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segunda-feira, julho 03, 2023

Democracídio

Natalia Viana da Agência Pública natalia@apublica.org Cancelar inscrição

14:14 (há 5 horas)
para mim

No seu voto, falou brevemente sobre isso: “nos últimos tempos nós temos sido fustigados com toda acidez com todas as críticas. A crítica faz parte; o que não se pode é um servidor público no equipamento público, com divulgação pela EBC e pelas redes sociais oficiais, fazer achaque contra ministros do Supremo, como se não estivesse atingindo a própria instituição. E não há democracia sem poder judiciário independente”.  

Citou, ainda, o jurista italiano Francesco Carnelutti para dizer que Bolsonaro tinha a “consciência de perverter", ou seja, sabia que não tinha razão, mas usou a mentira como método para perverter a confiabilidade e colocar em risco a normalidade a legitimidade do processo eleitoral “e portanto da própria democracia”. 

Diferentemente do que deixa transparecer no seu voto cirúrgico, Carmen Lúcia tem uma percepção bem aguçada sobre o processo medonho ao qual o Brasil foi submetido nos últimos anos, como eu vim a saber no ano passado. Ela conhece o filme, e não só a fotografia. 

Quando eu estava estudando em Harvard, ainda no primeiro semestre de 2022, assisti junto com o professor e pesquisador David Nemer de uma palestra organizada pelos alunos brasileiros da Faculdade de Direito daquela prestigiosa universidade

Depois de uma apresentação dos estudantes, a ministra apareceu numa tela, enorme – seu rosto cobria quase toda a parede da sala centenária, diante de um pequeno auditório ocupado majoritariamente de advogados. Ela então fez uma exposição sobre um conceito que ela mesma havia criado, o democracídio, o percurso, talvez inevitável, de uma democracia que cria mecanismos de se suicidar através dos seus próprios meios, um fenômeno novo tanto no Brasil como em outros países.

Foi a primeira vez que eu a vi falar, e me marcou como, por trás de um manto de formalidade, ela parecia estar assustada. Naquele dia, depois de meses fora do meu país, saí com um enorme aperto no coração ao ouvir uma representante da principal Corte falar de maneira tão contundente e honesta; ela parecia saber que até mesmo a capacidade de resposta do STF era limitada diante do achaque de uma força popular, populista e violenta. E eu passei a admirá-la. 

É eloquente que o mesmo ato que levou Bolsonaro ao banco dos réus no TSE, a reunião com os embaixadores sobre o qual discorreu o voto de Carmen Lúcia, tenha sido também o que deu origem a uma das mobilizações mais bonitas da sociedade civil recentemente, a carta e o evento em 11 de agosto rechaçando o golpismo bolsonarista e apoiando o STF.  
 

A única solução contra o tal do democracídio é justamente que as instituições cumpram a sua função, e que sejam aplaudidas e defendidas por isso. Nós, que nos julgávamos rebeldes, tivemos que aprender – e teremos que aprender ainda mais – a defendê-las repetidamente.
  

O que não significa deixar de pedir seu aprimoramento e sua democratização e, claro, seguir investigando também esse poder.

Sabemos que o bolsonarismo não acabou na quinta-feira passada. E nem a sobrevida política do seu líder, como comprova a iniciativa de deputados do PL de armar um projeto de lei para anistiar o ex-presidente. Sabemos que arrastar a narrativa de vítima, os recursos, os processos, fazem parte da estratégia do populismo digital que vive de atiçar seus seguidores via redes sociais. Mas não é porque virão novos estratagemas que devemos deixar de dizer: essa semana, pelo menos, podemos respirar. 

É por isso que, hoje, celebro o fato de termos Carmen Lucia. 


Natalia Viana
natalia@apublica.org
Diretora Executiva da Agência Pública

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