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quarta-feira, junho 19, 2024

Debate do aborto tem “uso tendencioso” da Bíblia para defender o reacionarismo


Observe a charge e responda o que se pede: (a) Na fala do quadrinho um as decisões estão sendo tomadas a - brainly.com.brFabiano Lana
Estadão

Nas últimas semanas, no Brasil, o Congresso começou a votar e a aprovar leis que agradam certa militância política, no sentido de coibir o aborto, por exemplo, com penas de prisão cada vez mais duras. São muitas vezes ações de políticos histriônicos que querem um país em que os preceitos da Bíblia sejam aplicados de maneira rígida, punindo quem não segue as regras em tese determinadas por Deus.

A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, por exemplo, em cima de um caminhão, já lamentou que vivemos numa sociedade laica, em que religião e Estado estão separados. Sonha, então, com uma nação em que as normas da Bíblia tenham força da lei. Talvez, de maneira proposital, deixou entender que não se sente confortável em uma democracia.

RETROCESSO ATROZ – E se fosse assim, a seguir os ditos da religião como cláusula inquestionável, que tipo de sociedade teríamos? A Bíblia é um conjunto de livros absolutamente complexos, com amplas possibilidades de interpretação, e mesmo contradições internas, sobretudo se confrontamos o antigo e o novo testamentos. T

raz passagens que defendem igualdade, solidariedade, amor, mas também intolerância e violência – inclusive contra mulheres e crianças.

Mas algo é certo: alguns líderes religiosos brasileiros, nas suas cruzadas contra o aborto, escolheram uma série de diretrizes bíblicas, mais implacáveis, e deixaram outras de lado no momento de fazerem política em Brasília. Aproveitaram a fragilidade do governo, a omissão das forças de centro, e tentaram dar mais uma volta no parafuso do antiliberalismo nos costumes.

MAIORIA É CONTRA – Em tese, a maioria absoluta das pessoas é contra o aborto. O que se deveria discutir com mais racionalidade é se a gestante precisa ser punida criminalmente caso o pratique (querem colocar milhares de adolescentes na cadeia, inclusive vítimas de estupros?).

Sobre a questão específica do aborto não há nenhuma menção direta na Bíblia. Se for invocado o mandato de “não matarás”, além de ser também uma restrição à pena de morte, é possível alegar que o texto sagrado é recheado de assassinatos de pessoas inocentes, alguns ordenados pelo próprio ser Supremo.

Por exemplo, ao contrário do que dizem os filmes hollywoodianos, ninguém que saiu do Egito chegou vivo à terra prometida, nem Moisés. Deus ainda exigiu a aniquilação de todas as aldeias que estivessem pelo caminho, sem poupar vidas. São histórias lancinantes.

TEXTOS AMBÍGUOS – Nesse sentido de ser um texto muitas vezes ambíguo, além de exigir punições severas às práticas homossexuais e, por outro lado, pedir que um irmão sustente o outro em dificuldades, a Bíblia sugere algumas práticas que não são praticadas nem mesmo por quem diz ser representante de Deus na Terra. Na verdade, o que se faz é manipular alguns trechos da Bíblia para obtenção de certos objetivos políticos reacionários.

Porque a gente poderia até escolher outros trechos da Bíblia e perguntar se eles são seguidos também por quem diz ser um ardoroso defensor de Deus. Podemos começar com “nenhuma gordura de boi, nem de carneiro nem de cabra comereis”, (Levítico 7 23), o que nos impede de ir ao churrasco de domingo. “Pelos mortos não farei incisões no vosso corpo nem farei marca sobre vós” (Levítico 20 28), em trecho que impediria tanto as autópsias (assim foi por séculos), quanto as tatuagens.

Também há restrições alimentares, como à carne de animais como a de porco entre uma série de delimitações. A Bíblia também prescreve, já em Coríntios, que durante a oração as mulheres ou devem usar o véu ou rasparem os cabelos. Quem segue esse trecho no Brasil? Nem Michelle Bolsonaro.

