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domingo, julho 03, 2022

Conferência em Genebra não irá resolver problema dos robôs "assassinos"

 




A Suíça está entre os líderes mundiais em robótica e inteligência artificial, ambos campos de pesquisa cujo conhecimento pode ser utilizado tanto para fins civis como militares. Também em pesquisa de campo, na qual há uma ausência de controle internacional.

Em março de 2020, o governo líbio empregou na guerra civil um quadricóptero Kargu-2, de acordo com um relatório da ONULink externo. Este drone "caçou" um alvo humano sem ser instruído a fazê-lo. Foi a primeira vez na história que uma arma letal autônoma – também chamada de robô "assassino" – foi usada.

Esses sistemas de armas, desenvolvidos com a ajuda da robótica e de inteligência artificial, não requerem manejo humano. Drones autônomos, por exemplo, são programados de modo a voar para uma posição específica, selecionar um objeto e matar o alvo sem qualquer conexão a um controlador humano.

Como mostra o incidente na Líbia, os robôs assassinos também podem assumir vida própria. Ao contrário das armas de destruição em massa, não existem tratados ou regimes específicos que proíbam ou proscrevam essas armas e tecnologias internacionalmente.

Como as armas de destruição em massa são mantidas sob controle

Armas de destruição em massa são armas com maior poder destrutivo do que as armas convencionais, tais como as armas nucleares, biológicas e químicas (armas NBQ). Elas podem matar um elevado número de pessoas e destruir o meio ambiente em um espaço de tempo muito curto.

No âmbito das armas de destruição em massa, existem tratados de desarmamento e não-proliferação que são vinculantes ao abrigo do direito internacional, como o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, a Convenção sobre Armas Biológicas ou a Convenção sobre Armas Químicas. Destinam-se a impedir a proliferação de armas nucleares e a proscrever as armas biológicas e químicas em todo o mundo.

Ademais, existem quatro regimes politicamente obrigatórios nos quais os respectivos estados participantes expandem e harmonizam seus controles de exportação: O Grupo de Fornecedores Nucleares, o Grupo da Austrália, o Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis e o Acordo de Wassenaar. A Suíça participa em todos os quatro.

As opiniões divergem sobre se isso deve ser avaliado como uma lacuna. Em resposta a uma pergunta da swissinfo.ch, o ministério suíço das Relações Exteriores (EDA) escreveu que o direito humanitário internacional se aplica a todas as armas e tecnologias, incluindo as novas, tais como os sistemas de armas autônomos. "Portanto, não há vácuo para o uso de robótica, inteligência artificial e outras tecnologias digitais em conflitos armados".

Todavia, nem todos na comunidade internacional pensam assim. "Alguns estados acham que a legislação existente não é suficiente", diz Laura Bruun, especialista em novas tecnologias militares e de segurança do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz, em Estocolmo.

Embora o direito humanitário internacional se estenda a todos os tipos de armas, a utilização de tecnologias militares controladas por IA não está explicitamente regulamentada. Segundo Bruun, isso cria um vácuo normativo, dependendo de como a lei é interpretada.

As regras da União Europeia ou da UNESCO sobre a utilização ética de IA referem-se a casos de uso civil, e não militar. Com o progresso das novas tecnologias como a inteligência artificial, torna-se cada vez mais difícil demarcar o potencial civil e militar de um desenvolvimento. E o que agrava ainda mais o processo de regulamentação e controle é o fato de que essas tecnologias são muito fáceis de disseminar, no caso de software de inteligência artificial (IA) até mesmo por e-mail ou código aberto.

"É óbvio que o direito humanitário internacional se aplica à utilização de tais armas, mas são necessárias novas regras de direito internacional que tenham em conta os novos tipos de tecnologias", diz a pesquisadora de segurança e especialista em direito internacional Elisabeth Hoffberger-Pippan, do Instituto Alemão de Política Internacional e Segurança, sediado em Berlim.

Encontro em Genebra

É por isso que desde 2017 vem a ONU, em Genebra, tratando de negociar uma proibição aos sistemas de armas autônomos. Em princípio, a Suíça apoia essas negociações porque, embora rejeite uma proibição total, é a favor da regulamentação, controle e restrição.

No ano passado, a missão suíça junto a ONU formulou uma proposta para regulamentar armas autônomas letais, associando-se ao grupo de países que pressiona por medidas juridicamente vinculativas. Mas não houve avanço: a Rússia rejeita quase todas as propostas de regulamentação.

Em março, devido à guerra em curso na Ucrânia, Moscou boicotou inclusive a mais recente rodada de negociações. Mas Israel, os EUA, a Turquia, o Reino Unido e a Coreia do Sul também não querem qualquer regulamentação obrigatória dos sistemas de armas autônomos, pois entendem que o direito humanitário internacional é suficiente para o manuseio responsável dessas armas.

A última reunião do grêmio terá lugar em julho. Os especialistas não esperam grandes progressos. À surdina, os países já falam de um fracasso das negociações de Genebra. Quando questionado pela swissinfo.ch, o porta-voz do EDA respondeu que, por enquanto, não havia acordo entre os estados sobre um instrumento internacional.

