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terça-feira, janeiro 12, 2010

Para entender o "pai dos pobres"

“Quando perdeu aquela eleição para Fernando Collor, Lula percebeu que não tinha o apoio das camadas mais baixas da população. E passou a perseguir esse apoio de forma obsessiva”

Quem leu o noticiário da semana passada a respeito do recente artigo que André Singer escreveu sobre Lula deve ter ficado com a impressão de que o ex-porta-voz da Presidência da República resolveu cair de pau em cima do seu antigo chefe. As matérias dos jornalões citavam apenas que, na visão de Singer, o fenômeno do “lulismo” tinha raízes conservadoras e despolitizantes. Ou seja: passavam a impressão de que Singer considerava que Lula ia se transformando em mais um ditador populista latino-americano. Aviso aos navegantes desses complexos mares brasileiros: não é nada disso.

Ainda que as afirmações acima sobre o lulismo constem de fato do artigo de Singer, elas estão longe de levar à conclusão de que Lula adota uma postura autoritária, ou queira resvalar para isso, na linha de um Hugo Chávez ou coisa que o valha. O que Singer, que além de ter sido o primeiro porta-voz do governo Lula é um respeitado cientista político, tenta nesse artigo é entender como Lula conseguiu se tornar esse impressionante fenômeno que é. Como é que ele conseguiu adicionar à imagem de ícone da esquerda que ele já tinha um importante bloco de eleitores mais conservadores.

Eleitores que ficam na camada social mais baixa da população, uma parcela que Singer chama de “subproletariado”, uma camada politicamente desorganizada, avessa a idéias revolucionárias, mas simpática – até porque são os principais beneficiários disso – a transformações sociais que aumentem o seu poder de compra, mas sem ameaçar a ordem estabelecida. O que Singer tenta, no seu artigo Raízes sociais e ideológicas do lulismo, publicado na última edição da revista Novos Estudos, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), é mostrar como Lula, no seu governo, agregou esse grupo e tornou-o a sua principal base de sustentação de forma democrática, com ações políticas e de governo. E não com gracejos autoritários, como alguns textos do noticiário publicado sobre o artigo fazem crer.

Ainda que algumas premissas usadas por Singer no artigo sejam questionadas por alguns (e vamos falar mais sobre isso abaixo), o que ele propõe é que Lula produziu na eleição de 2006 um realinhamento eleitoral, que pode mudar a lógica da correlação das forças políticas no país daqui pra frente. Ele verifica que o discurso tradicional de esquerda que o PT fazia quando não era governo provocava repulsa na parcela mais pobre do eleitorado. Esse subproletariado, conservador na sua essência, associava o discurso petista – recheado de palavras de ordem sobre “greve”, “passeatas”, “manifestações” – a “bagunça”. E, assim, rejeitava Lula e o PT.

Na verdade, o resultado que Singer observa é algo que, de certa forma, ele mesmo ajudou a produzir. Antes da eleição de 2002, ele publicou Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro. Nesse livro, Singer conclui que o eleitor brasileiro é majoritariamente conservador, e que os partidos de esquerda teriam dificuldade em compreender os anseios populares e, por isso, acabavam derrotados nas eleições. Publicado em 2000, esse livro calou fundo no PT, no processo de transformação que foi produzido para fazer com que Lula perdesse a cara amarrada de líder sindical enfezado e ganhasse o semblante simpático do “Lulinha Paz e Amor”.

Como Singer observa em seu artigo, o próprio Lula já vinha percebendo os problemas do seu discurso eleitoral desde 1989. Quando perdeu aquela eleição para Fernando Collor, Lula percebeu que não tinha o apoio das camadas mais baixas da população. E passou a perseguir esse apoio de forma obsessiva. “A minha briga é sempre essa: atingir o segmento da sociedade que ganha salário mínimo”, disse, à época.

Natureza do lulismo

Na avaliação de André Singer, Lula só conseguiu alcançar isso quando chegou ao poder. Aplicando o que seria a natureza do lulismo: a construção de um Estado suficientemente forte para diminuir a desigualdade social, mas sem ameaçar a ordem estabelecida. Ou seja: Lula incomoda a esquerda tradicional porque no discurso e na prática do seu governo não há espaço para mudar o perfil econômico e político do Brasil. Continuaremos capitalistas. Incomoda ao próprio PT que gostaria de ver o governo mais à esquerda do que ele se coloca.

A discussão agora em torno do Plano Nacional de Direitos Humanos é um exemplo disso: da tentativa do PT de por uma cunha para forçar a guinada que Lula, por si, não está disposto a dar. Ao mesmo tempo, incomoda aos setores conservadores porque promove mudanças sociais de fato, ao adotar uma filosofia de Estado indutor do crescimento, e não apenas regulador, como seria no modelo liberal tradicional (essa, a sua maior diferença com relação ao governo Fernando Henrique).