USO ERRADO DA BÍBLIA – As amostras aqui são anedóticas no sentido de que a política usa a Bíblia de maneira bem conveniente para atingir seus objetivos de fortalecer certos grupos militantes. O conselho que se dá aqui, por outro lado, não é no sentido de desprezar esse livro tido como sagrado para milhões, mas mostrar que a questão pode ser enfrentada utilizando-se o mesmo texto.

Por exemplo, a Bíblia também possui trechos que podem ser interpretados como passagens de tolerância com a homossexualidade, a saber, essas declarações de Davi a Jonatas, entre outras:

“Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das mulheres” (Samuel 2 1.26).

PALAVRA DE DEUS – A Bíblia é um conjunto de livros tão extensos, tão díspares, tão sujeitos às interpretações divergentes, que é possível levar a infinitos tipos de vida apenas seguindo a chamada palavra de Deus. De santo ascético a terrorista sanguinário.

Enfim, a Bíblia é um livro aberto. É fruto de uma construção histórica (e do espírito santo, caso o leitor seja religioso), que envolve valores de épocas e sociedades diferentes. Cabe a cada um escolher o que fará com o texto ali escrito. Pode buscar um caminho da paz, da guerra, ou simplesmente seguir sem maiores reflexões o que dizem os guias religiosos – pastores, padres, políticos.

 Mas podem apostar que quase nada do que esses líderes dizem ser “a verdade revelada” é algo sem contestações na Bíblia. Muitas vezes um versículo pode vir a desmentir o outro. Muito cuidado com qualquer pessoa que queira te controlar utilizando passagens bíblicas – são textos que podem ser questionados a partir da autonomia e da capacidade interpretativa de cada um.


Método de Lira para atropelar Câmara é aplaudido quando interessa a Lula


Arthur Lira usa métodos que impedem o debate e forçam aprovação de projetos de seu interesse

Lira escapa de processos com uma facilidade impressionante

Carlos Andreazza
Estadão

De repente se descobriu Lira. De novo descoberto. De repente, de novo. De repente de novo. Dilapidador do processo legislativo desde 2021, solapador da democracia representativa, presidente da Câmara cujos métodos para destruir os tempos da atividade parlamentar foram admitidos, muitas vezes aplaudidos, ao operar por agenda de interesse do governo da reconstrução.

O amor e a esperança voltaram; não os mecanismos de obstrução por meio dos quais as oposições-minorias freavam imposições. Obra de Lira. A política voltou, marginalizadas as comissões técnicas e a representação partidária proporcional. A democracia venceu. Com Lira. O sistema de votação remota instrumentalizado para ministrar esvaziamentos episódicos do plenário, com o que controla-cassa os debates.

DUAS VERSÕES – Se o arreganho formal vai pela causa considerada virtuosa, beleza. (Né, Xandão?) E então o escândalo, oh!, quando a manipulação de urgências vem tratorando por projeto infame.

Tentou blitz pelo PL das Fake News. Ninguém entre os ora ofendidos achou ruim a disfunção estrutural produzida pelo regime de pressas-conveniências de Lira. Era por razão nobre. Sempre é. (Pergunte a Sóstenes.)

A tramitação da PEC da Transição – derrama de R$ 150 bilhões para que o governo de nossos salvadores pudesse nos salvar à larga – atropelou o rito, projeto malocado em outro já avançado. Tudo bem. A reforma tributária aprovada com o texto final desconhecido, contrabandos metidos no conjunto enquanto o plenário já o debatia. Era por bons motivos. Até que deixe de ser.

INSANIDADE – “Insanidade” é que se tenha tratado Lira, autoritário-corporativista, como democrata e interlocutor por programa reformista liberal. O senhor da constituição imperial do orçamento secreto. Que o blinda. Que continua, ministro Dino. Nas barbas do Supremo. O blindado sendo primeiro-ministro dum parlamentarismo orçamentário sem responsabilidades pela conta que pendura.

