Daniel Haidar
Estadão
Responsável pelo voto mais longo em favor de Jair Bolsonaro (PL) no julgamento que o condenou à inelegibilidade, o ministro Raul Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), vai assumir a partir de 10 de novembro, a relatoria dos outros 15 processos ajuizados contra o ex-presidente na Corte.
Araújo será relator de ações de investigação eleitoral (AIJE) contra Bolsonaro porque a função só pode ser exercida pelo corregedor do TSE – justamente a próxima cadeira dele na Corte, em substituição ao ministro Benedito Gonçalves, que não terá tempo hábil para julgar todas as peças.
Caso não tenham sido julgados até sua posse como corregedor, Araújo vai controlar o ritmo e a temperatura desses processos em que Bolsonaro responde a várias acusações, como a de abuso de poder político na comemoração oficial do 7 de Setembro e em programas governamentais como o Auxílio Brasil.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Raul Araújo deu um voto técnico e bem fundamentado juridicamente, sem se deixar levar por condicionantes de ordem política. Trabalhou apenas as peças do processo e não se deixou contaminar pelo conjunto da obra, conforme o voto espetaculoso do relator Benedito Gonçalves, que precisou de mais de 400 páginas para acusar Bolsonaro. (C.N.)
Crianças trans existem, e o que você fará com elas? Preconceito causa violência e dor
Joel Pinheiro da Fonseca
Folha
Não entendemos direito por que algumas pessoas não se identificam com o gênero que corresponderia a seu sexo biológico. Mas o fato é que essas pessoas — pessoas trans — existem e, até onde sabemos, sempre existiram e sempre existirão. Em alguns casos, essa identificação com o gênero trans começa já na infância.
Assim, crianças trans existem. Não temos como mudar esse fato. O que podemos escolher é como elas serão tratadas: com aceitação ou marginalização; acolhimento ou surra de cinta.
CARTAZ NA PARADA – Há crianças nascidas com o sexo masculino que desde sempre se veem e se afirmam como meninos. É o comum. Mas há também uma pequena minoria que, por algum motivo, se vê como menina, e só encontrará paz quando conseguir ser reconhecida dessa maneira.
A Parada do Orgulho LGBT gerou reações indignadas por ter um bloco com um cartaz que reconhece isso: “crianças trans existem”.
A indignação está em larga medida equivocada. Argumenta-se, por exemplo, que a criança é jovem demais para tomar decisões definitivas. Imaginam que reconhecer que existem crianças trans seja propor intervenções cirúrgicas desde cedo para fazer a mudança de sexo. Até onde eu saiba, ninguém defende isso.
O QUE SE FAZ – Não se faz nenhuma intervenção médica — muito menos cirúrgica — numa criança que tenha identidade trans.
A intervenção mais precoce que se pode fazer é um tratamento reversível, no início da adolescência, para retardar a puberdade do indivíduo trans enquanto ele passa pelo aconselhamento psicológico para saber se deve ou não deve iniciar um tratamento hormonal mais à frente. E a famosa cirurgia de mudança de sexo, essa só na idade adulta mesmo.
Crianças mudam. Embora incomum, há aquelas que se viam como de um gênero e que, anos depois, se identificarão com outro. Esse processo pode contar com afirmação e apoio psicológico ou pode receber apenas negação e violência dos pais e cuidadores.
NEGACIONISTAS – Está bem claro de que lado estão aqueles que se negam a reconhecer a existência dessas pessoas.
Há, ademais, uma crítica política que tem sido feita à manifestação: se o objetivo é aumentar a aceitação social de crianças trans, um ato que é facilmente lido como provocação pelo grande público conservador — que não está sequer familiarizado com os termos dessa questão complexa (trans, cis, gênero, sexualidade etc.) — talvez não seja a escolha mais estratégica.
É crítica que poderia ser feita a um defensor do livre pensamento na época da Santa Inquisição. Afirmar sua falta de fé ali geraria uma reação contrária violenta e em nada cooperaria para aumentar a tolerância. Não seria nada estratégico. Pode ser. Mas também temos que lembrar que, se a realidade reprimida não aparece, aí é que ela nunca será tolerada.
REAÇÕES À PARADA – A bem da verdade, não faltariam reações violentas à Parada do Orgulho LGBT mesmo sem o tal bloco. Diversos políticos e influenciadores de direita publicaram fotos de supostos absurdos ocorridos na Parada que, na verdade, nem sequer ocorreram no Brasil.
O desejo de agredir a população LGBT sempre que ela se afirma em público fala mais alto do que o compromisso com a verdade factual mais básica.
O preconceito é um fato. Traz muita violência e muita dor desnecessária às famílias. A esperança é que, com a existência pública da população LGBT, ele vá cedendo aos poucos. Seja como for, com ou sem preconceito, indivíduos trans continuarão a existir.