Jorge Béja
Para chegar ao âmago, ao ponto central deste artigo, é preciso relembrar e contar, ainda que com brevidade e ligeireza, fatos que lhe são introdutórios. Na década de 1980, muito frequentei o Jockey Club Brasileiro (JCB), na Gávea, Rio de Janeiro. Sempre aos sábados, chegava por volta das 13 horas, antes da largada do primeiro páreo. E no varandão do setor social, me sentava à mesa redonda do almoço ao lado de gente famosa, dos quais era eu o menor de todos eles: Lima Duarte, Débora Duarte, Herval Rossano, Domício Costa, Chico Anysio e, vez ou outra, Jô Soares. Conversávamos muito. Cada um pagava a sua conta.
E uma funcionária do JCB sempre subia lá antes da largada dos páreos para pegar nossas apostas, descer de elevador até o andar térreo, fazer o jogo no guichê em que ele atendia, e de volta subia para entregar as “pules”. Bons tempos que não voltam mais.
DESESPERO – Certo dia de semana, num início da tarde, aquela moça do JCB, muito aflita e chorando copiosamente, bate à porta do meu franciscano escritório de advocacia e me pede, desesperadas: “Dr. Béja, dr. Béja, socorro! Minha irmã de 18 anos acabou de ser presa. Pelo amor de Deus, liberte minha irmã. Ela está no xadrez da 13ª Delegacia de Polícia”.
Mesmo sem ser criminalista, imediatamente fui até à 13a. DP, até hoje no mesmo lugar, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. E lá li o auto e prisão em flagrante e me entrevistei com a jovem. Ela me contou qe tinha sido presa por PMs na Rua Sá Ferreira logo após ter comprado um cigarro de maconha. O traficante escapou! Só a moça foi presa. Ela declarou ao delegado e a mim que nunca tinha fumado maconha. Que pela primeira vez ia experimentar.
EM FLAGRANTE – Eu sabia que a situação dela era péssima. Na época estava vigente a antiga Lei de Entorpecentes (Lei 6.368, de 1976). E o temido artigo 12 apenava com prisão de 3 a 15 anos e multa, sem distinção alguma, nem mesmo de quantidade do entorpecente apreendido, quem transportasse e trouxesse consigo substância entorpecente (droga).
Levada à presença do juiz –, aliás, de uma juíza criminal – a moça contou a verdade. Que nunca fumou maconha. Que era a primeira vez que ia experimentar. Que estava arrependida. Que trabalhava. E fez comoventes desabafos, sempre chorando e soluçando muito, ela, sua mãe, seus irmãos, eu e minha esposa que estava lá comigo… Todos chorávamos juntos. A juíza decidiu ouvir o promotor que concordou tomar por termo, na mesma audiência, as declarações de todos, inclusive dos dois PMs que efetuaram a prisão. Até eles estavam emocionados.
VER, OUVIR E SENTIR – O que interessa, nesta época em que se fala da instituição do “juiz de garantia”, vem agora. A juíza, no quinto dia seguinte à prisão da jovem, assinou a sentença absolutória. E o que importa registrar foram os verbos que a juíza repetiu várias vezes na sua longa e bendita sentença: ver, ouvir e sentir.
Sentenciou a juíza que condenar aquela jovem era o mesmo que destruir o seu futuro. Que ela era inocente, na acepção mais verdadeira da palavra.
“Eu colhi seu interrogatório. Eu vi, eu senti e ouvi declarações de pureza e candura. Independente dos laudos e exames médicos-periciais que constataram que ré não ingeriu bebida alcoólica e também não fizera uso de substância entorpecente, conforme resultado dos exames médicos existentes nos autos, estou convicta de que é meu dever dar-lhe a libertação. Isto porque eu colhi seu depoimento, eu a senti, e com a ré eu conversei na audiência. E dela ouvi sua história de vida e eu a senti pura, sem maldade e tomada de arrependimento. Eu ouvi o depoimento de familiares e testemunhas que falaram a verdade a este juízo. Eu não posso condená-la”.
NAS MÃOS DE DEUS – A juíza então mandou expedir mandado de soltura. E determinou que a jovem, uma vez por mês, comparecesse à sua presença para contar o que estava fazendo na vida. Não foi uma imposição da juíza, mas uma preocupação carinhosa. Até que um dia a jovem desapareceu do fórum. E ao me ver no corredor, a juíza me indagou o paradeiro dela. Sem ter a resposta na hora, fui à família. E fiquei sabendo que a jovem tinha ingressado num convento na região serrana do Rio. E decidira se tornar freira.
Fui até lá, com minha mulher. E encontramos a jovem já vestida com o “hábito” preto. Hoje, perto de 40 anos depois e com 58 anos de idade, a irmã RPSF é a madre superiora do convento.
Indaga-se: que sorte teria essa jovem se, naquela época em que foi absolvida pela mesma juíza que presidiu toda a instrução criminal do processo, existisse o tal “juiz de garantia”, que nada mais é do que o juiz que instrui o processo, que colhe depoimentos, que ouve o acusado, que ouve testemunhas e depois envia os autos do processo ou do inquérito policial, segundo consta (papelada, enfim) para um outro juiz, que examinará os textos, frios e sem vida, e sem ter mantido qualquer contato pessoal, direto ou indireto, com as pessoas envolvidas (principalmente com a parte acusada), e dará a sentença final?
TERIA SIDO INOCENTADA? – Certamente a sorte da jovem teria sido outra. Nem se diga que a criação do “juiz de garantias” ficaria limitada apenas ao exercício de uma espécie de “presidência do inquérito policial”. Isto porque juiz não preside inquérito, e sim delegado de polícia.
Ou o magistrado é o juiz da causa ou não é. Se for, não pode repartir seu ofício com outro magistrado. Precisa ver, ouvir e sentir qual é a decisão mais acertada.