A Corte contribui para a blindagem. Ou, a respeito das traficâncias com kits de robótica, não teremos uma investigação para a qual o STF declarou, na prática, inexistir foro?

O troço não pode ser investigado, nem embaixo nem em cima, provas ao lixo – e tranca. Estímulo que abre veredas. (Nada a ver com o hospital de Maceió.)

DESDENÚNCIA – Houve também o episódio da “desdenúncia”. Por unanimidade. Lira desdenunciado no caso do assessor interceptado com grana no aeroporto. O tribunal que aceitara a acusação de súbito voltando atrás.

Ex-réu. E presidente onipotente de uma Câmara com lideranças murchas, pervertidas em donatários de emendas.

Um presidente reeleito – isto é perturbador – por uma “frente ampla” que uniu, menos de mês depois do 8 de janeiro de 23, bolsonaristas e petistas. Uma República saudável.


Argentina fecha acordo com El Salvador para rigor total no combate ao crime


A ministra da Segurança da Argentina, Patricia Bullrich, e o ministro da Justiça e Segurança Pública de El Salvador, Gustavo Villatoro, na prisão Centro de Confinamento Terrorista (CECOT), em Tecoluca — Foto: PRESIDÊNCIA DE EL SALVADOR / AFP

Ministra argentina foi conhecer o sistema salvadorenho

Deu em O Globo
Agência FP

Os ministros da Segurança de El Salvador, Gustavo Villatoro, e da Argentina, Patricia Bullrich, assinaram na terça-feira um acordo para “fortalecer” a luta contra o crime organizado. O regime de exceção salvadorenho, que o governo argentino e vários presidentes da região querem copiar, é alvo de críticas de organismos de defesa de direitos humanos nacionais e internacionais.

Um relatório de 2023 apontou sinais de tortura, asfixia, choques elétricos e todo tipo de violações de direitos humanos contra presos durante o regime.

COMPARTILHAMENTO – “Seguindo as orientações dos líderes de El Salvador e da Argentina, nosso presidente Nayib Bukele e o presidente Javier Milei, assinamos, juntamente com a ministra Patricia Bullrich, um acordo de trabalho entre os dois países, com o firme compromisso de fortalecer a luta contra o crime organizado”, afirmou Villatoro, em uma rede social.

Segundo o comunicado conjunto, “serão criados espaços de análise especializados para desenhar estratégias e desenvolver ferramentas inovadoras que permitam combater eficazmente os grupos criminosos”.

A visita de quatro dias de Bullrich a El Salvador começou no domingo, quando a ministra argentina conheceu uma megaprisão inaugurada em 2022 com capacidade para 40 mil presos. Na terça-feira, Bukele a recebeu na sede do governo.

COMPARTILHAMENTO – “Compartilhamos com a delegação do Ministério de Segurança da Argentina as ferramentas e ações que implementamos no desenvolvimento do Plano de Controle Territorial, a estratégia de segurança bem-sucedida que deixou resultados sem precedentes em nosso país”, destacou Villatoro.

“Estamos muito impressionados com todo o processo, obtivemos informações absolutamente completas” — disse Bullrich ao presidente salvadorenho.

Em uma América Latina atormentada pela violência, Bukele é o presidente mais popular, segundo uma pesquisa regional. Outros governantes, como Daniel Noboa (Equador) e Xiomara Castro (Honduras), já tentaram imitar seu modelo — até agora sem sucesso.

REGIME DE EXCEÇÃO – A Human Rights Watch e a Anistia Internacional, por sua vez, denunciaram mortes, tortura e detenções arbitrárias durante o regime de exceção, que é sistematicamente prorrogado. Do total de detidos, quase 8 mil já foram libertados — milhares porque são inocentes.

O custo da segurança é pago pela “população injustamente detida”, resume o coordenador da Comissão dos Direitos Humanos, Miguel Montenegro.

