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quarta-feira, julho 06, 2022

País torra R$ 85 bilhões em combustíveis




Por Míriam Leitão (foto)

Será de R$ 85 bilhões o custo dos subsídios aos combustíveis fósseis em apenas seis meses. Nessa conta está a redução a zero dos impostos federais e o limite imposto ao ICMS dos estados para o diesel e a gasolina. Isso sem contar o dinheiro que será dado a caminhoneiros e taxistas com a nova PEC. Um país que troca educação por combustível fóssil mais barato está em apuros. Um país em que a oposição vota a favor de que o presidente mude a Constituição para distribuir dinheiro às vésperas das eleições está bem encrencado. Um país que torra essa montanha de dinheiro para estimular o consumo de petróleo, e reduzir a impopularidade do governante, vive uma total inversão de valores e está fazendo as piores escolhas possíveis no uso do dinheiro público.

Até agora já se sabe que os estados perderão R$ 102 bilhões por ano, pelos cálculos do economista Pedro Schneider, especialista em contas públicas no Itaú Unibanco. O custo de zerar os impostos federais sobre gasolina e diesel será de R$ 34 bilhões em seis meses. O de limitar o ICMS, de R$ 51 bilhões até o fim do ano. Isso levará o Fundeb a perder R$ 20 bilhões bilhões quando precisa de mais recursos, porque o desafio agora é o de recuperar o aprendizado que não houve no meio da pandemia. A criança que tem hoje oito anos teve o processo de alfabetização interrompido pelas medidas de proteção à saúde. As crianças da classe média e da elite conseguiram minimizar perdas, mas os mais pobres estão hoje com falhas educacionais que podem reduzir suas possibilidades futuras. É urgente que haja mais investimentos na educação e estratégias de recuperação do tempo perdido. Isso sim é uma emergência.

A economia não está em emergência. O Banco Central está revendo para cima a expectativa do PIB. O desemprego caiu. Mas a educação está numa emergência. É ela que perderá dinheiro com a proposta já aprovada e sancionada de reduzir as alíquotas do ICMS dos combustíveis fósseis. Os estados que estão reagindo são alvo dos ataques de Bolsonaro no palanque. “Lamento que os nove governadores do Nordeste tenham entrado na Justiça contra a redução de impostos na gasolina. Isso é inadmissível. Governadores que dizem que ajudam os mais pobres, mas quando chega a hora fazem exatamente o contrário”, disse Bolsonaro na Bahia. Os governadores perderam dinheiro e ainda são alvo da demagogia de Bolsonaro.

A Câmara ligou ontem o rolo compressor que já funcionou no Senado. A gastança em véspera de eleição terá R$ 5,4 bilhões para os caminhoneiros, R$ 2 bilhões para os taxistas, R$ 3,8 bilhões para o etanol e R$ 2,5 bilhões para as empresas de ônibus. Somando isso dá R$ 13,7 bilhões. Com os R$ 85 bilhões de renúncias fiscais a conta vai a R$ 98,7 bilhões. Isso sem contar o que será gasto turbinando o Auxílio Brasil.

O país deveria estar discutindo transição energética, mas está tirando dinheiro dos estados e dos cofres federais para que a classe média pague menos no litro da gasolina, está distribuindo dinheiro a caminhoneiros para pagar o diesel. O país neste momento deveria fazer campanha de redução do consumo de derivados de petróleo. E o está estimulando, porque o preço é o sinal mais importante na economia.

No fim de semana o deputado Arthur Lira (PP-AL) decidiu que a PEC do vale tudo eleitoral pularia etapas da tramitação. Será apensada a outra que subsidia etanol e biocombustíveis que já estava tramitando na Câmara e que agora dará carona a essa proposta de aumentos de gastos eleitoreiros a menos de três meses do pleito.

Alguns países adotaram medidas para atenuar o preço dos combustíveis. Acertaram os que fizeram projetos bem focados e temporários. O Brasil está chegando ao cúmulo de mudar a Constituição para dar ao presidente o direito de distribuir dinheiro às vésperas das eleições, quebrando teto de gastos, Lei de Responsabilidade Fiscal, legislação eleitoral, apenas porque os preços dos combustíveis subiram.

Vários alimentos também tiveram aumentos fortes, aliás, desde o ano passado, quando em setembro a inflação bateu em dois dígitos. Mas a obsessão de Bolsonaro é com o diesel e a gasolina. Ele acha que se elegerá se derrubar esses preços. A queda será pequena e em função desses artificialismos. As consequências danosas desses absurdos, cometidos com o apoio do Congresso, continuarão afetando a economia.

O Globo

Congresso precisa acabar com farra de emendas do relator - Editorial




Não tem cabimento o texto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) aprovado na Comissão Mista de Orçamento do Congresso, que obriga o próximo presidente da República a pagar as famigeradas emendas do relator, também conhecidas pela sigla RP9. A ideia de, no jargão orçamentário, torná-las “impositivas” não pode prosperar quando for analisada pelo plenário da Câmara e do Senado. Passou da hora de quebrar a máxima “não existe nada tão ruim que o atual Congresso não possa piorar”.

As emendas do relator já provaram ser uma péssima maneira de alocar recursos. Foram ressuscitadas do tempo do escândalo dos Anões do Orçamento e usadas pelo governo Jair Bolsonaro como moeda de troca com o Legislativo. Mesmo que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha ordenado a divulgação dos parlamentares responsáveis pela indicação das verbas, tirando seu caráter secreto, isso não elimina a ineficiência na alocação do dinheiro. No lugar de critérios técnicos, prevalecem apenas interesses paroquiais de aliados do governo.

