Bolsonaro deixou de dar entrevistas na portaria do Alvorada
Marcos StreckerIstoÉ
Nos últimos dias, o Brasil está conhecendo um novo presidente. Confrontado com as ameaças crescentes ao seu governo, Jair Bolsonaro não ataca mais a imprensa, não participa de atos golpistas, prega a harmonia com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso e demonstrou até compaixão com as vítimas da Covid-19 em uma live bizarra que incluiu o presidente da Embratur como sanfoneiro.
O cerco se fecha a partir dos vários inquéritos que assolam o presidente, sua família e colaboradores no STF: fake news, atos antidemocráticos e interferência na Polícia Federal (PF). Os extremistas que rondavam a praça dos Três Poderes pregando o fechamento do Congresso e do STF foram presos.
PRISÃO DE QUEIROZ – O tiro de misericórdia para mudar o humor presidencial, no entanto, foi a prisão de Fabrício Queiroz, amigo de décadas de Bolsonaro e ex-assessor de seu filho Flávio. Ele é acusado pelo Ministério Público do Rio de ser o operador de um esquema de rachadinhas liderado pelo filho na Assembleia fluminense. O escândalo, que inclui o envolvimento com milícias, levou a crise para dentro do Palácio do Planalto. Isso abateu Bolsonaro mais que qualquer adversidade enfrentada desde o início do governo.
Para proteger o clã e preservar seu mandato, o presidente mudou sua estratégia. Acabaram suas aparições diárias no “cercadinho” do Palácio do Alvorada, que geravam crises diárias. Foi uma recomendação dos militares palacianos. A ala fardada passou a mandar mais, e o núcleo ideológico, próximo dos filhos, perdeu protagonismo. Um exemplo desse movimento é a escolha do novo ministro da Educação, que passou por critérios mais técnicos e menos doutrinários, apesar da desastrada indicação avalizada pelos militares de um ex-oficial da Marinha que nem esse título tinha.
MINISTROS TRAPALHÕES – Outro exemplo é a pressão pela demissão dos dois ministros ideológicos que têm causado os maiores estragos na relação com investidores e parceiros comerciais: Ernesto Araújo (Itamaraty) e Ricardo Salles (Meio Ambiente).
O plano é minimizar as acusações criminais e criar uma agenda positiva, imprimindo uma marca realizadora. Bolsonaro planeja recuperar a popularidade com inaugurações, que estão sendo discutidas com aliados políticos e deputados do Centrão.
Uma lista com 30 rodovias, viadutos, estradas pavimentadas e pontes restauradas está sendo preparada pelo ministro Tarcísio Freitas (Infraestrutura). A inauguração de um trecho da transposição do rio São Francisco no Ceará, no dia 26, já fez parte desse roteiro.
EXEMPLO DE LULA – Ao criar essa agenda positiva, Bolsonaro lembrou o momento mais delicado do governo Lula, em meio ao escândalo do Mensalão. Nas cordas e com a popularidade em queda, o ex-presidente tentou desviar a atenção do primeiro megaescândalo de corrupção da era petista. Apostou suas fichas no Bolsa Família e criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que tentou embrulhar várias obras de infraestrutura com um discurso triunfal e uma roupagem desenvolvimentista.
O resultado foram centenas de obras paradas, dívidas acumuladas e mais corrupção, como se sabe. Mas Lula conseguiu recuperar a popularidade e usou o PAC para eleger a sucessora, Dilma Rousseff. Outro pilar de sustentação também segue a cartilha petista. Será o Renda Brasil, programa que deve incorporar o Bolsa Família e benefícios como o abono salarial e o seguro-defeso.
AUXÍLIO EMERGENCIAL – O caminho foi apontado pelo auxílio emergencial preparado às pressas na pandemia, de R$ 600 mensais. Ele acaba de ser estendido porque o presidente percebeu o seu potencial político. Agora, Bolsonaro quer criar o seu próprio Bolsa Família. Além de dar uma face social ao governo, o programa pode dar frutos eleitorais exatamente na região em que o bolsonarismo é mais fraco e o petismo ainda impera — no Nordeste e no Norte.
O terceiro suporte do novo governo é o Centrão. A corrida pelo apoio desses partidos fisiológicos e sedentos de cargos tem se acelerado sob a coordenação do general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo). Também sinalizando com uma distensão, Ramos, que era o único militar da ativa entre os ministros palacianos, anunciou que passará à reserva. Com isso, diminui o fantasma da interferência do Exército, sem contar a ameaça de um golpe, feita várias vezes pelo presidente, de forma não muito velada.
MILITARES EM DÚVIDA – “Os militares já devem estar refletindo sobre a vantagem de continuar ou não no governo. Demoraram muito para limpar seu nome, saíram de forma desgastada da ditadura. Se as evidências comprovarem o conhecimento do presidente sobre as falcatruas do filho, a probabilidade maior é Bolsonaro ser abandonado por eles”, afirma o cientista político Carlos Pereira, da FGV.
Essa mudança de rota era previsível, segundo Pereira. Ele acha que a estratégia do confronto com o Congresso e as instituições, inclusive com a imprensa, só poderia gerar benefícios no curto prazo. Há uma extensa literatura política sobre o assunto nos EUA. No decorrer do tempo, esse método de ação só poderia gerar passivos, animosidades e ressentimentos.
“Bolsonaro viu o tamanho da conta, que ameaça sua própria sobrevivência. De uma forma tardia, buscou apoio junto ao Centrão. Mas fez isso de uma forma frágil, para se salvar do impeachment. Queiroz sinaliza muita vulnerabilidade. O presidente está fraco e precisa do suporte do Congresso”, diz.
BASE DE APOIO – O presidente reuniu uma base de apoio de cerca de 30% da população por meio de um discurso radical, polarizado. Só que ao fazer isso se desgastou com as instituições. Para diminuir a tensão, buscou uma coalizão. Mas, com as investigações avançando, esse roteiro pode ser acidentado.
Vai ser difícil manter o apoio da sociedade e do Congresso, e o Centrão vai aumentar a fatura pelo apoio. Há uma tempestade perfeita se formando. Além da crise de saúde com a pandemia, que já provocou mais de 60 mil óbitos e 1,5 milhão de infectados, a crise econômica vai cobrar um preço enorme para a sociedade. “Bolsonaro tenta sobreviver em uma situação gravíssima”, afirma Pereira.
A nova fase do governo pode ainda derivar para o populismo econômico e comprometer o ajuste fiscal. O teto de gastos, aprovado no governo Michel Temer, que tem garantido os juros baixos e disciplinado a inflação, está na mira daqueles que tentam reviver a expansão via gastos públicos — como a ala militar do governo, que já tentou emplacar o Pró-Brasil, uma nova versão do PAC. O País entrou em recessão no primeiro trimestre deste ano, segundo a FGV, e ela pode ser a maior da história. O Ministério da Economia acha que o PIB vai cair 4,7% em 2020. O FMI estima que o tombo será de 9,1%.