No poder desde 2019, Bukele trava uma “guerra” contra gangues sob um regime de emergência em vigor desde 2022. A medida extraordinária, que permite prisões sem ordem judicial, foi decretada pelo Congresso a pedido de Bukele, em resposta a uma escalada de violência que ceifou a vida de 87 pessoas, entre 25 e 27 de março de 2022.

NAS REDES SOCIAIS – Com um forte apelo nas redes sociais e alto índice de aprovação, Bukele foi reeleito para um segundo mandato de cinco anos depois de pulverizar a oposição e obter históricos 85% dos votos nas eleições de fevereiro, nas quais seu partido também abocanhou quase todas as cadeiras do Congresso (54 dos 60 assentos).

Antes mesmo da reeleição, o Parlamento dominado por aliados de Bukele, aprovou uma reforma que lhe dará o poder de reformar quantas vezes quiser a Constituição, o que provocou críticas e temores de que o presidente possa prolongar a duração dos períodos de qualquer funcionário no poder, suprimir direitos dos cidadãos e abrir caminho para sua reeleição indefinida.

À época, 11 organizações da sociedade civil se declararam preocupadas com a reforma, pois estimam que ela levará a uma concentração de poder que deixará os salvadorenhos expostos “a abusos por parte do Estado”.

AMEAÇA À DEMOCRACIA – “A reforma constitucional aprovada enfraquece a democracia, enfraquece o Estado de Direito e também enfraquece a institucionalidade democrática do país” — declarou Ramón Villalta, da ONG Iniciativa Social para a Democracia, à AFP.

Mas, depois de derrotar as gangues e tentar concentrar o poder, os especialistas acreditam que a lua de mel com a população salvadorenha pode acabar por questões financeiras. O país enfrenta uma dívida pública de US$ 30 bilhões (R$ 164 bilhões), 29% dos seus 6,5 milhões de habitantes são pobres e muitos continuam emigrando para os Estados Unidos em busca de trabalho. Os 3 milhões de salvadorenhos que vivem no exterior enviam remessas no valor de US$ 8 bilhões por ano (R$ 43,74 bilhões), o equivalente a 24% do PIB do país.

— A segurança está melhor, não temos mais medo de sair (agora), espera-se que haja mais trabalho, melhores condições de vida. Tudo está caro — disse à AFP Sandra Escobar, de 27 anos, caixa de um café na capital.

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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG –
 Na realidade atual, maior rigor contra o crime dá voto, muito voto. Mas o perigo é a sedução da ditadura, como é o caso de El Salvador. (C.N.)

Visitando uma colônia penal kafkiana, acompanhado pelo próprio Franz Kafka

Publicado em 19 de junho de 2024 por Tribuna da Internet

Ilustração reproduzida do Arquivo Google

Flávio Gordon
Gazeta do Povo

Como se sabe, já virou uma espécie de senso comum recorrer a Franz Kafka para descrever a sensação de insignificância experimentada pelo indivíduo perante o monstruoso aparato repressor e burocrático do Estado contemporâneo. Com efeito, Kafka é um daqueles raros autores cuja obra é tão influente e cujo estilo é tão característico que o seu nome foi convertido no adjetivo kafkiano, usado para descrever situações marcadas por aquela sensação terrificante, assim como orwelliano virou um adjetivo quase sinônimo de distópico; proustiano, um adjetivo referente à reminiscência introspectiva; e dantesco, um adjetivo associado a horrores infernais.

Mas, em vez de falar de “O Processo”, a obra mais diretamente associada ao referido adjetivo, gostaria de falar de um livro menos comentado de Kafka, escrito uma década antes da publicação do outro, mas igualmente impactante e profético.

PRÉ-TOTALITARISMO – Refiro-me ao pequeno livro “Na Colônia Penal” (Strafkolonie), redigido em 1914 e publicado em 1919, antecedendo, portanto, o estabelecimento pleno dos sistemas totalitários dos anos seguintes e a própria consolidação do conceito de “totalitarismo”.

