterra. Em uma semana estavam todos mobilizados em uma guerra que na frente ocidental ficou quase estática durante três anos, até a chegada decisiva dos norte-americanos em auxílio de franceses e britânicos. O general Pershing, ao desembarcar com o contingente norte-americano, proferiu uma frase extraordinária: “Lafayette, estamos aqui”. Isto porque a independência norte-americana, lá atrás, tinha sido feita decisivamente pela França, então aliada dos colonos britânicos rebelados da América, impedindo o envio dos reforços metropolitanos britânicos. O equilíbrio de forças se desfez, a Alemanha colapsou e a guerra terminou. Se os Estados Unidos tivessem se mantido neutros, a Alemanha teria resistido por muito mais tempo, porque a Rússia já estava derrotada na frente oriental e provavelmente o resultado teria sido um armistício bem mais favorável à Alemanha. Ou talvez mesmo uma vitória germânica.

Da guerra, surge um império

Com Woodrow Wilson na Conferência de Versailles, os Estados Unidos despontaram como a nova grande potência mundial. Ao longo da década de 1920, os norte-americanos vivem um momento de abundância – talvez o ciclo mais veloz e extraordinário de enriquecimento que a história já tenha assistido: é o petróleo, os transportes, a mecanização dos bens de consumo, é a agricultura se transformando em ciência, a capacidade comercial expandida em direção a todos os mares e oceanos; a comunicação de massa veiculada pelo cinema e pelo rádio. A crise de 1929 é um baque, sem dúvida. Logo chegará outro grande ator político, Franklin Roosevelt, que com o New Deal trouxe a ideia de que era possível e necessária uma segunda revolução americana, para repactuar os termos do contrato social existente. Os Estados Unidos recuperaram, assim, pouco a pouco, o terreno perdido. Na década de 1930, a Rússia de Stalin estava também se recolocando de pé com a eletrificação e a industrialização planificada. Inglaterra e França geriam seu relativo declínio, confrontados com uma nova onda de aspirações nacionalistas na periferia colonial. Quanto à Alemanha, a sensação de iniquidade com os termos do tratado de Versalhes, que pusera fim à Primeira Guerra, tornou possível a ascensão do nazismo, como uma forma de revanchismo feroz da extrema-direita. Mas o que terminou de consolidar a marcha imperial norte-americana foi a Segunda Guerra Mundial. Mais uma vez, os norte-americanos foram a única potência a atravessar o conflito praticamente intactos. Em 1945, a Alemanha está arruinada; a Rússia, exausta; a Itália, desmoralizada; a Inglaterra, embora vitoriosa, empobrecida e sob severo racionamento. Os Estados Unidos são, então, senhores absolutos do mundo, especialmente até 1949, quando a Rússia soviética detona sua primeira bomba atômica. A era nuclear mudou a lógica da guerra antes travadas com armas convencionais. A guerra sempre se apoiou na ideia de que a vitória no conflito era rentável e vantajosa apesar das perdas humanas e materiais. As armas nucleares, porém, elevaram os custos e perdas humanas do conflito direto a níveis insuportáveis para todos os que a possuíssem. Ao mesmo tempo, se tornaram a única garantia de que seus detentores não seriam mais agredidos dali por diante. Esse impasse explica por que a Guerra Fria foi travada por décadas de forma indireta entre as duas superpotências, assumindo sobretudo a forma de guerras convencionais na periferia dos dois impérios da época. Foi nessa época que George Kennan desenvolveu a doutrina da contenção, preconizando que a única maneira de enfrentar a União Soviética era brecando seu expansionismo pelas beiradas. Nessa corrida, durante a qual os impérios britânico e francês terminaram de se desmanchar, russos e norte-americanos se organizaram militarmente pela OTAN e pelo Pacto de Varsóvia, neutralizando ao mesmo tempo seus antigos adversários, a maior parte dos quais obrigados a ingressar numa ou noutra. Até hoje os principais derrotados da última guerra, Alemanha e Japão, não possuem armas nucleares, nem dispõem de assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Além da Europa, o império norte-americano controla a chamada White Commonwealth, que reúne os principais países brancos de língua inglesa, como são a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá, além de possuírem bastiões avançados no Oriente Médio, como Israel, e na Ásia, como o Japão, Taiwan e a Coreia do Sul.

