Wilson TostaEstadão
Uma lenda ronda a política brasileira desde a redemocratização. Trata-se do grande pacto nacional, que uniria o País em torno de um projeto de desenvolvimento e, de quebra, nos redimiria a todos, salve, salve. Nunca se concretizou, mas, de vez em quando, reaparece, geralmente em períodos de crise, levantado quando há interesse em silenciar divergências ou em baixar a temperatura da radicalização.
Não por acaso, semana passada, em meio à “turbulência perpétua” vivida pelo presidente Jair Bolsonaro desde que assumiu o cargo, o pacto voltou à vida. A iniciativa não caiu bem. Dizia-se antigamente, em tom de piada, diante de roupas mal-ajambradas que o defunto (o dono original da vestimenta herdada) era maior (ou menor). Foi essa a impressão que ficou.
HAVERÁ GANHADOR? – Ninguém pareceu bem no retrato, a não ser, claro, o presidente da República. Com razão: Bolsonaro será, talvez, o grande ganhador se a proposta se concretizar, o que parece hoje complexo.
O cenário para o pacto fora montado nas ruas, pelo setor mais radicalizado do bolsonarismo. É a turma que responde às críticas fazendo arminha com o polegar e o indicador e, se triunfar a sua vontade, haveria uma “segunda revolução” – a primeira se deu em 28 de outubro de 2018, acreditam.
Anda furiosa porque as bravatas da campanha eleitoral esbarraram na realidade – afinal, governar não é tuitar -, e a culpa por isso, claro, é do marxismo cultural e seus diabólicos agentes. Atendeu ao chamado do presidente, que expusera as resistências que identificou a seu governo.
MAIORES ALVOS – Com esses ativistas, Bolsonaro demonstrou força, como você acompanhou aqui. Os alvos dos manifestantes foram o Congresso, principalmente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o Centrão e o Supremo Tribunal Federal (STF).
Dois dias depois das manifestações, Bolsonaro, Maia, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) e o presidente do STF, Dias Toffoli, se reuniram no Palácio da Alvorada. Com a pompa vazia dessas ocasiões, falou-se que a proposta de acordo nacional era muito anterior aos atos do domingo anterior – mas ninguém acreditou. Foi a impressão de que a temperatura da polarização continuava a subir, desde que estudantes e professores protestaram pela primeira vez contra o contingenciamento de verbas, em 15 de maio, que impulsionou a ideia de pacto.
A percepção de que poderia estar em curso uma escalada de manifestações (já estava marcada a segunda rodada em defesa da educação, para 30 de maio, menor que a primeira, mas também significativa, parece ter forçado o gesto.
VETO A TOFFOLI – Prometeu-se na reunião um documento, formalizando o acordo, em duas semanas, mas houve quem questionasse a presença do chefe do STF na reunião.
Afinal, magistrados não fazem política – nem, em tese, negociam – e devem, por dever de ofício, julgar atos dos outros poderes, não importa quão otimista o presidente Dias Toffoli tenha sido em sua avaliação. Diante da crítica de outros magistrados, ficou a dúvida: o que fazia ali Sua Excelência?
Para Bolsonaro, um pacto moderador seria muito conveniente em um momento de dificuldades políticas e judiciais. A pedido do Ministério Público do Rio, a Justiça quebrou os sigilos bancário e fiscal de seu filho, o senador Flavio Bolsonaro (PSL-RJ), do ex-lugar-tenente do parlamentar, Fabrício Queiroz, e de dezenas de outras pessoas.
DEZ LONGOS ANOS – A devassa abrangerá dez anos da vida financeira do senador, que chegou a recorrer mais uma vez ao Judiciário para barrar a investigação – sem sucesso. Os problemas já atingem a franja de eleitores que apoiaram o presidente no segundo turno, e tendem a abandoná-lo, como mostrou pesquisa publicada pelo Estadão.
O mercado também se mostra reticente: avalia-se agora que o otimismo do empresariado com Bolsonaro foi exagerado e que o governo enfrenta condições críticas em sua articulação política das medidas econômicas. Que tal um pacto para acalmar as coisas?
Tirada a foto com os demais chefes de Poderes, Bolsonaro voltou a ser Bolsonaro. Três dias depois da reunião do Alvorada, o presidente criticou a iniciativa do STF de criminalizar a homofobia, equiparando-a ao racismo e pediu um ministro evangélico no Supremo – apesar de os julgamentos, no Brasil, serem feitos segundo as leis, não de acordo com convicções religiosas.
AOS EVANGÉLICOS – Ele falou diante de parte de seu público, na Convenção Nacional das Assembleias de Deus, em Goiânia, onde foi aplaudido. A outra plateia favorável, formada por caminhoneiros reunidos em uma churrascaria de beira de estrada em Anápolis, o presidente queixou-se de estar comendo “o pão que o Diabo amassou”.
Também afirmou, em entrevista, sofrer sabotagem. Manteve alta, portanto, a fervura no ambiente político. Mas no fim de semana, como se nada houvera, garantiu: está “de boa” com Rodrigo Maia e o Congresso, que seus turbulentos apoiadores atacaram nas ruas, nas manifestações que o presidente estimulou.
Fica difícil acreditar que o tal pacto sairá do lugar em que hiberna desde a redemocratização – o plano da lenda.