"É provável que nem todas as nações vão querer continuar apoiando o processo de Genebra porque simplesmente não vale a pena’’, diz Hoffberger-Pippan. Ela espera, portanto, que sejam procurados órgãos alternativos a fim de negociar regras sobre sistemas de armas autônomos.

Segundo Stephen Herzog, do Centro de Pesquisa da Segurança, o fato de a Suíça, como a maioria dos países, não almejar a proibição completa de armas autônomas tem razões econômicas e diplomáticas. A Suíça teme o impacto disso em suas exportações. Especialmente nos campos da robótica e da inteligência artificial, a Suíça se destaca como um dos países líderes no mundo.

Para Hoffberger-Pippan, semelhante medo só pode ser compreendido em parte. No momento, trata-se principalmente de regulamentar a utilização de sistemas de armas autônomos conforme o direito internacional, e não ainda de controles de exportação propriamente ditos.

Por outro lado, muitos países receiam que uma proibição integral possa dificultar a pesquisa nessa área. "Os investidores diriam: por que dar dinheiro se as invenções não podem de modo algum ser usadas", salienta Hoffberger-Pippan. Em particular para os Estados Unidos este é definitivamente um desafio, mas também para muitas outras grandes potências militares.

Os EUA defendem o princípio de que as armas autônomas devem ser testadas antes de proibi-las. Isso tornaria possível descobrir se essas armas podem não ser de todo úteis. Algumas nações são de opinião que as armas autônomas trazem até vantagens: pelo menos do lado de quem recorrer a essas armas, pode evitar mortes e reduzir os custos de pessoal.

Em 2017, o governo suíço também se opôs a uma inteira proibição por razões semelhantes, declarando que isso poderia levar a uma proibição de sistemas potencialmente úteis, por exemplo, para evitar danos colaterais à população. Por tal motivo, diz Bruun, a discussão sobre a regulamentação das aplicações civis e militares deve andar de mãos dadas. "Reconhecer que a distinção entre os dois usos está tornando-se cada vez mais difusa seria um primeiro passo para controlar a tecnologia".

Hoffberger-Pippan observa uma mudança de paradigma em relação aos drones: enquanto costumavam ser vistos de maneira muito crítica, estão cada vez mais encontrando aceitação internacional, mesmo entre a população.

Na guerra atual, por exemplo, as tropas ucranianas vêm empregando em grande escala tanto drones civis quanto militares, conseguindo assim uma vantagem inesperada sobre a Rússia.

A política suíça se esforça em manter a neutralidade do país diante de uma política mundial cada vez mais unilateralista.

Embora a utilização de drones na luta contra terroristas continue a ser uma questão legal e ética extremamente problemática, e a guerra de agressão russa na Ucrânia seja comparável apenas até certo ponto, este exemplo mostra que os drones não são exclusivamente passíveis de proscrição. Talvez haja também usos razoáveis para sistemas de armas que atuam de forma autônoma.

"A mudança dos tempos traz uma modernização das forças armadas e, portanto, mais compreensão para com a mecanização", afirma Hoffberger-Pippan. Portanto, é bem possível que a opinião pública em relação às armas autônomas também mude.

O que são bens de uso duplo?

Quando produtos ou tecnologias podem ser empregados tanto para fins civis quanto militares, falamos de uso duplo. O problema: uma invenção como a tecnologia nuclear pode trazer benefícios civis à humanidade sob a forma de usinas nucleares (embora estas também sejam controversas) ou tratamentos médicos, mas também pode destruir vidas sob a forma de bombas. Proibir completamente a tecnologia e a pesquisa correspondentes faz, portanto, pouco sentido, mas é preciso lidar com elas de forma responsável.

O Acordo de Wassenaar é uma aliança de estados com o objetivo de evitar o acúmulo desestabilizador de armas convencionais, bem como de bens de uso duplo relacionados.

SWI

Discurso eleitoral contra comunismo não esta mais tendo efeito na America Latina, diz especialista




Vergara diz que a direita latino-americana tem que deixar de acreditar que é possível fazer política por meio da nostalgia 

A direita latino-americana tem que parar de fazer política por nostalgia se quiser ganhar as eleições presidenciais novamente.

É o que pensa Alberto Vergara, cientista político da Universidade do Pacífico em Lima, no Peru, ao avaliar o que muitos descrevem como uma “onda esquerdista”, movimento que ele acredita estar invadindo a região porque as pessoas estão cansadas da “nova direita” que governou recentemente em alguns países.

Com a vitória de Gustavo Petro na Colômbia em 19 de junho, foi confirmada uma tendência de candidatos de esquerda na América Latina, precedida pelos triunfos de Xiomara Castro em Honduras, Pedro Castillo no Peru e Gabriel Boric no Chile.

A chamada onda esquerdista surge após vários partidos de direita governarem essas regiões.

Houve algum desgaste na direita? As pessoas se cansaram? Ou seus programas são pouco atraentes?

Vergara, que é autor de vários livros e ensaios sobre política latino-americana, fala em entrevista à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) sobre os motivos pelos quais a “nova direita latino-americana” não é mais atraente para muitos setores da região.

