por Cláudia Colucci | Folhapress
Foto: Divulgação
O cardiologista Roberto Kalil Filho, 60, do Hospital Sírio-Libanês, elogiado pelo presidente Jair Bolsonaro em pronunciamento em rede nacional por ter declarado que usou cloroquina no tratamento da Covid-19, diz que continua defendendo a utilização da droga apenas para pacientes internados, como determina o protocolo do Ministério da Saúde.
"Não sou garoto-propaganda de nada, sou garoto-propaganda do que salva vivas", disse ele, reforçando que o seu tratamento envolveu vários medicamentos, entre eles antibiótico, corticoide e anticoagulante, além da boa estrutura hospitalar do Sírio-Libanês.
Em casa e ainda tossindo bastante, Kalil relatou à reportagem o sofrimento pelo qual passou durante os dez dias em que esteve internado para tratar a doença. "Era uma dor no corpo que parecia estar arrancando todos os músculos, horrível. Teve um dia que eu pensei em ligar para o David [Uip, infectologista] e falar: desisto, tira os remédios, eu não quero mais nada."
Falou também sobre o sentimento de vulnerabilidade. "Você se sente um coelhinho da Páscoa sem rabo e sem dentes. Não tem macho, não."
PERGUNTA - Como foi sair da condição de médico e se tornar paciente da Covid-19?
ROBERTO KALIL FILHO - Estava bem no fim de semana, tratando vários pacientes naquela minha vida louca de Sírio e InCor. Na segunda [30], acordei com um mal-estar que nunca senti na vida, febre, dor no corpo, sem energia. Disse para a minha assistente que queria fazer uma tomografia e o teste para o coronavírus.
Quando fiz a tomografia, foi uma tragédia. Eles me internaram em um segundo. Fui para um quarto, colhi um monte de exame e fui levado para um quarto com telemetria, para ser monitorado. Aí veio a notícia de que eu deveria ir para a unidade semi-intensiva porque os exames estavam péssimos.
Me deram de tudo. De cara, tomei cloroquina, antibiótico e corticoide na veia e anticoagulante porque eu tinha fatores no sangue de mau prognóstico em relação à trombose, além do oxigênio. No fim do dia, o chefe da semi-intensiva me perguntou: Kalil, se você for intubado, você quer ir para qual UTI? Aí eu me assustei.
Às 4h da manhã, ele passou de novo no quarto e disse que as medicações estavam fazendo efeito e que a oxigenação tinha melhorado. Escapei da UTI e de intubar.
P - O sr. declarou nesta semana que fez uso da cloroquina. Na verdade, foi um conjunto de terapias. Por que a cloroquina tem estado no centro das atenções?
RK - Eu sempre falei: não é usar só cloroquina, tem que usar cloroquina com antibióticos, em alguns casos com corticoides, como foi o meu porque o meu pulmão estava muito inflamado, e anticoagulante. Não dá para saber o que fez mais efeito ou se foi o conjunto.
P - Ao ser elogiado pelo presidente Bolsonaro, o sr. foi alçado praticamente a garoto-propaganda da cloroquina...
RK - Eu não sou garoto-propaganda de nada. Eu sou garoto-propaganda do que salva vidas. Na quarta [8], tive alta e a Jovem Pan me entrevistou e perguntaram se eu tinha usado cloroquina. Aí eu falei o que eu acho mesmo: eu tomei, usando protocolos do hospital, e o próprio Ministério da Saúde recomenda para os pacientes internados, sob monitorização.
É verdade que não temos grandes estudos científicos mostrando benefícios, mas é uma doença que mata. Se, daqui a seis meses, sair um estudo mostrando que a cloroquina não funciona, parabéns, fizemos o que tinha que fazer. Se, daqui a seis meses, sair um estudo mostrando que a cloroquina é eficaz, e os doentes a quem deixamos de dar? E se morreram? É mais um remédio, um conjunto de remédios que deve ser usado.
P - Não só remédios. A estrutura hospitalar faz muita diferença também, certo?
RK - Sim, sem dúvida. Se você pega a taxa de mortalidade do Sírio e do Einstein, é baixíssima. Eu cai nos 5% da gravidade da doença. E nesses 5% precisa ter suporte, senão você complica, não tem jeito. Com suporte, você escapa. Se não tem suporte, você não escapa.