Na semana passada, o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu alertas sobre o “risco de incompatibilidade do planejamento governamental” e afirmou que a distribuição das emendas para as áreas de saúde e assistência social “não atende a critérios objetivos previstos constitucional e legalmente para alocação dos recursos da União nessas áreas”. O município de Arapiraca (AL) foi citado como um dos agraciados com um montante desproporcional. Reduto eleitoral do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), recebeu transferências 5.230% superiores ao ano anterior.

As emendas do relator continuam a ser usadas sem a transparência exigida pelo STF e se tornaram um celeiro de indícios de irregularidades. Um dos principais focos é a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional e controlada pelo Centrão. Com a devida investigação, é bem possível que a Codevasf ultrapasse o MEC em suspeitas de corrupção.

Em valores atualizados a dezembro passado, os gastos empenhados pelas emendas do relator em 2020 e 2021 somaram R$ 38,1 bilhões, num total de R$ 71,7 bilhões de todas as emendas parlamentares. Para este ano foram previstos mais R$ 16,5 bilhões e, para o ano que vem, já se fala em R$ 19 bilhões. O aumento de R$ 200 que será dado ao Auxílio Brasil até o fim deste ano custa R$ 26 bilhões. Suprimir as emendas do relator teria sido uma boa forma de no mínimo amenizar esse estouro no teto de gastos.

O Congresso tem o dever de pôr fim a elas. Em vez disso, o senador Marcos do Val (Podemos-ES), relator da LDO, propôs torná-las impositivas. Se o texto for aprovado, não poderão ser contingenciadas, e seus beneficiários não poderão ser alterados (a legislação atual não obriga a liberação e permite realocação).

A experiência do governo Bolsonaro mostrou que é péssima ideia deixar o Orçamento para investimentos à mercê das lideranças do Congresso, interessadas apenas em obras em seus redutos eleitorais. O governo dispõe de recursos exíguos, precisa saber gastá-los com critério e inteligência.

O Globo

A safra, o apetite global e as barreiras - Editorial




Produtores terão substancial crédito para plantar, abastecer o País e continuar exportando, mas cresce o risco de mais protecionismo europeu, sob pretexto da preservação ambiental

Setor mais eficiente da economia brasileira, a agropecuária terá dinheiro para continuar produzindo, na próxima temporada, comida mais que suficiente para o mercado interno e para a exportação, se os R$ 340,88 bilhões definidos para o crédito forem liberados a tempo e bem aplicados. O valor fixado para o Plano Safra 2022/23 é 36% maior que o do período anterior. Os empréstimos serão parcialmente subsidiados e isso deverá atenuar os efeitos da elevação dos juros. Com financiamento adequado, o agronegócio poderá continuar faturando com a crescente demanda internacional de alimentos, prevista para aumentar ao ritmo anual de 1,4% até 2031.

Não basta, no entanto, no caso do mercado interno, garantir produção suficiente para abastecer as bancas de feiras e as gôndolas de supermercados. Segundo a Fundação Getulio Vargas, em 2021 cerca de 23 milhões de pessoas, 10,8% da população brasileira, estavam abaixo da linha da pobreza, correspondente a R$ 210 per capita. Foi o quadro mais grave desde 2016. Agravada pelo desemprego, pela baixa remuneração e pela alta de preços, a pobreza tem resultado em fome para dezenas de milhões, embora haja muito alimento nos estoques e em oferta no varejo.

Do lado internacional, as perspectivas continuam boas para os produtores e exportadores brasileiros. Em maio, o setor faturou US$ 15,11 bilhões com as vendas externas. Esse novo recorde foi facilitado pela alta das cotações. Em 12 meses houve aumento de 29,2%, segundo a FAO, órgão das Nações Unidas para agricultura e alimentação. Inflados pela retomada econômica pós-pandemia, esses preços tendem a recuar e a estabilizar-se, de acordo com estudo conjunto da FAO e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mas a demanda continuará a crescer, puxada principalmente pelas economias emergentes e em desenvolvimento.

A oferta global de alimentos deverá aumentar cerca de 1,1% ao ano, segundo esse relatório, e os países da América do Sul e do Caribe terão, provavelmente, uma participação importante nesse movimento. Um papel de relevo é previsto para o Brasil.

Se a agropecuária continuar a investir e a modernizar-se, a participação brasileira quase certamente ficará bem acima da taxa de crescimento – 1,1% ao ano – estimada para o conjunto. Segundo projeção do Ministério da Agricultura, a produção nacional de grãos deverá passar de 262,1 milhões de toneladas, volume então atribuído à safra de 2020/21, para 333 milhões na temporada 2030/31, com expansão anual média de 2,4% ao ano, ou 27,1% no período. Para a produção total de carnes foi calculado um aumento de 27,4 milhões para 34 milhões de toneladas nesse período, com variação acumulada de 24,1%.

Pelas mesmas estimativas, a área destinada ao plantio de grãos no Brasil passará de 68,7 milhões de hectares para 80,8 milhões, com acréscimo de 17,6%. O volume colhido continuará, portanto, aumentando muito mais que a área ocupada, como no último meio século. Os ganhos de produtividade agrícola, no País, têm resultado principalmente do trato do solo, condição para o aumento da produção por hectare.

Sendo poupadora de terras, a eficiência da agricultura favorece a preservação do meio natural, incluídas, é claro, as florestas. Conhecida há muito tempo, essa característica da produção nacional é desprezada ou negada quando políticos, produtores e consumidores europeus acusam os brasileiros de devastação florestal.

