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domingo, abril 26, 2020

“Estamos num labirinto sem saber que saída vamos encontrar”, diz Sarney


Constituição de 88 foi feita com os “olhos no retrovisor”, diz Sarney
Fábio Zanini
Folha
Recolhido do debate público, mas ainda atuante nos bastidores, Sarney não vê risco para o que considera a grande obra de sua vida política, a redemocratização. Ele chama os pedidos por um novo AI-5 de “saudosismo inalcançável”. “O Brasil hoje tem uma democracia consolidada”, afirma.
Sobre os reiterados flertes do presidente Jair Bolsonaro com grupos que defendem intervenção militar, diz serem episódios sem maior importância. “São condutas políticas eventuais.”
O senhor imaginaria chegar aos 90 anos no meio da situação que estamos vivendo?
Eu nunca pensei em viver tanto. Quando eu nasci, em 1930, no interior do Maranhão, não se fazia ainda o cálculo da perspectiva de vida. Mas em 1965, a perspectiva de vida no Maranhão era 29 anos. Em 1930, devia ser no máximo uns 20 anos. Eu atravessei todas as doenças da infância. Vivi numa casa de 50 metros quadrados de chão batido. Só malárias tive três, e todas as doenças que naquele tempo as crianças tinham e as levavam para o céu.
Nesses 90 anos o senhor se lembra de alguma crise tão grave como a atual?
Assisti a todas as crises do Brasil e às do mundo. Mas eu realmente nunca assisti a um momento de tanta superposição de crises. Acredito que essa vai mudar um pouco o mundo, porque vai ter que transformar o pensamento do homem. Até agora o homem pensou individualmente em resolver os problemas pessoais, da natureza, dos Estados. Mas essa crise nos mostra que temos de pensar coletivamente. Porque o que está ameaçado é a vida humana
A sua grande obra na política foi a redemocratização?
Acho que sim. Deus me deu esse encargo de ser presidente na redemocratização. Coube ao meu tempo de governo um momento em que a história se contorcia. Passávamos do regime autoritário para o regime democrático. Isso necessitou uma engenharia política de grande envergadura. Acredito que dei minha contribuição com meu temperamento de paciência, tolerância, diálogo. Só eu sei as dificuldades que tivemos que atravessar. O crescimento da renda per capita até hoje não foi repetido. E entregamos o país redemocratizado. Nós tivemos três etapas na história brasileira. A Constituição de 1824 procurava defender a propriedade. A republicana [de 1891], os direitos individuais. E nós conseguimos fazer essa Constituição [de 1988] dos direitos sociais. Terminamos um século de República tendo um operário candidato a presidente.
Como o senhor vê os pedidos de intervenção militar e um novo AI-5?
Isso é um saudosismo inalcançável. O Brasil hoje tem uma democracia consolidada. Esse pensamento é uma coisa que nós não podemos mais mudar, a democracia e uma economia também liberal.
Não há risco de retrocesso democrático então?
Não vejo risco nenhum, porque a mentalidade militar hoje no Brasil é inteiramente favorável à Constituição e à sua submissão ao poder civil, que é a síntese de todos os Poderes. A própria Escola Superior de Guerra tem uma expressão que diz isso no seu manual de estudos.
Como o senhor viu a participação do presidente Bolsonaro num ato em que havia faixas pedindo o AI-5?
São episódios que eu não dou maior importância. São condutas políticas eventuais.
O senhor não tem dúvida sobre o comprometimento do presidente com a democracia?
Eu não tenho dúvida é que o país jamais aceitará ou que as Forças Armadas participarão de qualquer aventura que não seja baseada na Constituição, embora a Constituição de 1988 tenha muitos defeitos. Eu mesmo denunciei que ela ia tornar o país ingovernável. Basta ver que tivemos 105 emendas e ainda temos umas cem para fazer. Eu sou parlamentarista. O parlamentarismo é o regime que realmente acaba com esses abalos que nós vivemos nesse presidencialismo que não se sabe de que tipo é. O Congresso é o coração da democracia. Só não implantamos o parlamentarismo quando eu era presidente porque o Mário Covas [ex-governador de São Paulo] vetou o acordo que estávamos fazendo.
O senhor, que presidiu o país e o Congresso, como vê a artilharia verbal entre Bolsonaro, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre?
Vejo como uma prova de subdesenvolvimento político.
Deveria haver uma relação mais harmoniosa entre os presidentes de Poderes?
Isso vai ter que existir. O próprio amadurecimento do sistema democrático vai nos levar a isso.
O que o senhor acha do discurso de que é necessária uma nova política, usado inclusive pelo presidente Bolsonaro?
Isso são táticas circunstanciais. Não tem nenhuma profundidade. No Brasil, nós nunca tivemos partidos políticos com essa divisão de velha política ou nova política. A política é uma só. Nós estamos num labirinto sem saber que saída vamos encontrar. Eu debito muito das crises atuais aos erros da Constituição de 1988. Foi uma Constituição feita com os olhos no retrovisor e na estabilidade do país, o dos direitos individuais e o dos direitos sociais..
Por que o senhor diz que a Constituição foi feita com o olho no retrovisor?
Ela é híbrida, é parlamentarista e presidencialista. Deu funções legislativas ao Executivo e funções executivas ao Legislativo. Isso cria a base dessa atual briga entre o Congresso e o Poder Executivo.Na sua longa carreira política, quais foram as figuras que mais lhe serviram de referência? Na história do Brasil, a maior foi o José Bonifácio. Foi quem formulou o país, que surgiu em um ambiente civil, ao contrário da América espanhola, construída em batalhas. Depois, vejo a figura do Rio Branco, que deu a visão de país. Daqueles com quem convivi, destacaria Afonso Arinos, Carlos Lacerda, Juscelino [Kubitschek] e Jânio [Quadros], que, com todos os defeitos, tinha um grande espírito público.

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