sábado, abril 19, 2025

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Tribuna da Imprensa Livre

O CÁRCERE DO IMAGINÁRIO – por Wander Lourenço
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O CÁRCERE DO IMAGINÁRIO – por Wander Lourenço

Por Wander Lourenço –

Por sua incontestável importância histórica, porém, não especificamente literária, faz-se justa a menção ao gramático da língua tupi-guarani, poeta e teatrólogo de origem castelhana, José de Anchieta (1534 – 1597) que, por solicitação de seu superior hierárquico na Companhia de Jesus, o circunspecto pe. Manuel da Nóbrega, por ter inaugurado a dramaturgia luso-brasileira com o auto Na festa de São Lourenço (1587), encenado muito possivelmente no pátio ou quiçá no altar-mor da Capela de São Lourenço dos Índios, em Niterói. Mui longe de ser um Gil Vicente de batina e crucifixo, o teatrólogo tardio Anchieta fora um estrategista de refinada retórica que, decerto, se inspirou no comediógrafo responsável pela composição do Auto da Barca do Inferno (1516), para estabelecer o padrão do discurso dicotômico detectado em sua produção cênica de cunho intimidador e moralizante, por designação da Coroa Real de Portugal à Madre Igreja Católica e Apostólica Romana.

Como o principal objetivo das representações teatrais do século XVI era que se amainassem as vicissitudes dos silvícolas ameríndios que, inclusive, já contaminavam os padrões sociais de missionários, degredados e aventureiros aptos a “fazer a América”, com a indústria corroída pelas ‘cordialidades obscenas’ das dóceis anfitriãs indígenas que, na ausência de sentido da culpa judaico-cristã, substituíam com total liberalidade as mulheres brancas impossibilitadas da travessia atlântica. Destarte, para se ter ideia da urgência da necessidade de se estancar os maus hábitos e costumes destes sítios d’além-mar, vide abaixo o fragmento da Carta de Manoel da Nóbrega a El-Rey de Portugal, D. João III, reivindicando o envio de órfãs e meretrizes que combatessem a permissibilidade das amásias da terra, para a formação do núcleo familiar em prol da moralidade apregoada pelo Cristianismo:
“Nesta terra há um grande pecado, que é terem os homens quais todos suas negras da terra (indígenas) por mancebas (…), segundo o costume da terra, que é terem muitas mulheres.

 

E estas deixam-nas quando lhes apraz, o que é grande escândalo para a nova Igreja que o Senhor quer fundar. (…) Parece-me cousa mui conveniente mandar Sua Alteza algumas mulheres que lá têm pouco remédio de casamento a estas partes, ainda que fossem erradas, porque casarão todas mui bem, com tanto que não sejam tais que de todo tenham perdido a vergonha a Deus e ao mundo (…) De maneira que logo as mulheres terão remédio de vida, e estes homens remediariam suas almas, e facilmente se povoaria a terra (Nóbrega, 2007).

Neste contexto de devassidão aos olhos da Madre Igreja recém-fundada por estes trópicos, o apostólico Anchieta tomou as rédeas do discurso de persuasão civilizatória, a partir das adaptações cênicas das biografias exemplares dos heróis canonizados; leia-se, santos católicos, de modo que se coibissem as práticas antropofágicas, o consumo exacerbado do caiu e a permissividade da poligamia. De fato, estas tradições culturais dos aborígenes americanos apavoravam os jesuítas que cumpriam o voto de castidade imposto pela instituição religiosa; e, destarte, o ilustrado José de Anchieta dedicou-se a escrever os seus registros dramáticos com extrema habilidade, em diálogo com a realidade autóctone deste Paraíso Terreal, no dizer do Frei Rocha Pita. Portanto, tal empreitada dramatúrgica fora exercida com a função pedagógica de doutrinamento social, por intermédio do sequestro do imaginário da assistência do espetáculo teatral. Por este mecanismo de apropriação indébita do discernimento e da consciência do questionamento pelas artes da representação, o teatro jesuítico fora concebido como meio prático da ação de captura do imaginário destas almas perdidas (ameríndios, degredados e aventureiros), através do proselitismo dos ensinamentos cristãos vigentes, sem qualquer vestígio de preocupação artística ou valorização estética.