Recorrendo a uma técnica literária extremamente sutil e inteligente, Kafka propõe um exercício imaginativo perspicaz sobre a tentação totalitária que começava a pairar sobre a Europa e que, nas próximas décadas, transformaria definitivamente o destino do continente e do mundo.

O livro foi concluído cerca de dois meses após o início da Primeira Guerra, evento que primeiro concedeu às nações europeias um sentimento esmagador de unidade, mergulhando-as, em seguida, em batalhas sangrentas.

VIAJANTE EUROPEU – A trama apresenta um viajante europeu educado, acostumado a raciocinar em termos de direitos universais e humanismo, indo visitar algum lugar no exterior. Especificamente, seu destino é o local de uma execução que, de acordo com as ideias do viajante, se lhe afigurava como desprezível.

O condenado à morte, um soldado, havia falhado em executar uma ordem completamente nonsense. Pego em flagrante, foi sentenciado à morte sem qualquer tipo de julgamento, e sua execução seria consumada com o auxílio de uma complicada máquina, numa sessão de tortura com 12 horas de duração.

Recorrendo a uma técnica literária extremamente sutil e inteligente, Kafka propõe um exercício imaginativo perspicaz sobre a tentação totalitária que começava a pairar sobre a Europa

O DIÁLOGO – “Como o senhor vê, o aparelho é composto de três partes. Com o passar do tempo, foram criadas denominações um tanto populares para cada uma delas. A inferior chama-se cama, a superior chama-se desenhador, e aqui, no meio, a parte suspensa se chama rastelo,

“Rastelo?” – perguntou o viajante. Ele não ouvira com muita atenção, o sol forte demais se emaranhava no vale das sombras, era difícil reunir os pensamentos.”

O oficial responsável pela execução porta-se como uma espécie de sacerdote, tanto do totalitarismo quanto da violência. Do totalitarismo, na medida em que habita um mundo extremamente lógico – o que nos faz recordar a caracterização de Hannah Arendt sobre a logicidade macabra dos Estados totalitários –, no qual vigem normas claras, as quais se devem aplicar e aceitar sem questionamentos. Da violência, na medida em que nela enxerga não apenas um meio de domesticação, mas também de transfigurar o indivíduo e purificar a sociedade.

O NOME COMBINA – “É, rastelo, disse o oficial. – O nome combina. As agulhas estão dispostas como as grades de um rastelo e o conjunto é acionado como um rastelo, embora se limite a um mesmo lugar e exija muito maior perícia. Aliás, o senhor vai compreender logo. Aqui sobre a cama coloca-se o condenado. Quero, no entanto, primeiro descrever o aparelho e só depois fazê-lo funcionar eu mesmo. Aí o senhor poderá acompanhá-lo melhor. No desenhador, há uma engrenagem muito gasta, ela range bastante quando está em movimento, nessa hora mal dá para entender o que se fala; aqui inelizmente é muito difícil obter peças de reposição. Muito bem: como eu disse, esta é a cama. Está totalmente coberta com uma camada de algodão; o senhor ainda vai saber qual é o objetivo dela: O condenado é posto de bruços sobre o algodão, naturalmente nu; aqui estão, para as mãos, aqui para os pés e aqui para o pescoço, as correias para segurá-lo firme. Aqui na cabeceira da cama, onde, como eu disse, o homem apoia primeiro a cabeça, existe este pequeno tampão de feltro, que pode ser regulado com a maior facilidade, a ponto de entrar bem na boca da pessoa. Seu objetivo é impedir que ela grite ou morda a língua. Evidentemente, o homem é obrigado a admitir o feltro na boca, pois caso contrário as correias do pescoço quebram sua nuca.

“Isso é algodão?” – perguntou o explorador, inclinando-se para frente.

“Sem dúvida”, respondeu sorrindo o oficial. “Sinta o senhor mesmo”. Pegou a mão do explorador e passou-a sobre a cama.

“É um algodão especialmente preparado, por isso parece tão irreconhecível; ainda volto a falar sobre a sua finalidade”.