Essa política, mantida e expandida a serviço do protecionismo comercial, pode ser reforçada com a bandeira do desmatamento zero, recém-levantada por ministros do Meio Ambiente da União Europeia. Essa bandeira será apresentada ao Parlamento Europeu para a proibição de importações de vários produtos, incluídos carne bovina, soja, cacau, café e madeira. Não basta um bom Plano Safra. Cabe também ao poder central, por meio da diplomacia, combater o protecionismo e preservar a imagem do agronegócio, manchada principalmente, é preciso lembrar, pela política antiambiental do presidente Jair Bolsonaro.

O Estado de São Paulo

À espera da próxima guerra, com um copo de cerveja na mão




Por Aylê-Salassié Filgueirs Quintão*

O início da propaganda eleitoral no Brasil está próximo. Pelo menos três acidentes   atemorizam os eleitores: os círculos viciosos, os triângulos amorosos e as bestas quadradas (Nelson Rodrigues). Sem muito esforço eles podem ser encontrados nas alianças entre partidos e pessoas antagônicas, mas com históricos   carregados de comportamentos transgressores. São candidatos à Presidência da República. Só no Brasil!!!... 

{...} em vez de sonhar com falsas “responsabilidades” políticas, deviam refletir fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes. Este seria provavelmente o único meio de se evitar uma próxima guerra (Herman Hesse).

Não se pode comprar nada desses sujeitos que transitam de maneira antipedagógica pela campanha eleitoral, promovidos religiosa e artificiosamente a salvadores da Pátria, e que se equilibram entre os interesses pessoais inconfessáveis e os chamados direitos coletivos inalienáveis.

Menosprezado ideologicamente, Hermann Hesse advertia que qualquer tentativa de substituir a consciência pessoal pela consciência coletiva é uma violência sobre o cidadão, e o primeiro passo para o totalitarismo. E de maneira semelhante, o filósofo chinês Confúcio observava que quando as palavras perdem o significado real, as pessoas estão abrindo mão de suas   liberdades.  E Nietsche ponderava: Nada é tão nosso, quanto os nossos sonhos.

Desatentos a premissa como essas, presentes e vulgarizadas no cotidiano, lemos indiferentes Putin afirmando que os ucranianos são russos, assim como os georgianos, a Ossétia, a Abcássia, a Chechênia, a Lituânia.  Leviandades etnográficas contra populações, usadas para acobertar   frustrações e ambições pessoais. O mesmo sentido está contido na fala de Xi Jinping, em Hong Kong, repetida, que só quer patriotas (chineses). E, alguém escreve entusiasticamente que uma "nova safra" de esquerda aponta para a retomada da integração Sul Americana, deduzindo-se, por antecipação, que a "safra de direita" é a alma desintegração. 

Assim, falsos profetas   vão incorporando diversos sentidos a uma única palavra (sinestesia) e, com elas, semantizações políticas e ideológicas introduzidas em uma única direção. Algumas são instrumentalizadas com estatísticas, como a do retorno de Lula; ou mesmo declarações insanas do atual Presidente do Brasil.

É um bombardeio discursivo   carregado de sentidos pessoais, ideológicos, cheios de más intenções, conduzido, no dia a dia, num processo de fanatização da audiência, por   milhares de televisões, jornais, de revistas, de conferências, reuniões públicas ou secretas pisando na mesma tecla. São inspirados no vácuo da incompetência, da má fé ou da anomia dos cidadãos, propondo-se a unificar o pensamento, a cultura e as identidades no mundo.  A China, por exemplo, está assentada sobre 50 etnias e línguas. Todos os líderes querem mais, seja   no sentido territorial, no econômico, cultural seja de uma perspectiva performática narcisista.  Não importa os métodos, nem as vidas civis que serão ceifadas: a morte de muitos é uma estatística.  

Em um cenário como esse "[...] é difícil fazer reformas econômicas no Brasil", observa o pesquisador do INSPER (Instituto de Ensino e Pesquisa), Marcos Mendes.    "[...} Só se tornarão desenvolvidas as sociedades que conseguirem forjar a coesão social, induzirem uma mentalidade orientada para o futuro, privilegiarem a educação e a inclusão de todos". Por aqui, os discursos eleitorais correntes juntam tudo num mesmo saco. Não buscam o futuro - é uma briga pessoal do aqui e agora -, o dinheiro da educação é redistribuído entre políticos, e a inclusão é apenas uma fachada eleitoral.

Os chamados líderes mundiais trabalham para   reduzir toda a multiculturalidade a dois modelos, pré-fixados como "esquerda" e "direita", num mundo com 7 bilhões de cidadãos, alguns milhares isolados ainda. A ideia é defendida por meia dúzia de sujeitos, malucos, irresponsáveis ou desavergonhados, auto carismatizadas. São   lideranças que se colocam acima do homem comum, daquele que cultiva a autonomia e a liberdade. Esses líderes todos não são de esquerda, nem direita, são doentes e, se queremos classifica-los ideologicamente, podemos dizer são totalitaristas por vocação e, como tal, fascistas.

Nas mãos deles, o mundo pode entrar em guerra imediatamente. Eles sabem as consequências, mas desdenham dela, protegidos pelos aparelhos de Estado. Quem vai ver sua cidade destruída, sua casa invadida, fugir das bombas e morrer mesmo, é a população civil. Em um cenário como esse a palavra perde o sentido, assim como o cidadão, os direitos enraizados na cultura e a própria terra de origem. 