Além disso, explica como e por que a esquerda recuperou espaços que havia perdido e o que se pode esperar dos novos governos de esquerda na região.

BBC Mundo – O triunfo de Petro na Colômbia confirma que, pouco a pouco, a América Latina continua voltando à esquerda. A que se deve essa mudança?

Alberto Vergara – Existem duas coisas diferentes. Uma é que na região existe e tem existido um clima anti-incumbência, uma rejeição dos que estão no poder. Isso mostra que as pessoas estão cansadas.

Também mostra que as pessoas querem experimentar outras opções e querem uma mudança.

Em Honduras, por exemplo, as pessoas ficaram fartas do governo de Juan Orlando Hernández e entrou Xiomara Castro, que encararam como a mudança. Ele ganhou porque estava na esquerda? Sim, mas as pessoas também estavam cansadas de Hernández e queriam algo alternativo e lá estava ela.

Diante desse espírito contra o status quo, acredito que a direita se apoiou em um discurso basicamente dos tempos da Guerra Fria, anticomunista, como forma de fazer política.

Diante disso, a esquerda interpretou melhor a necessidade de mudança e oferece um projeto com o qual você pode concordar ou não, mas que é um projeto do início ao fim, enquanto a direita parece ter ficado sem projeto.

Então temos de um lado uma direita que tem dificuldade em oferecer algo novo e do outro uma esquerda que acaba oferecendo algo que ressoa mais com a mudança.

BBC Mundo – Por que você acha que não consegue desenvolver um plano? O que está acontecendo com a direita latino-americana hoje?

Vergara – Acredito que a direita se transformou e é diferente daquela direita após a queda do Muro de Berlim.

Aquela era uma direita associada às reformas neoliberais, ao consenso de Washington e à vontade de liberalizar os mercados, internacionalizar a economia e administrar a macroeconomia da forma mais ortodoxa possível.

Isso foi se esgotando como retórica e projeto. De fato, a onda de governos de esquerda no início dos anos 2000 veio para tentar encerrar essa era neoliberal.

Mas nos últimos 10 anos tem surgido uma direita mais radical que a direita economicista do passado.

A preocupação central dessa nova direita já não é tanto a economia, mas o que eles chamam de batalhas culturais.

A direita atual considera que a do passado, mais neoliberal e centrada na economia, é uma “direita covarde” e que eles, representantes da direita mais radical, estão travando as batalhas ideológicas e culturais que são as questões que importam, segundo eles.

BBC Mundo – Então você acredita que as pessoas estão cansadas dessa direita mais radical?

Vergara – Essa nova direita que é mais cultural, muito ligada a redes e circuitos que compartilham teorias da conspiração, um pouco na órbita do trumpismo, teve seu momento. Principalmente com a eleição de Jair Bolsonaro.

A eleição de Bolsonaro talvez tenha sido o momento de maior sucesso para essa direita mais conservadora e antiliberal. Isso deu a eles a sensação de que você pode ter sucesso com plataformas reacionárias.

No entanto, não é que tenha deixado de ter importância. Eles simplesmente pararam de ter vitórias presidenciais equivalentes.

A direita que apoiou fortemente a candidatura de Kast no Chile ou por trás de Fujimori no Peru acabou fracassando.

Na verdade, na Colômbia falhou ainda mais. María Fernanda Cabal, a política de extrema-direita da Colômbia, nem sequer ganhou as primárias do Uribismo.

A direita radical vem perdendo relevância.

Ainda tem seguidores muito fiéis e ativos nas redes, mas acho difícil para eles atrair mais pessoas fora desses circuitos.

Com essas últimas derrotas, o racional seria que a direita latino-americana entendesse que não tem conseguido êxito com esse rol conservador, autoritário e orgulhosamente antiprogressista.

BBC Mundo – O discurso “não votem neles porque vão transformar o país em outra Venezuela” não é mais convincente?

Vergara – A direita na América Latina tentou durante anos dissuadir as pessoas de votar na esquerda acusando-a de comunista, mas essa tática não funciona mais, pelo menos não para ganhar as eleições presidenciais.

Eu diria que ainda funciona parcialmente, mas não como antes.

Na Colômbia, Rodolfo Hernández obteve 47% dos votos: não é que tenha ficado completamente arrasado.

Ainda há um importante grupo da população que está genuinamente assustado com a chegada de um governo que leve o país a algo semelhante ao que Chávez fez com a Venezuela.

Mas, efetivamente, o discurso não obteve êxito recentemente em Honduras, no Chile e no Peru.

As pessoas ainda temem essa opção, mas não votam apenas por medo, mas também por necessidade de mudança.

Os eleitores sabem que há nuances e que as opções não são apenas o status quo ou a Venezuela.

Eles sabem que qualquer tentativa alternativa não será necessariamente o desastre venezuelano.

BBC Mundo – Falam de uma nova onda de esquerda que está “expandindo por toda a América Latina”. Você acha que vai durar e continuar chegando a outros países da região?

Vergara – Não acho que vai durar tanto. Na América Latina de vez em quando fala-se de uma onda da esquerda, depois vem a onda da direita, como quando Sebastián Piñera, Bolsonaro, Pedro Pablo Kuczynski e Guillermo Lasso venceram.

