Dora Kramer
Ou bem o Programa Nacional de Direitos Humanos não é nada além de um compêndio de intenções que serve à recreação de certa esquerda ou o presidente Luiz Inácio da Silva não preside de fato o país. A primeira hipótese chega a ser reconfortante considerando o caráter aterrador da segunda.
Se Lula assinou sem ler um plano de mais de 500 metas que abre frentes de conflito com Deus e o mundo e, segundo seus defensores, põe o Brasil na rota do futuro; se a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, conforme reza a versão do palácio, não tem nada com isso, é de se perguntar quem se responsabiliza pela tomada de decisões do governo.
Impressiona a naturalidade com que é aceita a premissa de que o governo tenha se proposto a executar um projeto que altera o desenho da Constituição brasileira e reformula a base sob a qual se sustentou o processo de redemocratização, sem que o presidente da República nem sua candidata a presidir a República tivessem conhecimento do pretendido.
Muitos foram os penitentes pelo fato de a imprensa não ter dado a devida atenção ao conteúdo das propostas quando do lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos, duas semanas antes de José Casado, do jornal O Globo, esquadrinhar as 73 páginas do decreto assinado pelo presidente Lula e revelá-lo na íntegra.
A penitência, na verdade, caberia ao governo, por preparar e apresentar à sociedade um plano dessa envergadura sem explicar exatamente do que se tratava. Na cerimônia de divulgação do programa, o presidente em seu discurso não disse palavra sobre as proposições.
Pela conformação do ato e a reação seguinte do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, contra o que seria o descumprimento de um acerto relativo à criação da Comissão da Verdade para discutir os crimes cometidos durante o regime militar, parecia apenas a insistência (mal conduzida) em tema que meses antes havia provocado polêmica entre os mesmos personagens. Celeuma esta que o presidente Lula encerrou na base da ordem unida sem dizer qual era sua posição, daquela vez também dando a impressão de que o assunto nascera ou por geração espontânea ou por obra de demandas autônomas de setores do governo. De qualquer forma, ficou patente a ausência de eixo como seria natural de uma ação de governo.
Tão centralizador e “dono” não só de todos os atos, mas também de seus efeitos – quando positivos, bem entendido –, o presidente Lula simplesmente se manteve alheio à essência do assunto. Agora ocorreu o mesmo.
A justificativa apresentada diante de tantas reações negativas foi a de que o Programa de Direitos Humanos é uma versão ampliada de projeto elaborado no governo anterior e que representa “uma construção fundamentada em elementos essenciais para a democracia”, na definição do secretário Paulo Vannuchi.
Pois bem. Se são essenciais, fundamentais, cruciais para a consolidação institucional do país, como é que o presidente Lula não sabia do que se tratava? E por que quando do lançamento do programa não se explicou nem se falou coisa alguma sobre a abrangência do decreto?
Quando é para valer, um projeto que mexe nas atribuições dos Poderes, altera relações, modifica regras, derruba preceitos e estipula novas regras para os mais diversos setores, deve no mínimo ser elaborado de forma consistente, bem negociado mediante articulação com os setores atingidos, a fim de reunir condições para ser executado.
No lugar disso, o que se faz? Monta-se uma cerimônia toda voltada para a ministra Dilma Rousseff estrear o novo visual com um discurso emocionado no papel de vítima da ditadura. Tudo certo, não houvesse, além disso, uma série de propostas de abrangência descomunal que o serviço de comunicação do Planalto achou por bem ignorar. Acabou deixando que assumissem a aparência de contrabando.
As reações contrárias por parte dos que foram pegos de surpresa com decisões que contemplam uma visão de mundo específica, ignorando a pluralidade da sociedade, a natureza da coalizão governamental e até o pacto subjacente ao sentido da Carta aos Brasileiros, não poderiam ser diferentes. Isso independentemente do mérito de tão ampla reforma de leis e de procedimentos.
Inclusive porque ao governo já parece importar pouco o destino das propostas, visto que fez seu lance sem combinar com os outros jogadores e já abandona a cena à francesa como de hábito.
A última vez que Lula deixou a esquerda do PT levar adiante sua necessidade de afirmação perante a arquibancada foi na disputa pela presidência da Câmara, em 2005, com a candidatura de Luiz Eduardo Greenhalgh. Ignorou as condições políticas objetivas e subjetivas, enrolou-se todo e acabou abrindo espaço para a eleição de Severino Cavalcanti.