Publicado em 2 de outubro de 2023 por Tribuna da Internet
José Henrique Mariante
Folha
A mínima de quarta-feira (27) foi quase a máxima de quinta nos termômetros de São Paulo; leões-marinhos foram fotografados em calçada alagada no Rio Grande do Sul; mais de cem botos cor-de-rosa morreram em rios sem oxigênio na seca histórica que assola a Amazônia. O apocalipse climático se materializa no país, como em quase todas as partes do mundo, no ano do verão sem fim, aquele que ainda chegará aos trópicos e já apavora.
Em menos de 24 horas, a Folha publicou duas reportagens de serviço sobre ar-condicionado, como comprar, como instalar, como economizar. Em nenhuma delas se ponderou que o consequente aumento no consumo de energia alimenta o ciclo que no fim das contas aquece o planeta e compromete seus ritmos. O refresco de hoje liga o forno de amanhã.
JANJA NA MANCHETE – Eduardo Leite foi a Lula pedir ajuda para seu estado assolado por enchentes com a previsão do tempo na mão. O título do jornal, porém, destacou Janja, que é muito mais assunto que a desgraça gaúcha.
Sim, a Folha fala da crise em boas reportagens: 40% das capitais brasileiras tiveram inverno mais quente da história; total de afetados por chuvas em 2022 é o maior em dez anos.
Porém a questão é a sinapse, trazer o problema para perto dos leitores. Não dá para escrever que a capital paulista tem cinco dias seguidos de temperaturas recordes e que o problema é “um bloqueio atmosférico causado pela persistência de um sistema de alta pressão atmosférica sobre uma grande área por vários dias consecutivos”. Para além da repetição de termos, falta o quadro maior, as razões e, por que não, as dúvidas sobre tantos extremos.
ABRIR A DISCUSSÃO – Seria bom também trazer os responsáveis para a discussão. Há duas semanas, o chefe global da JBS foi entrevistado em evento do jornal The New York Times em Nova York.
A newsletter sobre clima do diário americano (a Folha ou qualquer outro grande da imprensa brasileira tem uma newsletter sobre clima?) narrou o encontro com uma série de dados que o executivo por óbvio contesta: emissões superiores às de um país como a Itália, na mira de ativistas que querem impedir que a empresa alcance a Bolsa americana, recomendação do Conar local para que pare de prometer em peças publicitárias que alcançará o “net zero”, zerar as emissões líquidas, até 2040.
Uma busca sobre a JBS em textos recentes na Folha revela outro planeta: a empresa é responsável por 2% do PIB brasileiro, diz a Fipe.
QUESTÃO DA AMAZÔNIA – “Ministro do Brasil diz que ambições de petróleo e verde não são contraditórias”, escreveu na quarta-feira (27) o Financial Times, em texto pouco favorável ao governo Lula.
No mesmo dia, a pergunta para Alexandre Silveira aqui é se vai ter ou não horário de verão.
Um último exemplo. A Folha relatou que a bancada do agronegócio pressionava o governo para liberar o seguro rural diante de tantas catástrofes (não só pressionava como obstruiu a pauta da Câmara até conseguir liberação de verba). Alguém questionou o bloco sobre a maior frequência de quebras de safras e a evidente relação com a crise climática, tão contestada pelo setor?
NÃO DÁ AUDIÊNCIA – Não, não é assunto, não dá audiência e, como afirmou um leitor que desistiu da Folha, a verdade é que estamos todos fritos, pois ninguém vai desligar o ar-condicionado, deixar de comer bife, passar o trator ou buscar royalties.
Ainda que inglória, é tarefa da mídia apresentar a conta indigesta da brincadeira. Esta última semana foi uma grande oportunidade perdida sobre a crise climática.
Pelo andar da carruagem, não faltarão outras muitas.