Não adianta reconstruir as cidades nas mesmas áreas de risco
Ligia Guimarães
BBC News Brasil
O ecólogo Marcelo Dutra da Silva, doutor em ciências e professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), que vem estudando a mudança climática, afirma que cidades inteiras que existem em áreas de risco agora terão de ser reconstruídas em outros locais mais seguros.
“Não adianta querer reconstruir tudo o que foi destruído nesse evento de agora tentando fazer como era antes. Isso já não dá mais”. A reconstrução do Rio Grande do Sul, diz o acadêmico, precisará ser planejada considerando quais as áreas mais seguras e resistentes às variações climáticas extremas, que vieram para ficar.
MUDAR DE LUGAR – “Cidades inteiras vão ter que mudar de lugar. É preciso afastar as infraestruturas urbanas desses ambientes de maior risco, que são as áreas mais baixas, planas e úmidas, as áreas de encostas, as margens de rios e as cidades que estão dentro de vales”, diz.
“Tem várias cidades inteiras que estão em região de vale: áreas sujeitas a receber grandes cargas de água em um evento extremo como esse. E aí não adianta reconstruir aquela cidade dentro do vale, porque ela vai continuar ameaçada. Porque os eventos climáticos vão se repetir”, afirma.
Ele cita o exemplo de Muçum, cidade no Vale do Rio Taquari, afetada por inundações três vezes durante 2023 – a primeira em junho, que vitimou 16 pessoas no estado; em setembro, quando 53 pessoas morreram em decorrência da passagem de um ciclone extratropical; e em novembro, quando mais de 700 mil pessoas foram afetadas por chuvas torrenciais.
TRAGÉDIA REPETIDA – “Temos exemplos de cidades que foram atingidas em 2022, 2023, e as pessoas perderam as coisas pela quarta vez, como Muçum, Lajeado. Algumas pessoas já estão tão desalentadas que já dizem em entrevistas que nem compraram mais móveis, mais carro, porque sabem que vão perder de novo”, diz, destacando que nesse caso, a falha do poder público foi permitir que as famílias reconstruíssem suas vidas no mesmo lugar, sem oferecer planos de moradia mais seguros.
“Esse novo plano de reconstrução precisa vir com um plano de adaptação às mudanças climáticas”, afirma o especialista.
O acadêmico, que defende que todas as cidades atingidas revisem seus planos diretores antes de reconstruir tudo o que foi perdido, diz que “não adianta mais querer construir, ou reconstruir tudo o que foi destruído nesse evento de agora tentando fazer como era antes”.
ESTIMULAR REVISÃO – Para o professor, tanto governo estadual quanto federal poderiam estimular tais revisões, talvez colocando-as como requisitos para que as prefeituras tenham acesso aos recursos para financiamento da reconstrução.
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), já declarou que o Estado vai precisar de um “plano Marshall”, fazendo referência ao plano de reconstrução na Europa após a Segunda Guerra Mundial.
O plano de reconstrução das cidades, alerta o pesquisador, não poderá mais se basear em edificações nas áreas baixas, planas e úmidas e ambientes de margem de rios, lagos e córregos, como acontece em muitas cidades da costa, como Pelotas, e mesmo em bairros de Porto Alegre próximos ao Lago Guaíba.
OLHAR TÉCNICO – “O olhar daqui para a frente precisa ser mais técnico, e pensar em adaptar a cidade para situações tão extremas”.
“Críticos vão dizer que estamos preocupados só com a biodiversidade, e argumentam que é preciso pensar na vida das pessoas, no desenvolvimento. Se eu estivesse só preocupado com a biodiversidade tudo bem, mas nem estamos mais falando disso, neste caso”, afirma. “Estamos falando de sobrevivência, porque significa você colocar lá um empreendimento e ele ficar debaixo d’água.”
Outro aspecto importante da reconstrução do Estado, que será longa e árdua, será investir em estruturas mais preparadas para eventos climáticos. “Vamos ter que reconstruir, sim, só que agora pensando em pontes que são muito mais elevadas e robustas, estradas que são muito mais preparadas e resilientes a processos tão extremos de presença de água”.
FLUIR A ÁGUA – Em outra frente, o pesquisador diz que é preciso investir em formas menos centralizadas de construir as cidades, de modo a permitir que a água flua com mais facilidade para o oceano. “Precisamos permitir que a água passe, que a água flua, em vez de tentar barrá-la. Temos que recuperar, por exemplo, a vegetação natural nas áreas de preservação permanente e de produção”.
Outra recomendação, considerando que os eventos climáticos extremos também prevêem períodos de intensa seca, é aproveitar os períodos de chuva para armazenar água em sistemas de açudes ou outros reservatórios hídricos.
“Boa parte dessa água toda chovendo agora está simplesmente sendo perdida e em algum momento vai fazer falta, porque está chovendo muito agora e vai chover muito pouco depois”. Convencer a população de que a nova realidade climática veio para ficar, diz, é parte importante do trabalho de evitar novas tragédias ambientais.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – A matéria de Ligia Guimarães é uma aula de política urbana. Deveria ser manchete em todos os jornais. (C.N.)