Esses admiráveis líderes dão consequência às suas alucinações assustando, expulsando, prendendo e matando pessoas. É o que vem acontecendo no norte da África, na Ucrânia. Mas não é só lá. Na América Latina, também na Venezuela e na Nicarágua. O mundo está sendo governado por loucos, que se apossaram, de uma maneira ou de outra, do poder de coerção e da riqueza do Estado, e fazem justiçamentos quase que com as próprias mãos. 

Nesse círculo, segundo o analista de política externa, Flavio Almeida Sales, não há constrangimento por parte dessas pessoas nem em pensar na ideia do extermínio em massa pela via da guerra química, biológica, nuclear e outras. São falsos seus compromissos de respeitar limites territoriais, fronteiras, o próprio planeta. São capazes de, sem remorso, trazer a destruição e a desolação para um continente inteiro. O Ocidente tem razão de ter medo, de um quadro de líderes intempestivos como esse que está por aí. A OTAN, com a promessa de preservar a paz por aqui, leva este medo para o lado de lá. 

Todos podem estar sentados sobre   gatilhos prontos a detonar. Essas lideranças, portadoras de transtornos dissociativos, vem se preparando há tempos para a guerra, e não para acabar com a miséria e a desigualdade. É um jogo. O Brasil, um dos maiores produtores e alimentos no mundo, guiado por lideranças disfuncionais, vai se enrascando nesse tabuleiro. Aliado dos Estados Unidos nos tratados militares, de um lado; é parceiro da Rússia e da China no BRICS. Sem convicções sobre as alianças feitas, seus líderes escondem-se em uma semântica barata, populista e imprudente. Não parece existir mais a luz na lei - o Judiciário não deixa - e os bons costumes estão corrompidos. Que cenário, hein !!! Esses assuntos só ganham a atenção devida, à noite, nas mesas dos bares.

*Jornalista e professor

Chumbo Gordo

Bolsonaro, o birrento - Editorial




Marcelo Rebelo de Sousa conversa com Bolsonaro durante o encontro no Palácio da Alvorada, agosto/2021

Ao cancelar reunião com o presidente de Portugal de modo grosseiro, Bolsonaro confirma que não pensa no País, só em si

O presidente Jair Bolsonaro mostrou, mais uma vez, que não tem estatura para ser um chefe de Estado ao ordenar que o Ministério das Relações Exteriores cancelasse de última hora o encontro que teria em Brasília com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, na segunda-feira passada. O motivo não poderia ser mais mesquinho: tratou-se de uma espécie de “retaliação” de Bolsonaro ao presidente português pelo fato de este ter se reunido com o ex-presidente Lula da Silva na véspera.

Ora, de crianças é esperado que façam birra quando contrariadas. De adultos, não. Menos ainda de um presidente da República, que deveria ser alguém capaz de separar muito bem as suas emoções e interesses pessoais dos interesses do Estado e da sociedade.

A bem da verdade, a grosseria não pode nem sequer ser classificada como um incidente diplomático. É apenas uma grosseria mesmo. A rigor, não houve incidente algum. Afinal, todos sabem quem é Bolsonaro, todos conhecem seus maus modos e a estreiteza de seus horizontes, inclusive no outro lado do Atlântico.

“Quem convida para almoçar é quem decide se quer almoçar ou não”, respondeu Marcelo Rebelo ao ser questionado sobre o cancelamento. “Se o presidente da República Federativa do Brasil entende que não pode, não quer ou não é oportuno (almoçar comigo), não entra na sua programação. Eu respeito quem deixa de convidar pelas razões que queira”, disse o presidente português, que seguiu sua agenda no Brasil mantendo encontros com os também ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer e prestigiando a Bienal do Livro em São Paulo, que neste ano homenageia escritores portugueses.

Se os laços entre as duas nações irmãs não haveriam de ser enfraquecidos pela pequenez política e diplomática de Bolsonaro, não deixa de ser escandaloso o absoluto descaso do presidente da República pelos interesses dos cerca de 210 mil brasileiros que vivem em Portugal e pela manutenção de relações, se não amistosas, ao menos civilizadas com o chefe de Estado de um país cuja relevância é enorme para o Brasil, por razões óbvias demais para serem descritas.

Não que ainda houvesse dúvidas, mas o episódio de descortesia com sua contraparte portuguesa é mais um a revelar que Bolsonaro não se importa com os interesses do Brasil e dos brasileiros, tanto os que vivem aqui como os que vivem em Portugal. No raio de alcance de sua visão só estão seus interesses pessoais e familiares. Todas as suas ações e omissões como chefe de Estado e chefe de governo têm sido orientadas não pelo interesse público, mas por seus objetivos particulares, sobretudo seu interesse eleitoral. Nesse sentido, para Bolsonaro, qualquer pessoa que se encontre com seu principal adversário até o momento, não importa o motivo, só pode estar conspirando contra ele.

Mas Bolsonaro passará. Muito mais do que entre os dois chefes de Estado, as relações entre Brasil e Portugal serão para sempre relações entre dois povos amigos, fortemente atados por laços históricos, culturais, econômicos e afetivos.

O Estado de São Paulo

O mito do burro de carga




A economia de bairrismo é frágil e desprestigia uma força do Estado: sua vocação cosmopolita

Por Pedro Fernando Nery (foto)

O governador Rodrigo Garcia deu vazão no último mês a um mito popular em São Paulo e no Sul. Garcia passou a incluir nas suas falas o argumento de que São Paulo paga impostos demais para sustentar Estados pobres – como Maranhão, Piauí e Acre –, recebendo de Brasília pouco em troca: “15 vezes menos do que a gente manda. SP está virando burro de carga do Brasil”. É um mito.