Ao produzir essas mudanças, Lula trouxe transformações reais para a vida da parcela mais pobre do eleitorado. Como se trata de uma parcela socialmente e politicamente desorganizada, os efeitos eleitorais disso não foram sentidos antes da abertura das urnas de 2006. Foi uma mudança silenciosa. Singer anota que, dez meses antes da reeleição, a revista Veja - na onda da reação negativa do episódio do mensalão sobre o eleitorado tradicional de esquerda, mais esclarecido – publicava que Lula seria derrotado porque perdera 40% do apoio obtido em 2002. O que na ocasião não se notara, por ser um movimento silencioso, é que essa perda seria compensada pela agregação a Lula de um eleitorado das camadas mais baixas que até então nunca votara nele.

“Lula foi eleito, sobretudo, pelo apoio que teve no segmento de baixíssima renda, enquanto Alckmin contou, além do voto dos mais ricos, com certa sustentação de eleitores de classe média baixa. Entre os eleitores de baixíssima renda, Lula teve sobre Alckmin uma vantagem de 26 pontos percentuais”, anota Singer.

Na avaliação de André Singer, Lula obteve a adesão dessas classes mais baixas quando conseguiu por em funcionamento um tripé formado por políticas de transferência de renda (o Bolsa-Família), aumento real do salário mínimo e a expansão do crédito popular (Banco Popular, crédito consignado).

O problema dessa ação, observa Singer, é que, para agregar essa camada da população que é conservadora, Lula não procurou transformá-la. Não há no governo uma preocupação doutrinadora, no sentido de tentar trazer essa população para as teses de esquerda. Lula fez o que esse pessoal esperava: melhorou as suas vidas. E só. Como não é uma ação ideologicamente de esquerda, nem de direita, ela foi despolitizadora, desideologizante.

“Houve uma diluição das diferenças ideológicas entre os partidos”, observa Singer. Por quê? Porque as políticas sociais que Lula promove são as mesmas que já eram promovidas por Fernando Henrique. Ele só revelou maior vontade política de fazê-las. Talvez pelo fato de ser o primeiro presidente brasileiro que sentiu na pele os efeitos da miséria absoluta. “Pela primeira vez, o Estado brasileiro olha para os mais frágeis e, por isso, se popularizou. Essa é a razão pela qual o presidente insiste que ‘nunca antes na história desse país, etc, etc’”, avalia Singer.

Além disso, os mecanismos indutores da economia que o governo usa estão dentro das regras do capitalismo, não são intervencionistas. Por isso, não têm como provocar críticas objetivas da oposição.

Questionamentos

Ao ler o artigo de Singer, um importante assessor de Lula na Presidência fez alguns questionamentos e ponderações. Na sua avaliação, do ponto de vista da lógica que move as ações do governo, o artigo é perfeito. Lula, de fato, age como presidente de forma completamente desamarrada dos manuais tradicionais da esquerda. Sua ação é prática, pragmática, realista, como sempre foi desde os tempos em que era líder sindical. Despreza o jogo político tradicional. E tem mesmo viés conservador, se isso for avaliado no sentido de que a promoção social que promove está longe de querer alterar a ordem estabelecida.

O problema, na avaliação desse assessor, é que tal transformação não teria acontecido apenas na eleição de 2006, como defender Singer. Se assim fosse, Lula não teria ganho a eleição de 2002. Porque esbarraria na mesma dificuldade de sempre. A mudança, assim, seria mais complexa e longa. E o PT, ao contrário do que diz Singer, a teria acompanhado.

A transformação teria início quando o PT admitiu ampliar seu leque de alianças. Deu um passo fundamental quando Lula costurou o apoio do PL (hoje PR) e deixou o lugar de vice-presidente para o empresário José Alencar. Deu outro passo fundamental quando divulgou a “Carta aos Brasileiros”, assegurando que não mudaria a condução da economia do país se fosse eleito. Para esse assessor, ali Lula assegurou o acesso a esse novo eleitorado. E o perfil de parlamentares petistas que chegaram com Lula em 2002 mostra que o partido também já teria mudado ali: menos políticos de voto de opinião, como José Genoino ou Eduardo Suplicy, mais políticos saídos de movimentos sociais e de classe, como professor Luizinho. O atual líder do PT na Câmara, Cândido Vacarezza (SP), pouco difere de Lula no discurso pouco ideológico e mais pragmático que pratica. Para esse assessor, a mudança obtida em 2002 seria mais importante do que a que ocorreu em 2006 para entender como se deu o lulismo.

Não importa, porém, quem está mais ou menos certo nesse detalhe. O fato é que Lula tornou-se um fenômeno político talvez sem paralelo na história do Brasil. E que precisa ser compreendido. Para compreendê-lo, é preciso sair das visões estreitas daqueles que o amam e daqueles que o odeiam. O artigo de Singer pode ser um bom primeiro passo nesse sentido.

Leia a íntegra do artigo de André Singer

Fonte: Congressoemfoco

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