E agora estaríamos virando à esquerda novamente.

O mais provável é que teremos que nos acostumar com essa saudável alternância democrática entre direita e esquerda, em vez de ter ondas duradouras.

Vários estudos de ciências políticas demonstram que em geral não houve transformações profundas nos valores políticos da sociedade e que as crenças políticas do povo não se moveram para a direita ou para a esquerda.

BBC Mundo – O que a esquerda deveria fazer para atrair novamente o eleitorado?

Vergara – A direita latino-americana tem que parar de acreditar que a política pode ser feita na região a partir da nostalgia.

É ridículo replicar o “tornar a América grande novamente” de Trump na América Latina. Os latino-americanos sabem que as melhorias na região sempre foram construídas aos poucos.

Não havia momento ideal, um Éden, ao qual retornar.

Quando Kast, no Chile, fez campanha com comentários abertamente machistas, ou quando o próprio Rodolfo Hernández o fez na Colômbia, eles estavam falando para um continente no qual as mulheres hoje são muito mais fortes, mais livres e autônomas e que não querem voltar ao passado.

Ouvir um candidato que quer voltar no tempo é uma bobagem.

O discurso abertamente sexista de Kast permitiu que um candidato como Boric obtivesse cerca de 70% dos votos de mulheres com menos de 30 anos.

A direita latino-americana precisa reconsiderar por que não consegue convencer as pessoas. Eles devem entrar em uma fase de avaliação e transformação no futuro.

BBC Mundo – O que esperar de Chile, Peru e Colômbia após a vitória da esquerda nesses países?

Vergara – Acho que estão em situações diferentes. No Chile tenho a impressão de que a Assembleia Constituinte dominada pela nova esquerda desperdiçou uma oportunidade talvez única de renovar o país ao impor uma agenda muito ativista e muito distante do cidadão comum.

Se o projeto constitucional acabar rejeitado, será um grande problema para o presidente Boric e para a esquerda latino-americana.

No caso peruano, chegou ao poder um presidente que é uma rara combinação de inexperiência absoluta com corrupção significativa e que deixa o país à deriva, sem nenhum projeto.

Castillo está simplesmente tentando sobreviver enquanto o país vai pelo ralo.

Petro é um grande líder político, com muita experiência. Foi prefeito de Bogotá e foi um senador muito importante na Colômbia. Tem uma longa trajetória e vem mudando, em questões econômicas, por exemplo, e vem desenvolvendo uma preocupação com energia verde e ecologia.

Politicamente, tudo indica que ele abandonou a reivindicação de uma nova assembleia constituinte para a Colômbia.

Parece ser alguém da esquerda que vem moderando. Embora todos saibamos que há uma distância entre dizer e fazer.

BBC Mundo – O que essa virada à esquerda significa do ponto de vista internacional e para as relações com os Estados Unidos e o resto do mundo?

Vergara – As relações com os Estados Unidos ou com a China não são marcadas pelo ciclo eleitoral, mas sim por processos um pouco mais longos.

Tenho a impressão de que os Estados Unidos perderam relevância na região. Parece não ter muito a oferecer, independentemente de governos de esquerda ou de direita.

A Colômbia, que sempre foi aliada dos EUA, não vai deixar de ser aliada porque Petro venceu.

Por outro lado, Bolsonaro, sendo um governo de direita, não tem nenhuma simpatia pelo governo Biden e abomina os democratas e suas agendas progressistas.

POR NORBERTO PAREDES 

BBC Brasil  / Daynews

Brasil perdeu a trajetória de crescimento que tinha conquistado, diz diretor da Cepal




O diretor do escritório da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) no Brasil, Carlos Mussi

Por  Marcia Carmo, De Buenos Aires

O Brasil perdeu a trajetória de crescimento econômico por falta de investimentos tanto por parte do Estado como do setor privado, diz o diretor do escritório da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) no Brasil, Carlos Mussi.

Economista com mestrado pela PUC do Rio de Janeiro, Mussi aponta para o que chamou de "indecisão da sociedade brasileira": não distribui a riqueza nem define para onde crescer. "Vamos investir mais em indústria e mais em serviço? Ainda não desenhamos como vamos crescer [...] e como as gerações futuras terão melhores oportunidades do que as atuais", afirma.

A Cepal é uma comissão da Organização das Nações Unidas criada para promover as relações econômicas entre os países da América Latina e Caribe e o resto do mundo.

BBC News Brasil - Qual é a sua opinião sobre a situação social do Brasil hoje?

Carlos Mussi - O Brasil passou por uma grande recessão em 2015 e 2016. Isso implicou uma revisão da trajetória de desenvolvimento ou crescimento do Brasil. Uma revisão da ação do Estado, dos programas de transferência [de renda], da evolução do emprego, da renda etc. E, consequentemente, nós regredimos em vários indicadores sociais nos quais estávamos evoluindo positivamente desde o início do século.

Hoje a situação social brasileira está influenciada por vários aspectos da pandemia, mas isso também decorre do fato de que não crescemos há quase dez anos. Portanto, renda, emprego e a própria mobilidade social têm sido muito dificultada.