Precisamos entender o que é contabilizado na conta do argumento como recebimento dos Estados. Normalmente, apenas transferências diretas como as do Fundo de Participação

dos Estados, que de fato prioriza regiões mais pobres. Mas a conta ignora dois valores importantes que a União gasta mais com Estados mais ricos.

Um é o quanto a União deixa em pagamento de benefícios previdenciários e trabalhistas – que são mais escassos em áreas pobres onde há pouco emprego formal. Essa omissão no argumento é importante principalmente para os Estados do Sul, que pagam menos do que levam desse arranjo.

O segundo valor ignorado é o das renúncias fiscais, o quanto a União abre mão de arrecadar em tributos federais. São “gastos indiretos” em que São Paulo é líder no País, mesmo quando considerada a sua participação no PIB ou no número de habitantes. Também chamados de “gastos tributários”, este montante nem sequer considera a isenção no IR para lucros e dividendos, que também beneficia mais a elite de SP.

Há ainda outras questões, fora das contas públicas, para se considerar. Para que serve a Federação para São Paulo, ou para os Estados do Sul? Estados do Norte e do Nordeste fornecem aos mais ricos um mercado consumidor protegido (não podem impor tarifas de importação nem fechar acordos de livre comércio com outras áreas), serviços ambientais (como as chuvas geradas na Amazônia) e proteção territorial – além de mão de obra.

Um exemplo anedótico do potencial de “exportação” de capital humano das regiões pobres é o caso do ITA – instituição que teve quase metade das vagas nos últimos anos preenchidas por cearenses. Boa parte se torna profissional de alta produtividade que contribui para o PIB das áreas mais ricas, apesar de o custo da formação inicial desse capital humano ter sido suportado por uma sociedade pobre.

Na verdade, nem sequer é exclusiva do Brasil a concentração da atividade econômica no território (pense em Argentina e Portugal, ou Coreia do Sul e Inglaterra). A economia de bairrismo é uma construção intelectualmente frágil, que desprestigia uma das forças do Estado: sua vocação cosmopolita.

O Estado de São Paulo

Campanha com seu dinheiro.




Por Carlos Brickmann (foto)

Vergonha na cara é artigo em falta. Bolsonaro mandou gastar o que temos e o que não temos para facilitar sua reeleição – e, como seria ilegal derramar tanto dinheiro a tão pouco tempo da eleição, usou o tal estado de calamidade. E teve a colaboração de toda a oposição – no Senado, só um parlamentar se colocou contra a gastança eleitoral, José Serra. Os outros, fossem quais fossem seus partidos, botaram para quebrar. O dinheiro não é deles, mesmo.

Agora dá para calcular o custo de arrombar o teto de gastos. Impostos a zero sobre gasolina e diesel reduzem a arrecadação federal em R$ 34 bilhões em seis meses. A redução obrigatória do ICMS dos Estados custa, no mesmo período, R$ 51 bilhões (e o ICMS é que paga a Educação). Com isso, o Fundeb, maior fonte de recursos das escolas, perde R$ 20 bilhões, bem agora que, após dois anos de problemas com a pandemia, é preciso gastar mais para repor o que os estudantes perderam. Os Estados perdem R$ 102 bilhões por ano. E para quê? Uma parte é não apenas meritória, mas essencial na crise: o auxílio para quem precisa. Mas este auxílio dura até o fim do ano. Aí já se torna desnecessário, porque a eleição se terá realizado.

Mas a baixa do ICMS sobre combustíveis fósseis, poluentes (e que rapidamente vão perdendo a liderança no mercado), essa é para sempre. A gasolina mais barata permite a um milionário gastar menos com seu SUV de quinhentos e poucos cavalos.

Governo e oposição brigam. Mas fazem as pazes com o nosso dinheiro.

Um e outro

Lembra-se do empreiteiro José Adelmário Pinheiro, conhecido como Leo Pinheiro, que era presidente da OAS, fez delação acusando Lula e desmentiu a delação? Leo Pinheiro é o pai de Manuella, a esposa de Pedro Guimarães, que deixou a presidência da Caixa Econômica Federal após ser acusado de assédio sexual. Quem trouxe seu nome à baila foi Manuella, ao defender seu marido, via Instagram. “Para muitos, minha guerra por um Brasil melhor começou em 2019 com o Pedro presidente da Caixa Econômica Federal. Entretanto, começou em 2014 com meu pai, Leo Pinheiro”.

Na opinião de Manuella, o objetivo das acusações é destruir sua família.

Foto-foto dupla-dupla

A foto da passeata pró-Lula em Salvador, amplamente divulgada pelo PT, tinha um problema (ou seriam dois?): olhando bem, dava para ver que muita gente aparecia mais de uma vez na mesma foto. Falsificação? Não, informa o PT: a duplicação ocorreu por um “bug” (falha) da foto panorâmica, feita com uma tecnologia que agrupa diversas fotos em diferentes ângulos, tiradas em movimento contínuo. Mas o fotógrafo é Ricardo Stuckert, excelente. E nas campanhas petistas sempre há profissionais de grande talento e competência, dedicados, com o equipamento mais moderno (na tal foto foi usado um drone). Mas o PT diz que eles falharam. Então, tá.