CURIOSIDADE – A essa altura, o viajante começa a se interessar pelo aparelho, demonstrando uma curiosidade meramente técnica, a qual o lado humanista não conseguiu conter. Em seguida, como que voltando a si do transe, lembra de perguntar sobre a sentença.

O oficial executor explica-lhe que, no caso desse condenado, ela consiste em ter gravada no corpo, por meio da máquina, o mandamento por ele infringido: “Honre os seus superiores!”. O viajante quer saber se o condenado conhece a própria sentença, e o diálogo que se segue revela a natureza kafkiana de um outro lugar igualmente distante, e não menos desconhecido:

A SENTENÇA – “Não”, disse o oficial, e logo quis continuar com as suas explicações. Mas o explorador o interrompeu: “Ele não conhece a própria sentença?”

“Não”, repetiu o oficial e estancou um instante, como se exigisse do explorador uma fundamentação mais detalhada da sua pergunta; depois disse: “Seria inútil anunciá-la. Ele vai experimentá-la na própria carne”.

O explorador já estava querendo ficar quieto quanto sentiu que o condenado lhe dirigia o olhar; parecia indagar se ele podia aprovar o procedimento descrito. Por isso o explorador, que já tinha se recostado, inclinou-se de novo para frente e ainda perguntou.

SEM CONDENAÇÃO – “Mas ele certamente sabe que foi condenado, não?”

“Também não”, disse o oficial e sorriu para o explorador, como se ainda esperasse dele algumas manifestações insólitas.

“Não”, disse o explorador, passando a mão pela testa.  “Então até agora o homem ainda não sabe como foi acolhida sua defesa?”

“Ele não teve oportunidade de se defender”, disse o oficial, olhando de lado como se falasse consigo mesmo e não quisesse envergonhar o explorador com o relato de coisas que lhe eram tão óbvias.

“Mas ele deve ter tido oportunidade de se defender”, disse o explorador erguendo-se da cadeira.

POSIÇÃO DE SENTIDO – O oficial se deu conta de que corria o perigo de ser interrompido por longo tempo na explicação do aparelho; por isso caminhou até o explorador, tomou-o pelo braço, indicou com a mão o condenado, que agora se punha em posição de sentido, já que a atenção se dirigia a ele com tanta evidência – o soldado também deu um puxão na corrente – e disse:

“As coisas se passam da seguinte maneira. Fui nomeado juiz aqui na colônia penal. Apesar da minha juventude. Pois em todas as questões penais estive lado a lado com o comandante e sou também o que melhor conhece o aparelho. O princípio segundo o qual tomo decisões é: a culpa é sempre indubitável. A violência não é evitada com escrúpulos, mas é tomada e usada como um instrumento de purificação, salvação e transfiguração”.

Enquanto prepara a máquina, o oficial carrasco relata detalhadamente ao viajante episódios anteriores de execução. Ressalta que os delinquentes são transfigurados ao fim da tortura, o que se vê claramente em seus rostos. Para as pessoas presentes, ademais, todo o processo representaria uma espécie de redenção e elevação espiritual.

UM CERTO FASCÍNIO – O argumento é apresentado de modo a causar um certo fascínio no viajante (e não menos no leitor). Kafka procede a uma modelagem sutil da situação narrativa, alternando o texto entre a perspectiva dos atores envolvidos e a da impessoalidade do próprio relato.

É de especial importância o fato de que a glorificação do regime totalitário e da máquina de tortura primeiro emane do oficial de execução; em seguida, é de certa forma reconstruída ou condescendida pelo viajante e, finalmente, confirmada de maneira a exercer um efeito objetivador altamente sedutor.

Kafka quer que a situação do viajante seja a situação do leitor. No livro, antes é sugerido sobre o viajante o modo como ele agiria diante da execução sádica de alguém condenado sem julgamento: de maneira negativa e a mais desencorajadora possível.