O Brasil, digamos, perdeu a trajetória de crescimento desde "a grande recessão", com a pandemia e neste mundo pós-pandêmico que estamos vendo. Isso inclui, por exemplo, a elevação da taxa de juros americana, que são as maiores taxas desde 1994.

BBC News Brasil - Apesar do contexto internacional e deste histórico recente que o senhor resumiu, seriam apenas esses os fatores que respondem pela realidade de o Brasil ter hoje uma situação social que faz lembrar a época pré-Plano Real? Ou as medidas internas não estão acompanhando as necessidades?

Mussi - Primeiro, acho que o Brasil parece que perdeu ou tem dificuldade de voltar a crescer. Isso é uma questão da sociedade brasileira. Ou seja, de investir, de expandir, de aumentar a produtividade, ganhar competitividade. Segundo, a sociedade brasileira mostrou que para ela é muito importante a questão da redistribuição de renda. O que nos aconteceu nos primeiros 15 anos desse século. Mas isto tem custos. A ação do Estado.

Mas, principalmente, quando o setor privado não investe, quando o setor público não investe...E não há incentivo para que as pessoas, as camadas sociais se realizem, vamos dizer, em termos profissionais, de renda, de emprego…Nos anos 1970 crescer abaixo de cinco por cento era um horror pro Brasil. Tivemos a crise externa, tivemos a possibilidade de voltar a crescer depois do real e especialmente no ciclo de commodities. Mas perdemos essa trajetória.

BBC News Brasil - O Brasil perdeu a trajetória de crescimento?

Mussi - É, [perdeu a trajetória] de uma sociedade que quer crescer, expandir, gerar emprego, renda, fazer a distribuição, gerar novos setores. Investir em ciência e tecnologia. Quer dizer, hoje estamos em um momento em que o setor privado está muito incerto, por causa também da ação do Estado, e o Estado não tem mais aquela liderança em investimento em infraestrutura que teve no passado.

BBC News Brasil - O senhor acha que tem a ver com o contexto atual do Brasil?

Mussi - Acho que tem a ver com uma certa indecisão da sociedade brasileira que vai além do objetivo de redistribuir, mas também por onde crescer. Vamos investir mais em indústria e mais em serviço?

A agricultura respondeu de uma certa forma até muito positivamente. Mas o que o Brasil deseja em termos de oferta, em termos de produtos, de competitividade internacional? Como fazer para administrar sua demanda?

Há o papel do Estado, há a necessidade de não gerar desequilíbrios macroeconômicos e há também a ideia de sustentabilidade. Uma sustentabilidade ambiental, econômica, no sentido de que você não pode ter setores eternamente subsidiados ou preferidos, decorrente de renúncia fiscal ou desequilíbrios estruturais - a Previdência, a estrutura de salários do setor público e uma certa eficiência… Por exemplo, na questão ambiental a palavra que eu gostaria muito que o Brasil debatesse é a sua governança dos recursos ambientais.

BBC News Brasil - Na sua visão, o âmbito social mudaria dependendo do resultado eleitoral?

Mussi - O social tem desde renda, emprego e até aumento de salário, usando o [patamar de] emprego decente da OIT (Organização Internacional do Trabalho), a mobilidade social, de produtividade para os salários, de uma forma não inflacionária. Essa é a parte econômica.

Mas o social também tem, digamos assim, os indicadores clássicos sociais, de saúde, de educação, o IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] do Pnud [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento]. E o social também tem a questão distributiva em que entra um pouco a renda e tem a política.

E aí entra a questão de uma certa coesão social para resolver os problemas políticos. Ter um certo consenso sobre quais as opções do país ou de como o Estado deve atuar. E de tal forma que mantenha o setor privado incentivado para expandir seus investimentos. E o setor privado é tanto o nacional quanto o externo.

BBC News Brasil - O senhor vê perspectivas de melhora?

Mussi - Primeiro, temos a questão conjuntural da pandemia, que fez uma revisão de formas de trabalho, das formas de renda. Ela criou um hiato grande entre oferta e demanda e isso reflete um pouco a questão da inflação. E isso é algo mundial. Segundo, nós ainda não desenhamos como podemos crescer, como vamos manter a expansão da perspectiva de que as gerações futuras terão melhores oportunidades do que as gerações atuais.

BBC News Brasil - Um levantamento recente da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mostra que a economia global vai crescer cinco vezes mais do que a brasileira. Onde o Brasil está errando para estar há tanto tempo com crescimento tão baixo?

Mussi - Primeiro, acho que aí entra a questão fiscal. Ou seja, o papel do Estado, que, especialmente aqui no Brasil, é um grande agente econômico. Ele capta sempre um terço via impostos. Gasta cerca de 40% do PIB [Produto Interno Bruto]. O consumo estatal é algo como 20% do PIB. Ele paga juros de 4%, 5% do PIB e tem uma dívida em torno de 80% ou 90% do PIB.

E tem uma ação que o Estado brasileiro deixou de fazer, que é investir. Nem o Estado está investindo o básico e nem o setor privado frente às incertezas do Estado… O investidor privado tem sempre este sócio oculto que é o Estado. Ele tem que pagar impostos, ele quer saber se a economia vai crescer para ter demanda e qual vai ser o patamar dos juros que ele vai ter que pagar para financiar seu investimento ou até ver o custo de oportunidade.

