Musk quer salvar a humanidade, mas nao liga para o povão
João Pereira Coutinho
Folha
Para que servem os ricos, afinal? A pergunta é de Benjamin Wallace-Wells na revista New Yorker. Um cínico, como eu, poderia responder: servem para bancar revistas onde você escreve por um cheque chorudo, Benjamin. Não vou ser cínico. Caso contrário, gastaria meu latim denunciando toda a intelligentsia anticapitalista que gosta de pregar seus sermões em púlpitos —TVs, jornais, revistas, institutos, universidades etc.— financiados por capitalistas.
Até porque Benjamin Wallace-Wells tem certa razão. Os ricos podem bancar revistas. Com relutância, podem até pagar impostos. Mas desistiram de um ideal de “igualdade cívica” que era estrutural na democracia americana e não só.
EIS A IRONIA – Wallace-Wells, talvez sem o saber, está bem próximo de um autor conservador como Christopher Lasch (1932–1994), de quem vou lendo “A Revolta das Elites e a Traição da Democracia”. O livro, publicado pela Ediouro em 1995, acaba de ser republicado pela Almedina, com tradução e posfácio (excelentes) de Martim Vasques da Cunha.
Impressionante: a obra é de 1994. Mas Lasch, que morreu no mesmo ano, consegue acertar em alvos que só 30 anos depois nos parecem óbvios.
E o mais óbvio é a “revolta das elites” do título: em meados do século 20, as elites cortaram o contato com o resto do povão. Sempre foi assim? Não nos Estados Unidos, defende Lasch: as diferenças econômicas não cancelavam uma igualdade cívica que impressionava qualquer visitante europeu, ainda marcado pelo “rapport” aristocrático que sobreviveu à Revolução Francesa.
CUMPRIMENTOS – É uma grande verdade. Alexis de Tocqueville (1805–1859), que viajou pelo país no século 19, deixou páginas notáveis sobre a forma como os americanos (brancos, obviamente; a escravidão é a mancha nessa paisagem) se cumprimentavam nas ruas, apertando as mãos, mesmo que um deles fosse um magnata e o outro um modesto artífice.
Tudo mudou a partir de 1960, quando começou a grande separação entre as elites (econômicas, culturais etc.) e as massas. Tocqueville, hoje, não notaria diferenças entre a hierarquia social europeia do século 19 e a americana do século 21.
Isso é especialmente visível na educação e na cultura. Ao contrário do que pensam os conservadores mais básicos, as elites progressistas não procuraram “doutrinar” o povo com suas teorias (aquela conversa sobre o “marxismo cultural”, que faz a delícia dos ingênuos).
SEM CONTATO – Pelo contrário: a ideia era não ter contato com o povo, criando um mundo paralelo onde a realidade não existe. A doutrinação é um fenômeno de elites para elites – um mecanismo de reprodução. O “cesto dos deploráveis” (lembra?) não merece qualquer conversa ou atenção.
Esse mundo paralelo não é apenas uma criação intelectual. É um fato da própria existência cotidiana das elites pós-década de 60: por que motivo elas se importam com educação pública, saúde pública e segurança pública?
Sim, elas podem falar nessas maravilhas. Mas, na hora da verdade, têm educação privada, saúde privada e segurança privada. É por isso que a ignorância, a doença ou a violência, que afligem os mais humildes, são apenas conceitos vagos para as elites contemporâneas, sejam elas de esquerda, sejam de direita.
RESULTADO? – “As classes privilegiadas em Los Angeles sentem maior afinidade com seus iguais no Japão, Singapura e Coreia do que com a maioria dos seus compatriotas”, escreve Lasch.
O problema dessa alienação é que a democracia, ao contrário de outras formas de governo, não funciona assim. Para começar, e como lembrava Abraham Lincoln, democracia significa não sermos escravos e não sermos senhores de escravos. Iguais, em suma.
Para acabar, a democracia pressupõe que os mais afortunados se sintam responsáveis pelos menos afortunados. Como? Desde logo, reconhecendo-os como iguais, habitando o mesmo espaço, partilhando o mesmo destino.
EXEMPLO DE MUSK – Como escreve Benjamin Wallace-Wells, ecoando Christopher Lasch, não é por acaso que os ricos mais famosos de hoje – Elon Musk, por exemplo – estão mais interessados em salvar a humanidade do que em salvar o homem comum.
Vem nos livros. “Quanto mais amo a humanidade em geral, menos amo o homem em particular…“, dizia Dostoiévski, que, como sempre, sabia do que falava.