“É possível que eles não tenham descoberto isso ainda, mas os segmentos emergentes da sociedade brasileira, que não se restringem à classe C, são hoje os verdadeiros donos dos destinos do país”
Nada mais importante acontece no Brasil de hoje, pelos efeitos sobre a nossa formação socioeconômica e por seus reflexos políticos, do que o processo de ascensão social que nos últimos anos beneficiou milhões de brasileiros.
Recapitulemos.
Como mostrou a equipe coordenada por Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, esse fenômeno vem de longe (clique aqui para abrir o PDF completo do estudo). Em 1992, as classes D e E – isto é, aquelas com renda familiar mensal correspondente a até R$ 1.126 – representavam 62% da população, enquanto as classes A, B e C equivaliam a 38%. Em 2009, a situação praticamente se inverteu. Os grupos A, B e C passaram a representar 61% dos brasileiros, enquanto os 39% restantes pertenciam às camadas de renda D e E.
Esse processo, continuemos a lembrar, foi particularmente intenso na era Lula, quando – segundo o importante trabalho de Neri – 29 milhões de pessoas chegaram à chamada classe C (aquela com renda familiar entre R$ 1.126 e R$ 4.854) e outras 6,6 milhões ultrapassaram esse patamar, incorporando-se às classes A e B.
Foi assim que os aeroportos se tornaram mais frequentados que as rodoviárias (praticamente dobrou o número de passageiros de aviões) e abriram-se as portas do paraíso do consumo para vasto contingente de brasucas. A classe C, a “nova classe média” cantada em verso e prosa, se tornou maioria da população: 94,9 milhões de brasileiros, uma massa populacional que “poderia decidir sozinha uma eleição”, conforme ressaltou Marcelo Neri em setembro de 2010, ao apresentar o estudo que serve de base para os números aqui citados.
Semanas depois, Dilma, “o poste” do qual a oposição chegou a fazer troça, venceu a disputa presidencial. A classe C não a elegeu sozinha, mas seus votos foram fundamentais para a vitória petista.
Ao lançar seu principal programa de governo, semana passada, Dilma insiste na tecla do combate à pobreza que lhe deu a possibilidade de suceder Lula. O “Brasil sem miséria” inclui a ampliação do Bolsa Família e várias outras medidas destinadas a cumprir a ambiciosa meta de retirar 16,2 milhões de brasileiros da extrema pobreza. Vai dar certo? Não se sabe, mas é uma estratégia.
Do lado da oposição, a manifestação mais próxima de um projeto estratégico de poder partiu do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em artigo publicado em abril na revista Interesse Nacional e fartamente repercutido à época pela imprensa.
O observador independente há de verificar no texto de Fernando Henrique duas de suas marcas registradas. A primeira é a avaliação exageradamente positiva do seu período presidencial, a ponto de negar que houve compra de votos de parlamentares na aprovação da emenda constitucional que possibilitou sua reeleição (é tão ridículo quanto ouvir petistas e lulistas dizerem que o mensalão jamais existiu). A segunda é ver, uma vez mais, seu indisfarçável ressentimento em relação a Lula. A recíproca, claro, também é verdadeira. FHC nunca se conformará com a popularidade do sucessor e do amor que os mais pobres lhe devotam, algo que jamais teve ou terá. Lula inveja o prestígio do antecessor junto às mesmas elites intelectuais que sempre lhe lançaram – e por certo continuarão a lhe lançar – as críticas mais duras.
Quando publicou sua análise, Fernando Henrique foi muito atacado (por tucanos inclusive) por aquela que foi considerada uma afirmação infeliz: “Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os ‘movimentos sociais’ ou o ‘povão’, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos”. Saíram a dizer que o príncipe dos sociólogos estava mandando o povão praquele lugar, irrecuperável elitista que é. Embora talvez não tenha escolhido as melhores palavras para expressar seu pensamento, o ex-presidente estava expondo ali o cerne de uma ideia-força que pode, sim, dar rumo à enfraquecida e dividida oposição de hoje.
Tese que pode, com alguma liberdade de interpretação, ser sintetizada assim. Não será com demagogia e promessas irresponsáveis (lembremos de Serra prometendo duplicar o Bolsa Família na campanha de 2010) que o PSDB vai tirar do PT o rebanho eleitoral constituído tanto pela massa de manobra de centrais sindicais agora apelegadas quanto pelos pobres ou ex-pobres desinteressados de qualquer tipo de participação política. O caminho, indica ele, seria eleger como público-alvo preferencial a parcela mais bem informada (ou interessada em se informar) dos beneficiários do processo de mobilidade social em curso no Brasil.
Para ele, será dessa forma que a oposição poderá conquistar a maioria dos brasileiros, buscando a classe C e “toda uma gama de classes médias, de novas classes possuidoras (empresários de novo tipo e mais jovens), de profissionais das atividades contemporâneas ligadas à TI (tecnologia da informação) e ao entretenimento, aos novos serviços espalhados pelo Brasil afora”. Demonstrando estar conectado com a contemporaneidade, ele acrescenta que a internet é o canal mais indicado para essa aventura. “Se houver ousadia, os partidos de oposição podem organizar-se pelos meios eletrônicos, dando vida não a diretórios burocráticos, mas a debates verdadeiros sobre os temas de interesse dessas camadas”, afirma.
Há na análise de Fernando Henrique um recado explícito às oposições que pode ser visto ao mesmo tempo como advertência ao governo. Na sua opinião, “engana-se quem pensar que basta manter a economia crescendo e oferecer ao povo a imagem de uma sociedade com mobilidade social. Esta, ao ocorrer, aumenta as demandas tanto em termos práticos, de salários e condições de vida, como culturais”. Em outras palavras: num primeiro momento, ganhos gerados por Bolsa Família, elevação do salário mínimo e outros programas sociais podem ser suficientes para fazer a glória de um governo. Na etapa seguinte, porém, é preciso mais do que isso. Quem saiu da pobreza, e é hoje grato por isso, tenderá a melhorar o padrão de informação e participação social e cobrar cada vez mais e melhores serviços do Estado.
Vale lembrar um fato, já destacado nesta coluna, pelo qual FHC passa batido: tem um Brasil numericamente expressivo que nutre igual antipatia (ou indiferença) pelo demotucanismo e pelo lulopetismo.
Mas o ex-presidente dá mostras de ter sacado uma coisa que hoje é mais bem compreendida em certos circuitos intelectuais e acadêmicos (tendo à frente figuras como Marcelo Neri, Bolívar Lamounier, Amaury de Souza e outros) do que nos meios políticos: para o bem ou para o mal, os segmentos emergentes da sociedade brasileira, que não se restringem à classe C, são hoje os verdadeiros donos dos destinos do país. É possível que eles não tenham descoberto isso ainda. Tomara que tomem consciência de sua força o quanto antes e ajudem a desmontar as velhas armadilhas que nos impedem de ser uma nação mais justa, mais ética e mais feliz.
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* Jornalista, criou e dirige o site Congresso em Foco. Mais informações na seção Quem somos.
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Fonte: Congressoemfoco