Pedro do Coutto
A nomeação da ex-senadora Ideli Salvatti para o Ministério das Relações Institucionais, cuja tarefa é promover a articulação política entre Executivo e Legislativo, é o novo desastre à vista, o primeiro depois da era Antonio Palocci. Excelente reportagem de José Ernesto Credênio e Maria Clara Cabral, Folha de São Paulo de quinta-feira, deixou clara e provável essa perspectiva. Sem dúvida. Pois ao defender emenda apresentada pelo deputado José Guimarães (PT, Ceará), a ministra afirmou que a possibilidade de sigilo em torno dos preços de obras públicas é prevista na Constituição.
Procurei no texto constitucional e não encontrei tal dispositivo. E nem poderia encontrar. A Lei Maior no capítulo do Poder Legislativo, no qual se encontra o tribunal de Contas da União, ao contrário, estabelece a transparência. Tanto direta quanto indiretamente. Se recorrermos inclusive à visão infra legal de que falava Santiago Dantas, então a iniciativa do deputado José Guimarães torna-se tão absurda quanto grotesca. Basta ler os artigos 70 e 71 da CF para se chegar facilmente à conclusão de que falo.
A Medida Provisória 527, que certamente a presidente Dilma Roussef assinou sem utilizar lente de análise mais possante, ao contrário da atitude que tomou em relação ao Código Florestal, estabelece simplesmente que sejam mantidos em sigilo os orçamentos das obras para a Copa do Mundo de 2014 e para as Olimpíadas de 2016.
Por que segredo? Não estamos tratando da bela canção de Herivelto Martins na segunda metade da década de 40, mas da fiscalização de dinheiro público. A gravação que reuniu o próprio Herivelto, Dalva de Oliveira, antes do divórcio, e Nilo Chagas, nada tem a ver, por exemplo, com o preço de reforma do Maracanã, hoje já na escala de 1 bilhão e 100 milhões de reais. Nem com qualquer outro investimento para as arenas esportivas.
A Medida Provisória 527 altera a lei das licitações públicas, lei 8666/93. Ora a emenda José Guimarães é, para dizer o mínimo, impertinente. Coloco no primeiro plano a visão analítica de Santiago Dantas: se a licitação é pública, evidentemente não pode ela ser fechada. E apenas seus valores em jogo reservados ao Tribunal de Contas da União que, sobre os preços, terá que manter segredo. Estupidez total. Conflito nítido entre o continente e o conteúdo, na análise sempre utilizada pelo acadêmico Hélio Jaguaribe.
Como pode ser tornado opaco um processo que em sua essência tem que ser transparente? Como, em salas fechadas, poderão ser confrontados publicamente, como a Lei Maior estabelece, os preços e as qualificações dos projetos em disputa? A CF sustenta que não pode haver censura na comunicação social brasileira. Aprovada a MP 527, nos termos defendidos por Ideli Salvatti, a Carta Magna, por contradição, torna-se impossível de salvar da contradição absoluta.
Mas vamos ver o que textualmente dizem os artigos 70 e 71. O controle externo (vejam bem) das contas públicas será exercido pelo Congresso nacional com o auxílio do TCU. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize ou administre dinheiro, bens e valores públicos pelos quais a União responda, ou que por elas assuma obrigações pecuniárias. Mais um ponto no elenco a que estou me referindo: as decisões do TCU – parágrafo 3º do art. 71 – terão eficácia de título executivo.
Logo, tais decisões só podem ser públicas. Mas como o poderiam ser se a MP 527, a do segredo, as colocam entre quatro paredes? Como compôs Herivelto e como foi traduzido no Brasil o título de famosa peça de Sartre, Huis Clos. Se tem que haver transparência, os preços não podem ser secretos. Elementar.
Fonte: Tribuna da Imprensa