O império começa a descer a ladeira

O século norte-americano chega ao fim no seu apogeu, por volta de 1990, quando caem o muro de Berlim e o império russo-soviético. Os Estados Unidos deixam de ser um império entre impérios, para se tornar o único império em pé. Foi justamente quando não tinham mais rivais que os norte-americanos perderam a visão imperial estratégica e, com ela, a oportunidade de redesenhar o mundo. A partir desse momento, os Estados Unidos se embrulharam em uma série de guerras onerosas e inconclusivas no Afeganistão, Síria, Líbia, Iraque. São conflitos que os norte-americanos não perderam, mas também certamente não ganharam. Enquanto os Estados Unidos se atolaram nessas guerras, aconteceu um fato tão extraordinário quanto havia sido a emergência dos Estados Unidos no século 19: o ressurgimento da Ásia na cena geopolítica. A China dá uma demonstração extraordinária de capacidade depois de mais de um século de caos e humilhação, de quase colonização explícita, guerra civil, ocupação japonesa, revolução comunista e depois cultural. É, sobretudo, Deng Xiaoping que traz a China de volta à condição de grande potência. É verdade que os Estados Unidos continuam a se valer de sua melhor geografia. A China está encostada na Rússia e na Índia, o que certamente não é uma vizinhança confortável, enquanto os Estados Unidos não se preocupam nem com o Canadá nem com o México. Mas não é só a China. É a Índia, que volta também a ser uma grande potência. É a Indonésia, que cresce de influência. É a Turquia, que volta a ser um país de certo peso. É o Irã, com uma presença cada vez mais incontornável. É a Rússia, que retorna ao jogo. É como se certos atores mudassem a roupa, fizessem uma plástica e voltassem a dançar como no passado. Também a Coreia do Norte lança mísseis de longo alcance e de certa complexidade. O mundo em volta do império norte-americano ficou mais complexo e com evidentes tendências em direção à multipolaridade. A decadência do império norte-americano advém de desafios externos e internos. Internamente, os Estados Unidos sofrem um processo de decadência de suas instituições, que foram feitas apenas para acomodar essencialmente grupos brancos de origem europeia. Tocqueville já dizia no começo do século XIX que o contrato social norte-americano excluía dois grupos: os indígenas e os negros, estes escravizados. Também os mestiços ou hispânicos eram vistos como subalternos ou com muita ambivalência. A ascensão e revalorização desses segmentos nas últimas décadas levaram os norte-americanos a uma crise de identidade que paralisou seu sistema político. Alguns querem sacrificar a democracia para manter a identidade primitiva; outros querem preservar a democracia e forjar outra identidade. Trump é uma figura inédita na história norte-americana: não existe nada que preceda a ele como desafio a uma normatividade que vem desde Washington. O poder imperial norte-americano, embora militarmente intacto, está declinante, principalmente, porque sua sociedade encontra-se muito dividida. O país perdeu a sua coesão e o sentido de missão, ou seja, a crença de ser uma nação natural e irresistivelmente predestinada à grandeza.

O poder desliza para a Ásia

Enquanto isso, o eixo da dominação imperial parece então migrar do Atlântico Norte para a Ásia. Enquanto a China fez progressos extraordinários, assim como a Índia reafirma com brilho seu passado, a Europa é na verdade vassala dos Estados Unidos. É real a crença de que o mundo tem um novos eixos para além do G7 criado em torno dos Estados Unidos, que são os Brics – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul. Há também o G20, que reúne de fato o diretório do poder mundial. Os Brics trazem consigo a ideia da multipolaridade. Para os Estados Unidos, o desafio chinês parece ainda maior do que o soviético. A União Soviética nunca foi um grande adversário comercial, tecnológico; nunca produziu nada bem e barato; os soviéticos eram maus negociantes, e mesmo algo incompetentes militarmente. A Rússia era um imenso mastodonte com uma ideologia, lutando pelos corações e mentes dos homens, acenando com a superação da ordem capitalista. A China está pouco ligando para corações e mentes dos outros países. Só quer produzir mais, mais barato e com mais eficiência. Então, os Estados Unidos estão entrando em rota de colisão com os chineses. Ontem, foram drones derrubados; hoje, é esse negócio de que o TikTok tem que ser proibido; amanhã, será Taiwan. Pouco a pouco os riscos vão se multiplicando, em algum momento esse caldo pode entornar. Mas a China não quer hoje uma briga com os Estados Unidos, porque sabe que perde, tendo em vista a disparidade de poder militar e tecnológico. Os Estados Unidos não são só um império; são sucessores de impérios que reúnem fragmentos do império britânico e francês. A União Europeia é uma dependência do poder militar norte-americano, assim como o Japão. A falta de visão estratégica norte-americana, própria de períodos de declínio, segue com a sua pretendida expansão para o leste da Europa, atrás de tradicional influência russa. Quando os Estados Unidos eram ainda aquela tripa de 13 ex-colônias britânicas na borda do Atlântico, em 1820, já tiveram a audácia de declarar às potências europeias, então muito mais poderosas, que não admitiriam sua intromissão nos assuntos do Novo Mundo. Foi a doutrina de Monroe. Quando a Rússia soviética tentou colocar mísseis em Cuba, os Estados Unidos ameaçaram o império, então concorrente, com uma guerra atômica. Como puderam os norte-americanos imaginar, portanto, que a Rússia admitiria o avanço indefinido da OTAN na direção de suas fronteiras, inclusive em um país historicamente vinculado à identidade russa como a Ucrânia? Agora a Rússia diz: ou vocês saem, ou nós vamos para guerra. Essa guerra está anunciada desde a rejeição do acordo de Minsk. Nenhum império admite ser desafiado em sua área de influência. Nem o Brasil aceitaria nas suas fronteiras presenças estrangeiras hostis, se outro império quisesse meter tropas no Paraguai ou na Bolívia.