SE DEIXA SEDUZIR – No entanto, ao presenciar o procedimento, o espectador se deixa seduzir pelos arroubos do oficial, claramente animado pela suspeita, talvez até pelo desejo, de que, para além da sua sempre meticulosa ideia humanista e liberal sobre ordem e direito, exista um reino excepcionalíssimo, ou uma possibilidade para a qual a ordem e o direito são sempre “indubitáveis”, como diz o oficial.

 Aqui, a violência não é evitada com escrúpulos, mas é tomada e usada como um instrumento de purificação, salvação e transfiguração.

Por fim, é escusado dizer que qualquer semelhança entre o pequeno romance kafkiano e a realidade próxima terá sido mera coincidência.

(Artigo enviado por Mário Assis Causanilhas)

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Governo caiu na real quanto ao aumento da arrecadação e tem de mostrar serviço


Sob fundo amarelo e azul, como na bandeira do Brasil, homem grisalho de barba inclina a cabeça para ouvir homem que aparenta idade de 60 anos falar como se fosse um segredo, cobrindo a mão com a boca. Ambos usam terno escuro e gravata com camisa clara

Lula e Haddad enfim acordaram do sonho arrecadatório

Elio Gaspari
O Globo/Folha

A alta do dólar, a queda da Bolsa e a confirmação de que o aumento da arrecadação era um sonho levaram o governo a admitir a relevância do controle de gastos e a consequente valorização de uma administração comprometida com o feijão com arroz.

Em dois anos de governo, o ministro Fernando Haddad teve vitórias e derrotas. Brilhou com o projeto de reforma tributária, mas seu déficit zero era lorota. Ele conseguiu restabelecer as boas relações de um governo petista com a banca.

DRENO DOS INCENTIVOS – Na segunda-feira (17), Haddad e Simone Tebet, sua colega do Planejamento, mostraram a Lula o dreno provocado pela distribuição de incentivos. A iniciativa tem mérito, mas não tem valor, o Sol congelará antes que um Congresso resolva podar os benefícios dados à Zona Franca de Manaus. Cada incentivo é um jabuti velho, escolado e bem relacionado.

A discussão da política de incentivos, como a taxação das grandes fortunas, é um tema que lustra a biografia de quem a propõe, mas não vai a lugar algum.

Infelizmente o déficit zero era uma espécie de pau do circo de Haddad: arrecadando mais, o governo poderia induzir o crescimento. Daí viriam as picanhas prometidas durante a campanha. Sem esse salto arrecadador, Lula 3.0 arrisca tornar-se um governo durante o qual a economia andou de lado. É melhor andar de lado do que ir galhardamente na direção errada, como sucedeu com a nova matriz econômica do governo de Dilma Rousseff.

UMA OPORTUNIDADE – Vendo que não pode gastar, Lula terá a oportunidade de se voltar para a boa administração do dia a dia. Apesar do estilo triunfalista do presidente, seu governo vai bem no feijão com arroz. Vai bem mesmo quando é comparado a outros governos, sem levar em conta o caos de Bolsonaro.

Derrapou feio na compra de arroz importado, pretendendo comercializá-lo a preços tabelados. Esse desastre só aconteceu porque no lance estava a mão peluda do interesse político.

Talvez algum petista lembrou-se de que, em 1962, o governador gaúcho Leonel Brizola teve 200 mil votos no Rio porque vendeu arroz barato em caminhões.

OBRAS PARADAS – Terminar obras que estão paradas é uma das boas maneiras de administrar o trivial variado. Infelizmente ela vem sendo instrumentalizada em marquetagens.

Getúlio Vargas foi um presidente de grandes ideias, mas, lendo-se seu diário, percebe-se a atenção quase obsessiva com a rotina da administração.

Lula, ou qualquer político brasileiro, dispõe de um boqueirão, resgatando o agronegócio e colocando-o na galeria do orgulho nacional, como Juscelino Kubitschek colocou a indústria no final dos anos 50. Por diversos motivos, Lula jogou fora essa oportunidade e hoje ela está em cima de um montinho de cal, esperando que alguém bata esse pênalti.

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