É uma doença muito grave, que evolui muito rapidamente. Você se interna com uma pneumonia boba e em 24 horas você está na UTI. Tenho muita preocupação com o setor público. Muitas pessoas não vão conseguir nem chegar ao hospital, vão morrer em casa. Pode não dar tempo para socorrer as pessoas mais carentes, que vivem nas comunidades.
Eu temo que aconteça o que aconteceu na Itália. Vai no asilo e tem um monte de velhinhos mortos. Vai numa comunidade e as pessoas [estão] quase morrendo em casa. O Brasil parece estar mais bem preparado. Os protocolos dos hospitais públicos são os mesmos que os dos privados.
P - O sr. defende que a cloroquina seja liberada também para casos leves?
RK - Eu defendo o que está nos protocolos. Pacientes internados têm que tomar cloroquina. E cloroquina com um contexto. Nos casos de pneumonia, tomar também corticoides, anti-inflamatórios, se precisar, anticoagulantes. Eu estou tomando anticoagulante até agora. O risco de trombose é grande mesmo depois da alta.
É uma gama de remédios que precisa ser oferecida. Você não sabe o que salvou a pessoa. Para mim, é um conjunto. Se eu não tivesse tomado cloroquina, corticoide e anticoagulante, talvez não estivesse mais aqui. Estão sendo feitos estudos sobre dar cloroquina em casa. Ainda é preciso a ciência provar [que funciona].
Eu adoraria que a cloroquina fizesse efeito em casa para casos leves, porque evita de o cara internar. É um remédio usado há milênios para artrite reumatoide, lúpus. As pessoas tomam em casa e não têm efeitos colaterais importantes. Se tiver evidência que melhora mesmo em ambiente extra-hospitalar, não acho que será um grande problema.
P - O debate da cloroquina saiu do campo da ciência e da saúde está totalmente politizado. O que sr. pensa sobre isso?
RK - As pessoas têm que entender que esse é o momento de pensar em união e cura. As pessoas estão morrendo. Quando sair um antiviral, uma vacina, acabou o problema. Mas até lá precisamos ter suporte hospitalar e uma gama de remédios. Eu sou a favor da cloroquina desde o começo. Eu rezo, torço para que esse coquetel de remédios, a cloroquina inclusive, funcione e o cara encurte a internação e vá embora.
P - Ser elogiado publicamente pelo presidente causou algum constrangimento?
RK - De forma alguma. Tudo o que ele reproduziu foi o que conversei com ele. Eu não conheço o presidente pessoalmente. Eu recebi uma ligação dele e ele disse que queria me ouvir e me parabenizar pela coragem de assumir que tinha tomado a cloroquina. Eu disse: 'presidente, eu não fiz nada mais do que a minha obrigação. Eu tomei o remédio entre outros remédios, [para] os pacientes que eu cuido, a equipe médica prescreve dentro das normas autorizadas. Que não tem grandes estudos com evidência, não tem mesmo. Assim como não tem para o corticoide que eu usei. Aliás, era uma coisa bem questionável, mas eu tomei.
P - Alguma crítica entre os colegas?
RK - De jeito de nenhum, só elogios. Críticas por quê? Porque eu tomei o remédio, porque eu me abri? Muitos elogiaram a postura de eu ter falado sobre a minha doença. Não foi fácil, especialmente quando você está muito doente.
P - E como está sendo a recuperação?
RK - Comecei a melhorar depois de dois, três dias de internação. Até então era uma dor no corpo que parecia que estava arrancando todos os músculos, horrível. Teve um dia em que eu pensei em ligar para o David [Uip, infectologista] e falar: 'eu desisto, tira os remédios, eu não quero mais nada'. Bateu um desespero com tanta dor e mal-estar. Não conseguia comer, emagreci sete quilos em dez dias.
P - O sr. teve medo de morrer?
RK - Não tive medo de morrer, mas tive medo do sofrimento. Não queria sofrer mais. Cheguei a pensar que era melhor morrer do que passar por isso. Isso passou pela minha cabeça duas noites seguidas. Foi um horror.
P - O sr. tem fama de ser bem linha dura, mandão. Conseguiu se comportar como paciente?
RK - Todos me elogiaram, eu fui um cordeiro. Eu estava muito mal. Esquece o coiceiro. Você vira um coelhinho da Páscoa sem rabo e sem dente. Não tem macho, não. Já sofri muito com cálculo renal, em 2010, coloquei stent dois anos atrás. Mas cálculo renal é água com açúcar perto dessa dor, colocar stent é brincadeira de criança.
P - Qual foi a maior lição disso tudo?