O Brasil sempre foi muito oito ou oitenta. Então, para mostrar que havia um certo desejo de ter uma trajetória sobre os gastos, criou-se o teto de gastos.

BBC News Brasil - A questão dos combustíveis é uma das mais debatidas hoje no país...

Mussi - Olha, o projeto econômico do ministro [Paulo] Guedes era de um liberalismo que não foi muito bem discutido com a sociedade e com o Congresso. Frente à pandemia, ele teve que atender [as necessidades] em vez de fazer o projeto dele. Não estou dizendo se está certo ou errado, mas que ele tinha uma proposta…

Nós estamos com o principal agente da economia [o Estado] em reforma, mas ela não está desenhada ou concluída. As questões de urgência, como a do combustível, ficam como aquele "já que... então, vamos fazer isso". Mas aí a reforma inicial do projeto se torna totalmente difícil de se ver.

"A situação social brasileira está influenciada por vários aspectos da pandemia, mas isso também decorre do fato de que não crescemos há quase dez anos. Portanto, renda, emprego e a própria mobilidade social têm sido muito dificultada", diz Carlos Mussi

BBC News Brasil - O Brasil mantém uma vulnerabilidade na parte estreatégica?

Mussi - Acho que há ainda algumas coisas em termos da vulnerabilidade do papel do Estado. Ou seja, qual é a nossa política de energia? Qual é a nossa política de educação? No pós-pandemia, como vai ser a saúde? Estamos precisando de redefinições sobre ciência, tecnologia e inovação. Como vamos refazer as cidades, o transporte público.

BBC News Brasil - Não existe hoje o risco de uma herança fiscal ainda mais pesada no próximo ano?

Mussi - No Brasil, a herança vem da época da colônia. Herança é algo que todo governo diz que recebe. Então, o atual governo, se reeleito, ou uma outra administração, vai ter anos difíceis. Primeiro porque a inflação, no curto prazo, dá uma certa melhora nos resultados fiscais porque aumenta a arrecadação e você segura, você controla os gastos.

O governo no próximo ano vai ter que lidar com questões das reformas... A reforma tributária é um item importante tanto para uma visão mais liberal como para uma visão mais à esquerda. Os benefícios dos servidores públicos, como fazer? E depois tudo isso acaba na evolução da dívida e como os mercados vão sustentar a renovação e a situação da dívida pública brasileira.

Além disso, o Brasil não é uma ilha, e o que vier de condições do mundo também acho que será difícil. Ainda está muito incerto devido à situação internacional.

BBC News Brasil - Que medidas são importantes, na sua visão, até para alavancar o crescimento?

Mussi - Eu acho que, primeiro, uma discussão sobre as metas fiscais que o governo tomará como base. Segundo, o empenho do governo em recuperar os níveis de investimentos públicos. Podem ser investimentos diretos, investimentos através de parcerias público-privadas. São vários mecanismos. Será preciso discutir uma política de investimentos públicos e como será feita.

BBC News Brasil - Dados recentes apontam que 33 milhões de pessoas passam fome ou passaram fome em algum momento no Brasil. O que se pode fazer para reduzir a pobreza no país?

Mussi - Pobreza você tira basicamente por emprego e renda. É preciso gerar emprego e renda. Já as políticas de fome... entra muito renovar ou expandir as atividades brasileiras. Eu vejo que a iniciativa da merenda escolar, dos programas de alimentação, a questão do Auxílio Brasil... A inflação está corroendo muito esses valores e tem que ver como calibrar isso.

BBC News Brasil -Quais seriam as suas sugestões?

Mussi - Hoje, primeiro seria "horizontalizar" ao máximo o Auxílio Brasil no sentido de abranger o maior número de pessoas. A gente teve uma experiência assim, durante a covid, que foi o auxílio a R$ 600 reais. Isso, no papel, eliminava a extrema pobreza, pelo menos. A merenda escolar, por exemplo, poderia ser não só para a época escolar, mas para o ano inteiro. Mas são políticas de emergência.

BBC News Brasil - A previsão, então, é de muito trabalho para o governo no próximo ano?

Mussi - É, ele vai ter que apagar o fogo, reconstruindo a casa. 

BBC Brasil

O Brasil teria muito a ganhar se evitasse os erros de Trump e de seus críticos




Bolsonaro está caminhando por uma estrada cheia de armadilhas. Muitos dos seus ladrilhos são muito parecidos com aqueles que fizeram parte da estrada do desastre de Donald Trump.

Por Leonardo Coutinho 

Em janeiro de 2020, o então presidente dos Estados Unidos estava em seu melhor momento. A economia americana estava no auge e o povo estava feliz. A reeleição estava garantida. Sem ter o que criticar com consistência, seus opositores tentavam convencer o mundo de que Donald Trump empurraria o mundo para uma catástrofe nuclear por ter autorizado um bombardeio que matou no Iraque aquele que era o principal nome do aparato de terrorismo de Estado promovido pelo Irã, o general Qasem Soleimani.