Prepare seu coração

Nesta campanha o que não vai faltar é uso de tecnologia. E a tecnologia evoluiu muito: outro dia, vi um vídeo com o ex-presidente Trump cantando “Despacito”. É impecável. E se dão ao luxo de focalizar de perto os lábios de Trump em vários momentos, mostrando que ele diz o que se ouve. Será preciso, de agora em diante, verificar cuidadosamente até o que está gravado.

Chega de senhas

O ótimo portal jurídico gaúcho Espaço Vital (www.espacovital.com.br) nos traz uma notícia excelente: na última reunião da Apple, aberta apenas a desenvolvedores, o vice-presidente de Tecnologia, Darin Adler, informou que a partir de setembro os novos equipamentos da empresa usarão “uma credencial de última geração mais segura, fácil de usar e que substituirá as senhas”. As chaves de acesso serão criptografadas de ponta a ponta. Daí em diante, será aberto um par de chaves matematicamente relacionadas, uma pública, uma particular. O dono do aparelho usará o Touch ID ou o Face ID e o equipamento fará o restante.

Entendeu? Eu não. Mas como de hábito irei recorrer à Integrasis, o impecável escritório de Informática. O Pascoal Aita Neto e o Carlos Eduardo Lopes Moreira vão cuidar disso e nos mostrar que botões teremos de apertar. Não falta muito para setembro chegar!

As senhas

De acordo com o respeitado Espaço Vital, as cinco senhas mais comuns são 123456, 123456789, 12345, qwerty (seis letras seguidas no teclado) e password. E há quem seja criativo: um conselheiro da OAB gaúcha muda as senhas de três em três meses, sempre no dia 1º. Sua senha anterior tinha sido $juizes@odeiam#penduricalhos...

Trinta e um toques.

Bate o pé

Bolsonaro não quis receber o presidente de Portugal porque o visitante iria também conversar com Lula. Perdeu a chance de iniciar a comemoração dos 200 anos de Independência de presidente para presidente. Ou teremos só a macabra ida e volta do coração de d. Pedro I? Deixem o falecido em paz!

Brickmann.com.br

‘PEC do Desespero’ não prioriza pobres - Editorial




Auxílio para caminhoneiro e taxista não é programa social. É privilégio para a base eleitoral de Bolsonaro. Oposição não pode apoiar uma PEC cujos meios e fins são antidemocráticos

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2022 é uma violência contra as regras do jogo eleitoral. É incompreensível que senadores não alinhados ao bolsonarismo tenham aprovado a criação, no texto constitucional, de um estado de emergência para burlar a legislação fiscal e eleitoral. Para piorar, os parlamentares autorizaram essa aberração jurídica motivados por uma mentira: ao contrário do que o governo diz, a PEC, destinada na prática a comprar votos para a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, cria benefícios sociais para profissionais de classe média, e não para a população carente e desempregada.

O foco da PEC 1/2022, apelidada corretamente de “PEC do Desespero”, tem pouco a ver com os pobres. Ela cria auxílios, por exemplo, para caminhoneiros e taxistas – que, por mais que estejam sofrendo as consequências da crise social e econômica, não fazem parte da população necessitada no Brasil.

Na verdade, caminhoneiros e taxistas só estão na “PEC do Desespero” porque são supostamente parte da clientela eleitoral de Bolsonaro. Sendo assim, e como o desespero bolsonarista é grande diante das pesquisas de intenção de voto, nada impede que outras categorias profissionais (e eleitores em potencial) entrem no pacote de bondades com dinheiro alheio: o relator da matéria na Câmara, deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), quer agora incluir motoristas de aplicativo. Sabe-se lá quem mais será beneficiado até a votação da PEC. Só se sabe que não serão os mais carentes.

Há muitos pobres no Brasil. Recente estudo da FGV Social mostrou que, no ano passado, 62,9 milhões de brasileiros (29,62% da população) estavam abaixo da linha da pobreza. De acordo com critérios consolidados internacionalmente, essa linha é de US$ 5,50 per capita por dia, o que, ajustada por paridade do poder de compra, equivalia a R$ 497 mensais no ano passado. Nas faixas mais pobres, eram 33,5 milhões de brasileiros vivendo com até US$ 3,20 por dia, e 15,5 milhões de brasileiros com até US$ 1,90 por dia. Essas pessoas, no entanto, mal estão contempladas pelos benefícios que a PEC 1/2022 cria.

A PEC tem, portanto, escasso conteúdo social e abundantes privilégios – que, uma vez concedidos, dificilmente poderão ser retirados sem criar ressentimentos. Logo, como a mudança constitucional vale só até o fim do ano, supõe-se que haverá muito ressentimento em 2023. Já os pobres, bem, estes continuarão pobres.

Ou seja, a PEC 1/2022 não é a escolha de um caminho errado – violação das regras fiscais e eleitorais – para um fim supostamente bom. Ao dar dinheiro para determinadas pessoas, sem nenhum critério social, apenas por motivo eleitoral, a “PEC do Desespero” reforça desigualdades, com a produção de novas distorções. Essa disfuncionalidade é rigorosamente contrária ao papel do Estado, que não tem poder nem competência para atuar assim. No seu art. 3.º, a Constituição define que um dos “objetivos fundamentais da República” é “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Tudo isso só faz aumentar a perplexidade perante a votação quase unânime da PEC 1/2022 no Senado. Apenas o senador José Serra (PSDB-SP) foi contrário. Qual é o sentido de a oposição apoiar a criação de privilégios para a base eleitoral de Jair Bolsonaro? Talvez alguém possa achar que o aumento temporário de R$ 200 no benefício do Auxílio Brasil, também previsto na PEC, justificaria todo o restante. No entanto, esse acréscimo, longe de representar algum conteúdo social, só reitera a natureza eleitoreira da “PEC do Desespero”. 