Não obstante, ao contrário da catarse propositada pela tragédia grega assinada por Ésquilo, Sófocles e Eurípides, o teatro luso-brasileiro do período do Brasil Colônia surge-nos com a finalidade de ascendência e hierarquização de uma etnia detentora da religiosidade e da pólvora (branco europeu colonizador mercantilista), sobre uma ‘sub-raça’ considerada inferior por ser desprovida das homílias, códigos e prédicas do Cristianismo (selvagem íncola subjugado pela aculturação forjada pela fé cristã). Diga-se de passagem, a missão do teatrólogo Anchieta fora cumprida à risca com extraordinária disciplina e eficácia, de vez que obteve o êxito mais significativo do que os instrumentos de opressão dos castigos físicos, provindos das correntes de ferro e do vergalho em pelourinho público. Neste sentido, observar-se-á que, não coincidentemente, estas ferramentas de suplício e tortura eram instalações obrigatórias ao lado das ermidas católicas na fundação de povoados vilarejos e arrabaldes, batizados com a nomenclatura extraída santos cristãos, não logravam o mesmo resultado que o efeito da escritura e montagem dos denominados autos, que são peças de pouca duração com linguagem simples e direta, oriundas do período medieval e compostas em versos que buscam a doutrinação da assistência (plateia) através de símbolos e alegorias. Pano. Fim do Ato I.

Na atualidade, sem guardarmos as devidas proporções, os opressores hodiernos se utilizam das mesmas práticas de dominação utilizadas por colonizadores e jesuítas, hoje substituídos por doutrinadores adaptados ao período contemporâneo; leia-se, padrões norte-americanos e pastores evangélicos. Isto porque a Nova Ordem Mundial implícita e coeva se predispõe de instrumentos mais abrangentes de apropriação e aprisionamento do imaginário coletivo do que o Teatro de Anchieta que, subjugado pelos veículos de comunicação (rádio, televisão, cinema, streaming etc.), passou a significar, como originalmente, sinônimo de liberdade e reflexão, sobretudo a partir da instauração do fatídico período da ditadura cívico-militar de 1964, que completa 61 anos neste Primeiro de abril, em que escrevo este artigo singelo e franco.

Brasília, 1964 – Tanque diante do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional, durante o Golpe Militar. (Reprodução)

Todo este preâmbulo para dizer aos/às Leitores(as) que as mesmas práticas de captura da consciência humana usadas pelos adestradores dos séculos coloniais são reproduzidas por líderes políticos e religiosos, habilitados ao rapto da inteligência crítica da sociedade, independendo-se de classe social. Neste contexto, a elite brasileira aculturada e rica se prevalece do direito de defesa ao patrimônio provindo da herança ancestral da mão de obra da escravatura e tráfico negreiro; ou contemporaneamente, óbvio que em menor escala econômica, da força do trabalho, como se constata no caso dos emergentes que migraram para a classe média reivindicadora da manutenção do status quo adquirido a duras penas.

Por fim, diante deste cenário de predomínio e castração do discernimento através da imposição das técnicas opressivas de dominação, dá-se o encarceramento do imaginário explicitado no título do artigo em voga. Em poucas palavras, pode-se resumir o sequestro psíquico do ideário desta Terra dos Papagaios (Alô, Zé Carioca!…) que se impõe drasticamente, a partir da desvalorização das prédicas antropofágicas no sentido oswaldiano, da cultura brasileira de um modo geral e o esvaziamento do papel da universidade pública, por exemplo. Assim sendo, enquanto o povo serviçal prosseguir assimilando o discurso pujante das elites castradoras, que orquestram o adestramento da nação, tudo estará no seu devido lugar graças a Deus, Pátria e Família. Porém, este tríptico forjado pelo aprisionamento do intelecto começará a ruir ladeira abaixo, quando cultivarmos o imaginário coletivo deste país, com a valorização do discernimento e da inteligência crítica, através do fortalecimento das raízes pátrias. Desta feita, as elites centenárias e os cardeais católicos e luteranos desta República Federativa do Brasil irão assistir de camarote ao espetáculo do protagonismo do povo brasileiro, ilustrado e imbatível em seu ideário de luta e sublimação.

Aleluia, irmão. Amém.

WANDER LOURENÇO é professor, cineasta, poeta, letrista e escritor. PhD em Literatura Comparada pela Universidade Clássica de Lisboa; pela PUC-GO; e pela UFMG. Doutor, mestre e especialista em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense. Produtor e diretor do documentários “Carlos Nejar, o Dom Quixote dos Pampas (2015); “Nélida Piñon, a Dama de Pétalas” (2017); e o “Cravo e a lapela: biografia de Ricardo Cravo Albin” (2021). Livros recentes: Escrevinhaturas – Poesia / Editora Elefante-SP (2022); e A República do Cruzeiro do Sul – Romance histórico / Editora Almedina (2023).

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