Charge do Iotti (Gaúcha/Zero Hora)
Christian Lynch
Meio Premium
No dia 31 de maio deste ano, em discurso em Jataí (GO), o presidente Jair Bolsonaro reafirmou que os “cidadãos de bem” precisavam se armar para “defender a pátria”. Uma tentativa de fraudar as eleições de 2022 viria sendo armada pelo Poder Judiciário, justificando a fiscalização do processo eleitoral pelas Forças Armadas.
Em um aparente paradoxo, o ataque do presidente às instituições foi apresentado como se se tratasse de uma defesa da democracia. “Somos um povo livre e tudo faremos para que o povo continue livre, apesar da tentativa de alguns para mudar nosso regime. Nosso regime é o democrático”, declarou o presidente.
NAS QUATRO LINHAS – O mesmo acontece em relação à Constituição. Os continuados ataques de Bolsonaro aos demais poderes são sempre apresentados como constitucionais. Em entrevista recente à jornalista Leda Nagle, Bolsonaro criticou o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, por agente da inconstitucionalidade:
“Há muito tempo eles estão fora das quatro linhas […]. É uma obsessão para tentar me tirar daqui, ou me tornar inelegível, ou fazer com que eu perca as eleições”. Em outras palavras, as violações da Constituição não partiriam dele, mas do próprio Supremo Tribunal, que de vítima passa a agressor. Como explicar esse aparente paradoxo?
É que a “teoria democrática” do bolsonarismo nada tem de verdadeiramente democrática. Embora povoado por um número mais ou menos estável de conceitos (“democracia”, “autoridade”, “ordem”, “família”, “liberdade” etc.), o vocabulário político é organizado e mobilizado no espaço público por diferentes ideologias, que filtram a realidade política conforme seus valores predominantes.
SIGNIFICADOS DIFERENTES – Assim, conservadores privilegiam a autoridade em detrimento da liberdade e da igualdade; os liberais, por sua vez, preferem a liberdade; e os socialistas, por fim, a igualdade. Cada um atribui também significados diferentes a cada um daqueles conceitos.
As três ideologias referidas se orientam por interpretações algo discrepantes da Constituição. Conservadores se apegam às regras que favorecem a família e a religião. Os liberais privilegiam a liberdade individual, característica da sociedade civil. Já os socialistas se agarram à igualdade social dos trabalhadores e, ultimamente, minorias étnicas e de gênero.
As três interpretações são compatíveis com a democracia liberal, desde que razoáveis do ponto de vista do conjunto de seus princípios e regras.
DUALISMO REACIONÁRIO – Isso não acontece com a ideologia reacionária que impulsiona o bolsonarismo. Surgidos em reação aos ideais da Revolução Francesa, reacionários são antimodernos que perseguem a utopia medievalista de uma comunidade dominada por sacerdotes, chefes de família e suas milícias.
Não creem em valores universais nem em relativismo de valores, mas na hierarquia natural de uma comunidade dividida entre os bons (os fiéis) e os maus (os hereges). Abominam o progresso trazido pela ciência, pela razão e pela laicidade, percebendo o liberalismo político como a antessala do comunismo e do ateísmo.
O reacionarismo foi adaptado ao mundo das massas graças às técnicas de propaganda (rádio e cinema) difundidas pelo fascismo e suas variantes ibéricas (integralismo, salazarismo e franquismo). Foi então que surgiu sua teoria de uma “democracia iliberal”.
DITADURA CESARISTA – A realidade da política seria aquela de uma nação definida como uma comunidade étnica e cultural homogênea. A vontade nacional se manifestaria por intermédio de uma ditadura cesarista, cujo líder fosse aclamado pelas multidões.
A característica da política moderna residiria no antagonismo irredutível entre a nação e seus inimigos internos e externos. O povo seria mobilizado por mitos de origem, que lhe garantiriam a identidade grupal. Conflitos seriam resolvidos pelo líder supremo por meio da decretação do estado de exceção, supressor das liberdades individuais.
O modelo fascista de “democracia iliberal” foi recuperado e adaptado pela direita radical nas últimas décadas. No novo populismo reacionário, as redes sociais ocupam o lugar do rádio e do cinema. Único porta-voz da vontade popular, o populista reacionário ataca as instituições representativas como capturadas por uma minoria de inimigos do povo. Elites estrangeiradas identificadas com valores progressistas ou esquerdistas as viriam empregando de forma insidiosa para modificar a “essência” cultural da nação, religiosa, rural e patriarcal, valendo-se de agentes ideológicos empregados na educação pública e nos veículos de comunicação de massa.
REVOLUÇÃO CONSERVADORA – O populista reacionário promete por uma “revolução conservadora” restabelecer o idílico passado em que a nação vivia harmoniosamente com seus costumes tradicionais.
Embora não exija a supressão das instituições – tribunais e assembleias -, essa paradoxal “revolução reacionária” exige dobrá-las à vontade do povo, constrangendo-as pela sua constante mobilização respaldada pelas classes armadas.
A “democracia bolsonarista” segue à risca a cartilha reacionária de inspiração neofascista. Na forma de uma “democracia racial”, o povo brasileiro seria composto por “cidadãos de bem” — chefes de família armados e organizados em milícias, sob a orientação espiritual de sacerdotes cristãos.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Este artigo, enviado por Duarte Bertolini, mostra que a “democracia”, na versão de Bolsonaro, na verdade nada tem de democrática. (C.N.)