O valor de R$ 200, como tudo o que parte de Bolsonaro, foi definido arbitrariamente, sem nenhum estudo prévio nem qualquer vinculação com as reais necessidades da população. Além disso, a implosão do Cadastro Único, que o governo Bolsonaro vem causando, escancara o objetivo de destituir de sentido social – de proteção da população mais vulnerável – todas as políticas públicas sociais em funcionamento para transformá-las em meras plataformas de compra de votos. Tal aberração, vergonhosamente apoiada pela oposição, não merece nenhuma condescendência.

O Estado de São Paulo

A esquerda de hoje tem Bezos em mais alta conta que Marx




Pegando-se a régua direita X esquerda de 20 anos atrás, que se pautava pela melhoria da vida dos trabalhadores em oposição à predação patronal, G. K. Chesterton, um conservador inglês, seria muito mais esquerdista do que qualquer identitário da Folha. 

Por Bruna Frascolla 

Quatro pernas, bom; duas pernas, ruim. Mutatis mutandis, este é o princípio que rege o letrado ocidental médio do século XXI. “Duas pernas”, sobretudo no Brasil, é qualquer um que possa ser rotulado como bolsonarista. Mas não é só no Brasil (pois convém falar mal de Bolsonaro na Europa também), nem é só bolsonarista (até ontem, a ordem era execrar “trumpistas”). Assim, basta decidir quem é o “duas pernas” do momento e cuidar para ser um “quatro pernas”. A bondade e a respeitabilidade não têm luz própria; alcançam-se por mera oposição ao outro, tachado de vilão. E quando se quiser destruir a reputação de alguém, bastará acusar-lhe do crime de dois-patismos.

É uma prática que cresce sobre a covardia, e que degrada o ambiente cultural. A virtude do intelectual passa a ser o conformismo. Se você não disser nada de novo, receberá o prêmio de ser deixado em paz pelos difamadores. O intelectual não pode mais esperar ser reconhecido por alguma ideia nova. Sérgio Buarque pôde ser aclamado pela ideia do cordialismo; Raymundo Faoro, pela do patrimonialismo. Estes dois nomes têm vínculos históricos com o PT. Isto não os impediu de modo algum de alcançar respeitabilidade fora do seu círculo político. Hoje, porém, a realidade social do mundo inteiro já está inteiramente explicada pelos dogmas progressistas, pela “sociologia diversitária”, para usar uma expressão de Mathieu Bock-Côté. E este é bem preciso ao dizer que “o progressismo é uma revelação: a civilização em que vivemos é radicalmente inaceitável. A revelação exige não um paciente trabalho de releitura da ordem humana, mas antes que se leve esta última a julgamento, em nome de outra história a ser escrita” (O multiculturalismo como religião política, p. 83). O estudioso de humanas tem doravante duas opções viáveis: converter-se em papagaio ou chutar o pau da barraca.

Para tornar a situação da esquerda mais ridícula, a sociologia diversitária é um dogma imposto verticalmente pelo grande capital. O mundo corporativo já fala abertamente em ESG – sigla de “Governança Social e Ambiental” –, que culmina com o governo da sociedade por parte de empresas privadas concertadas entre si, com o povo de fora. A parte social é lacração e a ambiental é ao estilo Greta Thumberg.

Bezos sim, Marx não

Ou seja: no frigir dos ovos, após décadas de esquerdismo e anticapitalismo dominantes, o bom intelectual de esquerda é aquele que tem Jeff Bezos em conta mais alta do que Karl Marx. Embora eles provavelmente nunca tenham pensado nesses termos, esse nivelamento está implícito. Afinal, Marx era um homem do seu tempo: nascido antes da Revelação, não sabia que o machismo, o racismo e a homotransfobia são piores do que a exploração do proletariado pelo capital. Jeff Bezos, a seu turno, faz o possível para redimir os pecados do Ocidente. É verdade que ele é um homem branco cis hétero bilionário, mas – dirá o intelectual – ele é esclarecido o bastante para subsidiar o aborto de suas funcionárias. Por que é bom um capitalista subsidiar aborto? Ora, porque a nova Revelação disse que as mulheres têm que ter o direito ao aborto e que o aborto tem que ser normalizado. Que a gravidez é uma forma de controle sobre os corpos das mulheres, e bom mesmo é sair transando a esmo, sem procriar nem criar vínculos.

É claro que o povo não concorda. Assim, cabe ao intelectual esquerdista esclarecer o povo, seja na marra – criminalizando a sua livre expressão, por exemplo –, seja via educação, de preferência desde a infância. A Disney, que é mais uma outra megacorporação, está aí para ajudar. A mãe vai para o trabalho, porque o salário do marido não basta, e deixa o filho em casa para ser educado por um monte de CEO esclarecido. Até o departamento de marketing da Burger King tem mais autoridade para educar crianças do que os pais. Isso é ESG, e isso é um bypass na democracia. Através do ESG, o CEO progressista manda no filho do evangélico. O intelectual jura que ele está esclarecendo o capitalista, mas não percebe que ele é peça descartável, selecionada conforme os interesses patronais.