Lá do outro lado do mundo, na China, o vírus da Covid-19 ainda era um desconhecido dos políticos (e estranhamente possivelmente também da Inteligência). Veio a pandemia e com ela a sucessão de erros de Trump. O primeiro deles foi desdenhar da peste em público, para alentar a base histérica, e praticamente esconder o trabalho que ajudou o mundo a obter as vacinas em tempo recorde.

Depois veio o caso de George Floyd, vítima de omissão de socorro por parte de um policial e que virou pretexto para tocar fogo nas ruas e emparedar ainda mais o governo. Os Estados Unidos pegaram fogo. Já que o mundo não ia acabar naquela tal guerra com o Irã, resolveram então tocar fogo nos racistas, fascistas e na história.

Trump parece que não havia entendido nada. Apertou o passo rumo ao abismo em uma estrada pavimentada com esmero pelas teorias conspiratórias do QAnon – uma evidente operação psicológica de origem estrangeira e possivelmente estatal.

A confusão entre verdades, hipóteses, mentiras deslavadas e manipulação foi a receita que levou o presidente Trump a pisar em todas as cascas de banana pelo caminho. A maior de todas foi o seu discurso derradeiro que desaguou na marcha rumo ao Capitólio e a sua invasão – claramente facilitada por alguém interessado no cenário de caos. Mas o que importa?

Trump passou quatro anos de governo sendo chamado de fascista, nazista, antidemocrático, golpista e qualquer outra coisa do gênero dos xingamentos políticos possíveis. Aguentou bem. E para mostrar que estava certo frente a seus críticos, dava passos mais largos ainda na estrada – a mesma citada dois parágrafos atrás – rumo ao abismo.

O presidente republicano foi derrotado, mas saiu gigantesco das eleições. Com muito mais votos que na eleição anterior e como símbolo de um movimento. Mas não entendeu nada. Preferiu se jogar no abismo de 6 de janeiro, legitimando tudo aqui que diziam que ele era.

Trump encolheu. Virou vexame. Há quem acredite que ele voltará à Casa Branca, mas há muito mais gente disposta a enviá-lo para prisão. Nesta semana, os movimentos no Congresso dos Estados Unidos mostraram que isso não é uma teoria. A cada dia surgem novas peças (algumas bem questionáveis, mas isso importa?) que servem para justificar o seu indiciamento.

Muitas das loucuras de Trump e sua base furiosa foram reações a mais torpeza do antitrumpismo gratuito. Eram desmerecidos. Desqualificados. Quase desumanizados. Afinal, eram a cesta de deploráveis, como chegou a ser definido por Hillary Clinton na campanha eleitoral. Trump e sua turma eram feitos para apanhar, eram bons de cuspir.

No Brasil, é gado. É assim que os bolsonaristas são chamados. E foi banalizado. Com uma grande dose de boa vontade, pode-se dizer que a ofensa tem como origem o comportamento bovino da base que segue o berrante do líder. Mas, com uma gota de honestidade, é preciso reconhecer que é a mais pura desumanização.

Todos os grandes jornais e revistas brasileiros endossam isso. Os termos aparecem em colunas, caricaturas e charges. Nesta semana, a Folha deu um passo além e jogou as mulheres bolsonaristas na cesta dos deploráveis de Trump. Fez uma série de analogias sobre a infelicidade sexual e afetiva do grupo e pintou o presidente Jair Bolsonaro, com sua macheza rudimentar, como uma espécie de consolo que preenche o vazio dessas senhoras suburbanas e que dão duro em máquinas de costura, atrás de balcões ou passando pano pelo chão.

Olhando para os Estados Unidos e para o Brasil, é impossível não ver semelhanças.

O resultado da compostagem da intolerância disfarçada de defesa da democracia é um ponto de fricção constante. Não pode ser chamado de causa, mas é um dos maiores fatores da radicalização e da destruição da civilidade.

Ao assumir o antitrumpismo patológico, parte importante da sociedade americana fechou os olhos para problemas reais que não foram enfrentados para não alimentar a agenda dos deploráveis. Valendo-se deste silêncio, a China avançou sobre o Ocidente em velocidade jamais vista. Os russos transformaram Washington em um salão de festas, ora regando as pirraças dos democratas, ora aplacando a carência afetiva republicana.

No baile do caos, a América Latina se perdeu e a Europa parece ter ficado à deriva. Vulnerável sob aspectos políticos, culturais e militares. É o tal mundo em rearranjo que estamos vendo surgir.

No Brasil, não foi e não é diferente. Há um ambiente de conflito constante. O bolsonarismo reage raivoso e ressentido ao ambiente de constante apedrejamento. É uma relação incorrigível. E para pisotear o governo, foi feito no Brasil exatamente o que se registrou nos Estados Unidos. E não falta quem se aproveite. A China se aproveitou disso. Avançou, sob o silêncio do antibolsonarismo, mais do que nunca.

Bolsonaro está caminhando por uma estrada cheia de armadilhas. Muitos dos seus ladrilhos são muito parecidos com aqueles que fizeram parte da estrada do desastre de Donald Trump. A impressão que fica é que o Brasil copia o que há de pior e não faz o mínimo para não repetir os erros dos outros. Ou como escreveu Mark Twain: “A história nunca se repete, mas rima”.

