Carlos Newton
O Brasil ainda tem de caminhar muito até ser considerado democrático, civilizado e transparente. Veja-se o caso da hoje poderosa TV Record. Começou com uma pequena rede de emissoras, praticamente falidas, com uma programação desprezível e sem audiência. O dinheiro para comprá-la foi inteiramente doado pela Igreja Universal do Reino de Deus, todos sabem, isso é público e notório.
Foi até aberto um processo judicial questionando esse relacionamento espúrio entre religião e comunicação, via concessão federal, e o resultado foi espantoso: o Superior Tribunal de Justiça declarou que foi legal, lícita e legítima a compra da rede de televisão, embora tenha sido feita com dinheiros dos fiéis, para beneficiar o líder, bispo Edir Macedo, que é o dono das emissoras, com parcerias de parentes e amigos, como o também bispo Marcelo Crivella.
Como se sabe, as igrejas de qualquer culto têm imunidade tributária garantida pela Constituição Federal. O artigo 150 proíbe aos estados, municípios e governo federal a instituição de impostos sobre “templos de qualquer custo”. De acordo com o parágrafo 4º desse artigo, essa imunidade alcança o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais dos templos.
Esse benefício foi instituído para assegurar a liberdade de crença e o livre exercício de cultos religiosos, mas acabou sendo utilizado para fazer a fortuna de exploradores da fé, sem que as autoridades movessem uma palha para impedir essa contrafação. Aí passou a valer tudo.
Recente reportagem da Folha de S. Paulo revela que a Igreja Universal do Reino de Deus continua mantendo a Record e injetou R$ 482 milhões na TV apenas no ano passado. O valor representa 25% do faturamento da emissora e se refere ao aluguel pela Igreja Universal — uma das maiores seitas pentecostais do Brasil com cerca de 2 mil templos no país e no exterior — de seis horas diárias da programação da Record.
De acordo com a reportagem, os valores injetados na Record pela igreja do bispo Edir Macedo foram detectados por meio de um cruzamento de dados feito a partir do balanço anual da Record e de informações fornecidas pelo mercado publicitário. Nesse balanço, publicado no Diário Oficial Empresarial, em 31 de maio, a Record informa em uma das notas técnicas que conta com parcerias fixas e clientes que lhe fornecem uma receita mensal fixa, sem identificar quem são esses clientes e qual o valor desses contratos. Tudo muito nebuloso.
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PROJETO TENTA CRIAR CRITÉRIOS
Na tentativa de regulamentar a imunidade tributária dos templos religiosos, foi apresentado na Câmara um projeto de lei, de autoria do deputado Audifax Barcelos (PSB-ES), que exerce seu primeiro mandato.
O parlamentar quer o estabelecimento de critérios para que as igrejas tenham isenção de impostos. Entre as propostas está a proibição da distribuição de qualquer parcela de seu patrimônio ou renda, assim como a manutenção da escrituração de suas receitas e despesas em livros “revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão ou meios digitais que atendam ao disposto na legislação pertinente”.
A justificativa do deputado, que é integrante da Frente Parlamentar Evangélica, é que a imunidade vem sendo alvo de polêmicas em torno de sua abrangência, o que torna conveniente a edição de norma sobre a matéria. “Constata-se também que tem sido observada a ocorrência de simulações, onde pessoas não religiosas tentam ocultar a ocorrência de fatos geradores de obrigações tributárias, mediante a utilização indevida de aparato religioso, visando a confundir a autoridade fiscal”, afirma o parlamentar, que é economista, na justificativa apresentada para o seu projeto.
Seria uma excelente oportunidade para estabelecer limites e moralizar a questão. Basta que outros deputados emendem o projeto e nele incluam obrigatoriedades que não possa ser burladas por pastores, seitas e igrejas. Mas quem se interessa?
Para o presidente da Associação Brasileira de Advocacia Tributária (ABAT), Halley Henares Neto, as discussões sobre os limites da imunidade para os cultos religiosos realmente poderiam aprimorat o sistema de tributação. Mas sugere que as mudanças devem levar em conta as características da sociedade brasileira e os benefícios que as instituições imunes representam.
“Por representar um bem significativo para as pessoas, os impostos sobre renda e patrimônio religioso não são arrecadados. Por outro lado, com exceção do direito à vida, não existem direitos absolutos e as regras podem ser ponderadas e relativizadas, sem esvaziar ou impedir as atividades já aceitas pela sociedade”, pondera, sem entrar no verdadeiro mérito da questão, que é o uso indevido de recursos das igrejas para sustentar impérios de comunicação. Mas quem se interessa?
Fonte: Tribuna da Imprensa