Carlos Andreazza
O Globo
Ministros do Supremo têm de falar menos — e se abster de eventos políticos e empresariais — não porque assim evitarão alimentar os inimigos da democracia; mas porque, pervertidos em debatedores e palestrantes, aviltam o signo de comedimento que fundamenta o papel que deveriam cumprir na República. Aviltam a República.
A fala de Luís Roberto Barroso no congresso da UNE — a do “nós derrotamos o bolsonarismo” — é deletéria não porque ofereça carne a teorias da conspiração. Hipótese em que teríamos mero equívoco tático. (O bolsonarismo não precisa de fatos para barbarizar.) É nociva porque mais uma num conjunto de posturas que subsidia, na sociedade não radicalizada, a percepção da Corte constitucional não como o Poder que faz a balança, mas como corporação interferente e desequilibradora.
CAIR NA REAL – Convém sair da bolha e cair na real. O discurso de Barroso — sobretudo a presença num ato de militância política — corrobora a noção popular de uma elite dirigente corrompida que, violando o pacto republicano, existiria exclusivamente em função dos próprios interesses.
A indignação corrente deriva da mobilização bolsonarista-oportunista; o que levanta questão desagradável: sobre se estaremos, os democratas, autorizando, em função de agendas e outras conveniências, que ministros do Supremo se comportem como agentes políticos e se esparramem autoritariamente.
Participam de eventos assim com frequência. Quando nos incomodaremos? (Só quando for André Mendonça?) Não há justificativa para juiz tomar lugar em ato político-partidário. A fala será o de menos. Não pode, porém, ficar sem análise. Produto de alguém que se sente parte daquele movimento. Oração de pertencimento.
REAGIU À REJEIÇÃO – A manifestação de Barroso foi exaltação magoada de indivíduo que, se compreendendo integrante, era então inesperadamente excluído, vítima de vaias e palavras de ordem contra decisões recentes suas. O ministro reagiu à rejeição. E onde foi parar a contenção?
Barroso é integrante do STF e só. (E muito.) Sua existência pública pertence absolutamente ao Supremo — e às limitações próprias à condição de ministro do Supremo. Essas limitações não podem surpreender. E, se amolam, deveriam ensejar reflexão sobre largar a toga e concorrer a cargo eletivo. Papo reto.
Por que ministros de tribunal constitucional ficam à vontade a ponto mesmo, de repente, de um deles estar no palanque da UNE? Sob que grau de império — ou delírio — sentem-se confortáveis para esbanjar a força política de uma influência que é propriedade de um lugar de autocontenção?
ACIMA DOS DEMAIS – Talvez estejam contaminados pelas evidências, donde a convicção de protegidos, de o Supremo ser Poder acima dos demais, que se alarga para invadir prerrogativas alheias; o que ocorre, progressivamente, por meio de gestos monocráticos — daí, especulo, o sentimento de onipotência. Uma explicação por que ministros do STF se tornaram desinibidos debatedores públicos e palestrantes internacionais.
Seria uma etapa natural, própria ao glamour togado, depois de normalizados como protagonistas de acomodações em Brasília, que transitam de convescote em convescote e participam de arranjos parlamentares, formuladores — legisladores mesmo — de soluções a impasses políticos; não tardando até que aplicassem a musculatura institucional em escaramuças e lobismos para que apadrinhado fulano ou beltrano seja o escolhido para essa ou aquela cadeira.
Não é normal. Barroso anda menos pelas rodinhas da capital, mas não deixa de se valer das expectativas projetadas por um STF que se expande.
“TRANSFORMADOR” – Nunca escondeu ser um construtor — transformador — a partir da Constituição. Uma compreensão progressista da função de ministro do Supremo, que ora se desdobraria naturalmente em o intérprete criativo da Lei dar vazão ao militante político. A onipotência sempre se acerca da ilha da fantasia.
Há outra explicação, complementar. Estão trabalhando pouco. Como tribunal, pouquíssimo. Nos últimos anos, o STF se converteu, em parte como decorrência da pandemia, muito mais ante a ascensão do sete peles, em palanque — blindado — para canetadas individuais; esvaziado de seu caráter impessoal encarnado nas reuniões plenárias.
Há quanto o que prevalece, desde o Supremo, é a alternância entre a atividade de seus ministros nos bastidores, em jantares com alcolumbres e outros pachecos, a distribuição de liminares corporativistas ou partidárias e as gestões xandônicas sobre os inquéritos infinitos que salvarão a democracia?