O império brasileiro

A América do Sul foi sempre um remanso estratégico, do ponto de vista geopolítico. Isto aqui não importa muito no jogo mundial do poder, não tem maior interesse, daqui não se controla nada vital para os grandes impérios. A América do Sul pareceria uma grande lança apontando em direção à Antártica, e ninguém quer nada com a Antártica. Nós não somos estrategicamente importantes. Essa relativa irrelevância foi para nós, brasileiros, um fator benigno, que nos deu o tempo e a pausa necessários para que o país se desenvolvesse e pudesse chegar intacto até aqui. Porque, conforme já disse algumas vezes, o Brasil também é um império à sua maneira. Ao contrário de outros, como a própria Rússia e a China, ou vizinhos do nosso subcontinente, como a Argentina e o México, o Brasil nunca foi derrotado. Também tem historicamente suas ambições, de alguma maneira imperiais ainda que inconscientes e essencialmente benignas. O Brasil tem os ingredientes da dimensão imperial, a começar pelo tamanho. Sua história é toda atravessada pelo cuidado em não perder a unidade territorial herdada da colonização. Toda forma de separatismo sempre foi duramente reprimida. E o que nos sobrou de território é uma imensidão. O Brasil é incomensurável. Talvez por isso tenha feito até hoje apenas uma única renúncia à sua aspiração imperial: a da posse de armas nucleares. É algo de que participei ativamente e que até hoje me dói. Não porque eu quisesse ter armas nucleares, mas porque foi uma renúncia, e o Brasil não gosta de renúncias, e, sim, de ter todas as opções abertas pela frente. Mas, nesse caso, o interesse regional, o interesse nacional, nossos compromissos com os vizinhos e com a causa da paz indicavam que podíamos colaborar sem ter armas atômicas. O Brasil não precisa delas para se defender, justamente porque é inconquistável por outros fatores e circunstâncias. Há pouco fui de avião à Colômbia. Passei a viagem quase que com o nariz enfiado na janela, olhando o Brasil lá embaixo durante quatro horas. Depois de atravessarmos a fronteira, porém, em menos de meia hora, já estávamos em Bogotá. E veja que a Colômbia não é um país pequeno. Há uma cena de um dos documentários da Segunda Guerra que sempre me fascinou. Mostra um bando de oficiais alemães que parecem perdidos naquelas estepes russas infindáveis. Os generais estão se perguntando: que diabo de lugar é este? Onde estamos? Por que nós nos metemos aqui? Como a gente sai disto? O Brasil também tem essa capacidade de intimidar um potencial adversário pela sua capacidade de parecer não terminar nunca. Você sai do Rio de Janeiro, avança cem quilômetros e a mal passou de Petrópolis. Mais cem e chega a Juiz de Fora. Mais cem, ainda está em Barbacena. Nós brasileiros nos acostumamos com essa dimensão continental do Brasil, e dela só lembramos quando saímos do país. Quando embaixador em Genebra, eu podia escolher entre oito países em que eu poderia ir de trem ou automóvel almoçar. Levava quinze minutos para chegar de carro à França; um pouco mais de tempo para chegar à Bélgica, à Áustria, à Itália ou a Luxemburgo! No Brasil haveria sempre mais Brasil pela frente… O Brasil tem também uma imensa percepção da sua continuidade histórica. Sempre me surpreende que, quando há um desfile militar brasileiro, ele se inicie pela exibição das bandeiras históricas, a primeira das quais uma cruz, como traziam pintadas nas suas velas naus e caravelas. É como se a história do Brasil fosse um rio que desemboca no presente sem rupturas; uma espécie de corredor do tempo. O Brasil se considera herdeiro de si mesmo e de Portugal, do próprio fato de que o nosso imperador fundador era herdeiro da coroa de Portugal e foi depois de rei de Portugal.

