Venda de empresas do setor, além de sucateamento causado por falta de investimentos, gerou quadro caótico. Para reverter a situação, governo Lula teve que qualificar e intensificar a ação estatal.
Tomemos como base um outro relatório do mesmo Tribunal de Contas da União (TCU), órgão que fundamentou a matéria do diário paulistano. O mesmo calculou que o consumidor residencial arcou, por meio de repasse tarifário, com 60% do prejuízo total do apagão de energia que o Brasil sofreu em 2001 e 2002. Isso correspondeu à soma de R$ 27,12 bilhões à época, o que, em valores corrigidos, seriam R$ 45,2 bilhões em 2009. Outros R$ 18 bilhões foram custeados diretamente pelo Tesouro Nacional, ou seja, também pelo cidadão.
Mas é bom lembrar que existiram prejuízos de outra ordem. O racionamento fez com que a atividade econômica despencasse. A taxa de crescimento do PIB caiu de 4,3%, em 2000, para 1,3%, em 2001, tendo como consequências, entre tantas outras negativas, o desemprego e a queda da arrecadação. Mas o importante, para efeito de comparação entre os dois projetos que se enfrentam no segundo turno dessas eleições, é lembrar porque essa crise eclodiu.
Na época, a culpa era atribuída à falta de chuvas. O nível dos reservatórios que abasteciam o complexo hidrelétrico brasileiro havia baixado a níveis críticos no fim de 2000, no entanto, essa redução vinha ocorrendo desde 1997 e nada foi feito. E o governo sabia da urgência. Um relatório elaborado pela Comissão de Análise do Sistema Hidrotérmico de Energia Elétrica, em 2001, constatou que a a crise teria sido evitada caso as obras identificadas nos planos decenais da Eletrobrás tivessem sido plenamente executadas, no tempo devido.
Mas por que o governo não agiu a tempo? Pelas normas estabelecidas depois dos diversos acordos firmados com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o uso de recursos públicos era tratado de maneira igual, fosse gasto ou investimento, e era tolhido. Isso atava as mãos das estatais, mesmo daquelas que tinham resultados econômicos positivos e capacidade para investir com recursos próprios. Também não era permitido ao BNDES emprestar recursos a elas, ainda que, paradoxalmente, a mesma agência de fomento tenha sido fundamental para financiar e assegurar a privatização ocorrida no setor.
Na verdade, a privatização no setor de geração de energia não teve como objetivo principal a expansão da capacidade de produção, o que se privilegiou nesse processo foi a venda dos ativos existentes para os novos agentes, que compraram unidades de produção de eletricidade já instaladas. O marco regulatório implantado à época ajudou a criar um ambiente de incertezas que não incentivava a realização de novos investimentos.
Retomada do Estado
Pode-se ver que a situação, quando Lula assumiu em 2003, era das piores. As distribuidoras estavam em situação financeira difícil por conta do racionamento que derrubou a demanda, causando um elevado endividamento. Ao mesmo tempo, as empresas geradoras, a maior parte estatais, estavam insatisfeitas com a perspectiva de descontratação de energia e também sofriam com a queda da demanda, trabalhando em um ambiente de sobre-oferta.
Assim, foi necessário reforçar e qualificar a ação estatal. Estabeleceu-se um novo marco regulatório que dava estabilidade ao setor e garantia a expansão, promovendo a possibilidade de universalização dos serviços de energia elétrica. E isso só foi possível porque as empresas geradoras e transmissoras do grupo Eletrobrás (Furnas, Chesf, Eletronorte e Eletrosul) foram retiradas do Plano Nacional de Desestatização (PND) e puderam voltar a realizar investimentos. Foi preciso recuperar também empresas, por meio da atuação da Eletrobrás, que estavam sucateadas e não tinham entrado no rol da privatização por não terem mercado, como as dos estados do Acre, Rondônia, Amapá, Amazonas, Roraima, Alagoas e Piauí.
O depoimento do diretor de Engenharia da Eletrobrás, Valter Luiz Cardeal, é elucidativo em relação ao que acontecia nas gestões anteriores. Segundo ele, cada empresa que integrava o sistema “andava sozinha”, não havia uma coordenação que caracterizasse de fato uma holding. Além disso, ao contrário do discurso adotado por José Serra nessa campanha, havia uma grande apropriação política e foi preciso retomar essas empresas e estabelecer um só comando. Foram dispensados 36 “diretores políticos” e estabelecidas normas para buscar o aperfeiçoamento da governança e a reabilitação de negócios e distribuição de energia.
Hoje, a Eletrobrás é a décima maior empresa do setor no mundo e, ao mesmo tempo que é uma holding de capital aberto voltada para o gerenciamento do setor elétrico também atua como uma agência de desenvolvimento que operacionaliza e participa de alguns dos principais programas sociais do governo, como o Luz para Todos, o Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel) e o Reluz.
O resultado de toda essa reorientação também pôde ser visto, por exemplo, em 2006, quando o Sul do país enfrentou a maior seca dos últimos 60 anos e mesmo assim não houve problemas de abastecimento. A situação foi contornada porque o Brasil duplicou a capacidade de transmissão de energia entre o Sul e o Sudeste, que pôde mandar energia para a região vizinha. Dessa vez, São Pedro não precisou ser responsabilizado pelas mazelas de um Estado ausente.
Esse artigo foi escrito a partir de trechos do livro O governo Lula e o novo papel do Estado brasileiro (Fundação Perseu Abramo), disponível aqui.
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Fonte: Revista Fórum