Há uma meia dúzia de intelectuais esquerdistas críticos do identitarismo, é verdade. No entanto, é uma raridade encontrar um que não derreta feito açúcar perante o risco de ser acusado de dois-patismos. Criticar a esquerda, sim, desde que isso não fortaleça a “extrema direita populista” – ou seja, o político eleito pelos trabalhadores. O destino desse nicho é constituir uma contracultura irrelevante, pois é incapaz de lidar com o fato de que a “extrema direita” é o único agente da política institucional a se opor ao identitarismo. O evangélico normal e o esquerdista à moda antiga vão para o mesmo paredão identitário, mas só o primeiro esboça uma reação. O segundo não só não esboça nada de concreto, como ainda ataca a reação. É como se um anticomunista inveterado, preso em Auschwitz pelos nazistas (que prendiam conservadores também), pegasse paus e pedras para atacar o Exército Vermelho em 1945. Uma estupidez estupefaciente.

Há, entre os letrados, a lealdade à “esquerda” – nem que a “esquerda” seja essa coisa aí, que jogou a preocupação com igualdade econômica no lixo para ficar adulando bilionário monopolista. A “esquerda”, hoje, nada mais é que uma patota de gente “respeitável” que age segundo a pressão dos seus pares. Há muita venalidade para explicar isso; mas há muita falta de inteligência também.

Igual à Inglaterra de 100 anos atrás

Pegando-se a régua direita X esquerda de 20 anos atrás, que se pautava pela melhoria da vida dos trabalhadores em oposição à predação patronal, G. K. Chesterton, um conservador inglês, seria muito mais esquerdista do que qualquer identitário da Folha. Em seus escritos sobre as regulações progressistas impostas às famílias (vejam-se os livros Eugenia e outras desgraças e A superstição do divórcio & outros ensaios), defende a tese geral de que o Estado havia enlouquecido, tendo sido tomado por pretensos homens de saber voltados à gestão de escravos. Os homens e mulheres não deveriam mais ser livres para se escolherem uns aos outros; em vez disso, uma autoridade deveria desfazer casamentos em função da condição de feeble minded imputada a um dos cônjuges. Se a livre procriação continuasse a existir, a Inglaterra ficaria disgênica.

Em vez de olhar para causas sociais do caos nas grandes cidades – que tinham tudo a ver com o êxodo rural e a miséria do capitalismo primitivo –, buscavam-se causas físicas a serem resolvidas por cientistas da natureza, dispensando-se assim qualquer reforma econômica. Com essas leis “científicas”, o povo era transformado em rato de laboratório: “eu simplesmente não consigo conceber qualquer pessoa responsável propondo-se a criar leis [eugênicas] baseadas em nosso saber minguado e indefinida ignorância sobre a hereditariedade”, dizia Chesterton. Na época, nem se tinha descoberto o DNA ainda, mas a Ciência já era tão sabida que ia resolver o problema da degeneração social.

Em vez de dar ao trabalhador um salário bom para sustentar mulher e filhos, resolvia-se o problema tirando a esposa (pelo divórcio) e diminuindo a quantidade de filhos (“controle de natalidade”). O socialismo, que tinha começado como uma ideia bela e simples, se provara simples demais para ser correto. Em seguida – há mais de cem anos atrás – seu nome se tornara um meio de piorar ainda mais a vida do trabalhador, agora todo regulado e vigiado pelos patrões: “perdeu-se o ideal da liberdade e o ideal do socialismo foi alterado, até não ser mais do que uma desculpa para a opressão dos pobres”.

Assim, querem que sejamos felizes sem família, sem casa própria, sem carro, sem sequer eletrodomésticos, comendo inseto em vez de bife. E se um dos slogans do WEF trazem à mente os versos “Eu não tenho carro / eu não tenho teto”, da canção popular “Lepo-lepo”, devo dizer que nem lepo-lepo haverá, porque ansiedade e depressão são generalizadas, e antidepressivo costuma cortar libido. Sem carro, sem teto, sem lepo-lepo, comendo inseto. E inseto requentado num micro-ondas alugado da Amazon ou similar.

Ditadura de pernósticos

Como o mundo atual lembra muito essa Inglaterra de Chesterton pouco estudada, acho que cabe ler o que ele dizia dos intelectuais de então. Afinal, a esquerda de hoje mostra que a adesão ideológica é pífia, o que importa mesmo é a valorização do pertencimento ao clube de bem-pensantes – que bem podem ser descritos como janotas, pedantes, pernósticos. Deixo aqui uma citação escrita no ano de 1910: “O perigo é que o mundo pode sucumbir sob o poder de uma nova oligarquia – a oligarquia dos pernósticos. E se alguém me pedir, de bate-pronto (à maneira dos círculos de debate), a definição de pernóstico, só posso responder que um pernóstico é um oligarca que nem sequer sabe que é um oligarca. 

Um círculo de pequenos pedantes, do alto de uma plataforma, declara unanimemente (durante uma reunião a que ninguém comparece) que não há nenhuma diferença entre os deveres sociais dos homens e os das mulheres, a educação dos homens e a das crianças na sociedade. Abaixo deles, ferve aquela multidão oceânica de milhões que pensam diferente, que sempre pensaram diferente e que sempre pensarão. A despeito das maiorias esmagadoras que conservam a velha teoria da vida, tenho sinceras dúvidas sobre quem vencerá. Devido à inércia da teologia e de todos os outros sistemas claros de pensamento, os homens voltaram, em grande medida, a depender de seus instintos, como os animais. Como acontece com os animais, seus instintos estão certos; mas, como também acontece com os animais, esses instintos podem ser domesticados. Diante da agilidade dos intelectuais e da inércia da multidão, tenho sérias dúvidas sobre qual dos lados triunfará, muito embora tenha plena certeza sobre qual deles deveria triunfar” (A superstição do divórcio & outros ensaios, p. 146).

Gazeta do Povo (PR)

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