A montagem do quebra-cabeças brasileiro

Das dimensões do poder adquiridas no século XIX, nos faltavam, porém, outros elementos para ser um império. O primeiro era a demografia; nós não tínhamos gente. Éramos quatro milhões em 1822. Hoje, com 220 milhões de habitantes, somos coisa grande. O segundo elemento faltante era econômico. Não tínhamos produtividade. Isso se resolveu com a industrialização, e hoje, principalmente, com o agronegócio, vocação nossa desde os primórdios da colonização açucareira em Pernambuco. O Brasil é uma superpotência agropecuária. O terceiro elemento faltante era a matriz energética. Atravessamos um século XIX sem carvão e um século XX sem petróleo. Mas hoje o Brasil produz quatro milhões de barris de petróleo por dia. É um dos dez maiores produtores de petróleo do mundo. Está – coisa inacreditável – a caminho de ficar autossuficiente em trigo. O Mato Grosso do Sul excedeu a Argentina como maior produtor mundial de soja. Tudo isso leva a crer que existem condições para que o Brasil cumpra um dia o seu grande destino imperial e que possamos chegar lá. Não vejo nenhum país do mundo com essa obsessão pelo próprio futuro. Mas o Brasil nunca é abertamente ou conscientemente imperialista. Talvez por excesso de terras a ocupar, nosso imperialismo foi quase sempre para dentro, na forma de uma marcha para o Oeste. Nós nos sentimos folgadamente bem na nossa roupa. No plano internacional, como diria Sérgio Buarque, gostamos de nos mostrar como um gigante cheio de bonomia. Temos uma disposição risonha para a humanidade, para a coisa construtiva. Não temos ânimo imperial no sentido agressivo, porque não temos adversários. O Brasil não tenta vender nenhuma ideologia, expansão territorial ou corrente migratória. Condenamos a agressão russa na Ucrânia porque o Brasil, conforme a carta das Nações Unidas, não concorda que nenhuma alteração de fronteiras se faça por via militar. Temos fronteiras com dez países, cujas fronteiras respeitamos impecavelmente. Só a China e a Rússia têm fronteiras mais extensas do que nós. Então, o Brasil é um país muito cuidadoso, que não pode nem quer dar a impressão de ser truculento ou ameaçador. Tem que ser cordato, racional, moderado.

O amanhã do império brasileiro

O futuro brasileiro não pode ser outra coisa, portanto, que essa expansão natural, amistosa de nossos interesses – nunca uma forma agressiva, predatória, territorialmente expansionista. Com tudo isso, o Brasil tem também todo interesse na multipolaridade. Sou multipolar por convicção e pelo que entendo deva ser nosso interesse nacional. A minha ideia de multilateralidade é a de que o mundo é nossa província, porque o Brasil foi formado por europeus, africanos, asiáticos sobre a matriz dos que já estavam aqui. Aonde vou, há sempre algum elemento cultural que me faz sentir em casa. Como acarajés em Lagos, quibes no Líbano, sushis em Kioto, pizzas em Nápoles, churrascos em Buenos Aires. Um país como o Brasil tem de ser naturalmente favorável a um mundo multipolar, no qual possa jogar em todos os tabuleiros e tenha fichas em todas as mesas. O Brasil é ainda é um ator menor, mas já é certamente um global player. Não é muita ficha, não é muita mesa, mas nós temos muitas jogadas para fazer. Não somos vassalos naturais de potência nenhuma. Vamos jogar bem com os Estados Unidos, mas também queremos uma Europa forte, assim como todas as Américas, a Ásia e a África. A nós convém o acesso a uma multiplicidade de tabuleiros.

Insight Inteligência / Tribuna da Internet

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