“O Ministério Público entrou no caso Palocci para desempenhar um papel vergonhoso. E já faz algum tempo que Gurgel oferece boas notícias para autoridades sujeitas à sua fiscalização“
A saída de Antonio Palocci pode tirar o governo de Dilma Roussef da crise política que o paralisou nas últimas semanas. Mas custará muito caro à reputação de uma das instituições mais importantes do Brasil democrático, quer dizer, daquele Brasil que tem como divisor de águas a Constituição em vigor, promulgada em outubro de 1988.
O Ministério Público – a instituição em questão – entrou no caso Palocci para desempenhar um papel vergonhoso. Defender a absurda tese de que não merece sequer ser investigada a possibilidade de o ex-ministro da Casa Civil ter incorrido em práticas ilícitas para obter os recursos que lhe permitiram, em apenas quatro anos, multiplicar o seu patrimônio pessoal em 20 vezes.
Seria leviano inferir que há crime por trás desse súbito enriquecimento, de que o país tomou conhecimento no último dia 15 por meio de reportagem de Andreza Matais e José Ernesto Credendio, da Folha de S. Paulo. Mas não é preciso ser um gênio em Economia ou Administração para saber que se trata de fenômeno anormal. Quem mais, por maiores talentos que a natureza e a vida lhe tenham emprestado, é capaz de apresentar tal performance operando uma pequena empresa de consultoria?
Pelo menos quatro outros aspectos tornavam a história ainda mais intrigante. 1) A absoluta ausência de explicações públicas minimamente convincentes. 2) O fato de o protagonista do episódio ser um agente público, de grande importância na história brasileira recente – como ministro da Fazenda, deputado federal, coordenador da campanha e da equipe de transição de Dilma e chefe da Casa Civil. 3) As facilidades que tais cargos em tese oferecem para a prática de ilicitudes bem remuneradas. 4) E as nódoas que acompanhavam a trajetória do personagem-chave, que conquistou respeito como técnico competente e político hábil, mas traz o saldo desfavorável de suspeitas várias, desde as denúncias de envolvimento em licitações viciadas promovidas ao tempo em que foi prefeito de Ribeirão Preto até as circunstâncias da célebre quebra de sigilo do caseiro Francenildo.
Como chefe supremo do Ministério Público, órgão ao qual cabe defender a ordem jurídica e garantir o cumprimento da lei, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, deveria ser o maior interessado em esclarecer tudo. Na segunda-feira, porém, ele optou pelo caminho oposto, brindando o ex-ministro com uma espécie de nada-consta. “Para limpar a biografia do Palocci, o Gurgel sujou a sua própria biografia”, resumiu com extrema felicidade um analista tarimbado na arte de interpretar os meandros do poder.
Gurgel, que aguarda a confirmação de Dilma para continuar no cargo por mais dois anos (seu mandato está perto do fim), não viu nenhum indício capaz de justificar a abertura de inquérito para apurar os fatos. Não considerou indícios o repentino salto no patrimônio de Palocci, os R$ 7,5 milhões que ele usou para comprar imóveis no final de 2010, nem os R$ 20 milhões que a empresa dele recebeu ano passado.
Num documento de 27 páginas (veja a íntegra), chegou a invocar um argumento kafkiano para dizer não à investigação: precisamente a ausência de investigação em andamento na Polícia Federal contra Palocci ou a sua empresa. Ué, não seria esta uma razão para, ao contrário, começar a investigar imediatamente? O que o procurador-geral faz, no final das contas, é aquilo que o ex-ministro anuncia na nota oficial em que se despediu da Casa Civil: “confirma a legalidade e a retidão de suas atividades profissionais [de Palocci] no período recente”.
Muito provavelmente, com a saída de Palocci do ministério e a providencial ajuda de Gurgel, ficaremos sem saber coisas tipo… como o ex-ministro conseguiu um faturamento tão alto? Que serviços prestou? Para quem? Exerceu as funções de deputado federal e coordenador da campanha e da transição de Dilma de acordo com a lei, como sustenta? Tirou proveito desses cargos para obter ganhos privados? Ficou realmente de fora, como diz, da captação de recursos para a campanha eleitoral? Se o ministro fez tudo certo, como afirma, não há nenhum problema em divulgar tais informações. Se cometeu crime, maior motivo ainda para ser tudo tirado a limpo.
Já faz algum tempo que Gurgel oferece boas notícias para autoridades sujeitas à sua fiscalização. Em abril, arquivou uma denúncia contra o vice-presidente Michel Temer. No último dia 22, a repórter Mariangela Galucci, do jornal O Estado de S. Paulo, informou que em dois anos como procurador-geral ele entrou com 20 ações diretas de inconstitucionalidade contra leis e atos governamentais. Em dois anos, no início do governo Lula, Claudio Fonteles entrou com 259. Com Antônio Fernando de Souza à frente da Procuradoria, foram 130.
Fonteles e Antônio Fernando imprimiram uma conduta bastante diferente daquela que marcou o período de oito anos que os precedeu. Naquela fase, que coincide com a era FHC, não investigar era a regra. Ao longo de quatro mandatos consecutivos, o procurador-geral Geraldo Brindeiro notabilizou-se como o engavetador-geral da República pela sua compulsão ao arquivamento de denúncias contra agentes do poder. Com a ajuda dele e dos demais órgãos de controle, casos cabeludos como a compra de votos para aprovar a emenda da reeleição foram deixados de lado.
Viu-se algo semelhante no caso Palocci: a fragilidade das instituições que deveriam proteger a sociedade assegurando a transparência e o bom comportamento dos homens públicos. O Congresso dificilmente terá força para levar o assunto adiante. A Controladoria-Geral da União (CGU) e a Comissão de Ética Pública omitiram-se. Alegando razões bastante discutíveis, ambas se recusaram a examinar o comportamento de Palocci. E ficou mais claro do que nunca que enquanto Roberto Gurgel estiver à frente da PGR, Dilma terá um Brindeiro pra chamar de seu.
* Jornalista, criou e dirige o site Congresso em Foco. Mais informações na seção Quem somos.
Fonte: Congressoemfoco
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