RK - Nós não somos nada. Você passa um fim de semana trabalhando feito um leão, no dia seguinte você está como um ratinho desbotado no quarto de um hospital. Num piscar de olhos, a gente vira pó. Acho que saio dessa mais paciente, mais resiliente.
"Não sou garoto-propaganda de nada, sou garoto-propaganda do que salva vivas", disse ele, reforçando que o seu tratamento envolveu vários medicamentos, entre eles antibiótico, corticoide e anticoagulante, além da boa estrutura hospitalar do Sírio-Libanês.
Em casa e ainda tossindo bastante, Kalil relatou à reportagem o sofrimento pelo qual passou durante os dez dias em que esteve internado para tratar a doença. "Era uma dor no corpo que parecia estar arrancando todos os músculos, horrível. Teve um dia que eu pensei em ligar para o David [Uip, infectologista] e falar: desisto, tira os remédios, eu não quero mais nada."
Falou também sobre o sentimento de vulnerabilidade. "Você se sente um coelhinho da Páscoa sem rabo e sem dentes. Não tem macho, não."
PERGUNTA - Como foi sair da condição de médico e se tornar paciente da Covid-19?
ROBERTO KALIL FILHO - Estava bem no fim de semana, tratando vários pacientes naquela minha vida louca de Sírio e InCor. Na segunda [30], acordei com um mal-estar que nunca senti na vida, febre, dor no corpo, sem energia. Disse para a minha assistente que queria fazer uma tomografia e o teste para o coronavírus.
Quando fiz a tomografia, foi uma tragédia. Eles me internaram em um segundo. Fui para um quarto, colhi um monte de exame e fui levado para um quarto com telemetria, para ser monitorado. Aí veio a notícia de que eu deveria ir para a unidade semi-intensiva porque os exames estavam péssimos.
Me deram de tudo. De cara, tomei cloroquina, antibiótico e corticoide na veia e anticoagulante porque eu tinha fatores no sangue de mau prognóstico em relação à trombose, além do oxigênio. No fim do dia, o chefe da semi-intensiva me perguntou: Kalil, se você for intubado, você quer ir para qual UTI? Aí eu me assustei.
Às 4h da manhã, ele passou de novo no quarto e disse que as medicações estavam fazendo efeito e que a oxigenação tinha melhorado. Escapei da UTI e de intubar.
P - O sr. declarou nesta semana que fez uso da cloroquina. Na verdade, foi um conjunto de terapias. Por que a cloroquina tem estado no centro das atenções?
RK - Eu sempre falei: não é usar só cloroquina, tem que usar cloroquina com antibióticos, em alguns casos com corticoides, como foi o meu porque o meu pulmão estava muito inflamado, e anticoagulante. Não dá para saber o que fez mais efeito ou se foi o conjunto.
P - Ao ser elogiado pelo presidente Bolsonaro, o sr. foi alçado praticamente a garoto-propaganda da cloroquina...
RK - Eu não sou garoto-propaganda de nada. Eu sou garoto-propaganda do que salva vidas. Na quarta [8], tive alta e a Jovem Pan me entrevistou e perguntaram se eu tinha usado cloroquina. Aí eu falei o que eu acho mesmo: eu tomei, usando protocolos do hospital, e o próprio Ministério da Saúde recomenda para os pacientes internados, sob monitorização.
É verdade que não temos grandes estudos científicos mostrando benefícios, mas é uma doença que mata. Se, daqui a seis meses, sair um estudo mostrando que a cloroquina não funciona, parabéns, fizemos o que tinha que fazer. Se, daqui a seis meses, sair um estudo mostrando que a cloroquina é eficaz, e os doentes a quem deixamos de dar? E se morreram? É mais um remédio, um conjunto de remédios que deve ser usado.
P - Não só remédios. A estrutura hospitalar faz muita diferença também, certo?
RK - Sim, sem dúvida. Se você pega a taxa de mortalidade do Sírio e do Einstein, é baixíssima. Eu cai nos 5% da gravidade da doença. E nesses 5% precisa ter suporte, senão você complica, não tem jeito. Com suporte, você escapa. Se não tem suporte, você não escapa.
É uma doença muito grave, que evolui muito rapidamente. Você se interna com uma pneumonia boba e em 24 horas você está na UTI. Tenho muita preocupação com o setor público. Muitas pessoas não vão conseguir nem chegar ao hospital, vão morrer em casa. Pode não dar tempo para socorrer as pessoas mais carentes, que vivem nas comunidades.
Eu temo que aconteça o que aconteceu na Itália. Vai no asilo e tem um monte de velhinhos mortos. Vai numa comunidade e as pessoas [estão] quase morrendo em casa. O Brasil parece estar mais bem preparado. Os protocolos dos hospitais públicos são os mesmos que os dos privados.
P - O sr. defende que a cloroquina seja liberada também para casos leves?
RK - Eu defendo o que está nos protocolos. Pacientes internados têm que tomar cloroquina. E cloroquina com um contexto. Nos casos de pneumonia, tomar também corticoides, anti-inflamatórios, se precisar, anticoagulantes. Eu estou tomando anticoagulante até agora. O risco de trombose é grande mesmo depois da alta.
É uma gama de remédios que precisa ser oferecida. Você não sabe o que salvou a pessoa. Para mim, é um conjunto. Se eu não tivesse tomado cloroquina, corticoide e anticoagulante, talvez não estivesse mais aqui. Estão sendo feitos estudos sobre dar cloroquina em casa. Ainda é preciso a ciência provar [que funciona].
Eu adoraria que a cloroquina fizesse efeito em casa para casos leves, porque evita de o cara internar. É um remédio usado há milênios para artrite reumatoide, lúpus. As pessoas tomam em casa e não têm efeitos colaterais importantes. Se tiver evidência que melhora mesmo em ambiente extra-hospitalar, não acho que será um grande problema.
P - O debate da cloroquina saiu do campo da ciência e da saúde está totalmente politizado. O que sr. pensa sobre isso?
RK - As pessoas têm que entender que esse é o momento de pensar em união e cura. As pessoas estão morrendo. Quando sair um antiviral, uma vacina, acabou o problema. Mas até lá precisamos ter suporte hospitalar e uma gama de remédios. Eu sou a favor da cloroquina desde o começo. Eu rezo, torço para que esse coquetel de remédios, a cloroquina inclusive, funcione e o cara encurte a internação e vá embora.
P - Ser elogiado publicamente pelo presidente causou algum constrangimento?
RK - De forma alguma. Tudo o que ele reproduziu foi o que conversei com ele. Eu não conheço o presidente pessoalmente. Eu recebi uma ligação dele e ele disse que queria me ouvir e me parabenizar pela coragem de assumir que tinha tomado a cloroquina. Eu disse: 'presidente, eu não fiz nada mais do que a minha obrigação. Eu tomei o remédio entre outros remédios, [para] os pacientes que eu cuido, a equipe médica prescreve dentro das normas autorizadas. Que não tem grandes estudos com evidência, não tem mesmo. Assim como não tem para o corticoide que eu usei. Aliás, era uma coisa bem questionável, mas eu tomei.
P - Alguma crítica entre os colegas?
RK - De jeito de nenhum, só elogios. Críticas por quê? Porque eu tomei o remédio, porque eu me abri? Muitos elogiaram a postura de eu ter falado sobre a minha doença. Não foi fácil, especialmente quando você está muito doente.
P - E como está sendo a recuperação?
RK - Comecei a melhorar depois de dois, três dias de internação. Até então era uma dor no corpo que parecia que estava arrancando todos os músculos, horrível. Teve um dia em que eu pensei em ligar para o David [Uip, infectologista] e falar: 'eu desisto, tira os remédios, eu não quero mais nada'. Bateu um desespero com tanta dor e mal-estar. Não conseguia comer, emagreci sete quilos em dez dias.
P - O sr. teve medo de morrer?
RK - Não tive medo de morrer, mas tive medo do sofrimento. Não queria sofrer mais. Cheguei a pensar que era melhor morrer do que passar por isso. Isso passou pela minha cabeça duas noites seguidas. Foi um horror.
P - O sr. tem fama de ser bem linha dura, mandão. Conseguiu se comportar como paciente?
RK - Todos me elogiaram, eu fui um cordeiro. Eu estava muito mal. Esquece o coiceiro. Você vira um coelhinho da Páscoa sem rabo e sem dente. Não tem macho, não. Já sofri muito com cálculo renal, em 2010, coloquei stent dois anos atrás. Mas cálculo renal é água com açúcar perto dessa dor, colocar stent é brincadeira de criança.
P - Qual foi a maior lição disso tudo?
RK - Nós não somos nada. Você passa um fim de semana trabalhando feito um leão, no dia seguinte você está como um ratinho desbotado no quarto de um hospital. Num piscar de olhos, a gente vira pó. Acho que saio dessa mais paciente, mais resiliente.
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