Gazeta do Povo (PR)

O liberalismo no divã

 



Cacofonia dos dias de hoje é apenas um teste sobre nossa capacidade de viver em um mundo diverso e sobre o valor que efetivamente concedemos ao pluralismo

Por Fernando Schüler* 

Desde que comecei a lidar com temas de política ouço falar na “crise das democracias liberais”. Hoje em dia é comum escutarmos que os anos 90 foram uma época de grande euforia, mas ainda me lembro de nosso Milton Santos denunciando a “globalização como perversidade”, e toda a conversa em torno do Consenso de Washington. Depois veio o 11 de Setembro e o “fim das ilusões liberais”, e logo a era Bush e o fantasma da “teocracia americana”. Depois o apocalipse da crise de 2008 e a malhação de judas dos “mercados desregulados”. Ainda depois veio Trump e a “nova direita”, e prateleiras de livros nos alertando sobre como as democracias “morrem por dentro”. Isso tudo até a vitória de Joe Biden, quando o sol parece ter voltado a brilhar. De modo que fui ficando um tanto desconfiado. Não tenho um “crisômetro”, para medir a temperatura das democracias liberais, e desconfio que esse aparelhinho não existe.

Francis Fukuyama discute o tema em seu novo livro, O Liberalismo e Seus Descontentes, ainda sem tradução no Brasil. A polarização política cresceu, a grande sombra chinesa projeta sua “economia de mercado sem democracia” sobre o Ocidente, valores essenciais da tradição liberal, como a liberdade de expressão, são relativizados e os novos iliberalismos ocupam o centro das discussões. É por aí que Fukuyama pauta sua análise. O veneno vem da direita e da esquerda. No primeiro time há tipos como Viktor Orbán e Vladimir Putin, com seu apelo à ideia de “nação” e sua acusação de que as democracias liberais se tornaram “obsoletas”, visto não oferecer às pessoas uma base de valores essenciais à coesão social. O discurso não responde como seria possível estruturar uma tal base de valores em grandes sociedades sem a imposição das crenças e modos de vida de eventuais maiorias sobre os cidadãos que divergem. O atual debate em torno do aborto, nos Estados Unidos e no Brasil, é apenas um sinal disso.

Algo similar ocorre com os movimentos identitários, à esquerda. O problema não é a demanda por direitos iguais, que está no coração do argumento liberal, mas no seu avesso: a fúria reguladora. Algo na linha: “Joaquim pode viver segundo a sua subjetividade, desde que não afronte o modo como a nossa subjetividade considera que Joaquim deve se viver”. Fukuyama provoca: “Quem fala em nome dos afro-americanos, gays ou mulheres?”. Se alguém pensa pela própria cabeça e diverge da tribo, torna-se um “erro”? Isso me lembrou o episódio triste do vereador negro Fernando Holiday, chamado de “capitãozinho do mato” dadas suas ideias divergentes em relação à retórica que ele deveria seguir. É o avesso do liberalismo, que leva a diversidade a sério e toma como virtude, e não como um problema, que as pessoas pensem de modo diferente e cultivem formas por vezes exóticas de autonomia individual.

Fukuyama põe no grupo de vilões da democracia liberal o “neoliberalismo econômico”, que teria feito aumentar dramaticamente a desigualdade econômica, levado a crises financeiras e colocado o mercado “acima de qualquer outro valor social”. Cita autores como Hayek, Friedman e Gary Becker, dizendo que suas visões ajudaram no desconforto atual ao incentivar a demonização do papel do Estado na economia. Confesso achar isso bastante vago. Friedman, por exemplo, propôs que o Estado garantisse o acesso à educação transferindo recursos diretamente aos pais, para que eles pudessem escolher a escola dos filhos. O Estado não é demonizado, mas ajusta-se a sua função. Ele deixa de fazer o que não sabe, abrindo espaço à liberdade dos indivíduos. O Estado regula e financia, mas reconhece que os indivíduos são melhores juízes de seus próprios interesses. Fukuyama dá uma boa exagerada quando pinta os “neoliberais” não apenas como avessos ao Estado, mas também aos “programas sociais que aliviam os efeitos das desigualdades”. Quando leio isso, me lembro de FHC a vida inteira xingado de neoliberal por ter criado o “bolsa esmola”, como a oposição chamava a Bolsa Escola, ter feito a Lei de Responsabilidade Fiscal e privatizado um punhado de estatais ineficientes.

“As pessoas dispõem hoje de mais poder para dizer o que pensam”

A raiz do drama psicanalítico que vivem nossas democracias liberais é outra. Ela vem do “choque de abundância”, pela qual o sistema vem passando. Abundância de informação e poder, nas mãos dos indivíduos, dados pela revolução tecnológica. Algo que fez explodir boa parte dos filtros institucionais — partidos, sindicatos, mídia convencional — que ofereciam certa funcionalidade às democracias, o que não é propriamente uma má notícia. Se há grandes manifestações de rua, como leio no relatório da Freedom House, não vejo nisso um sintoma da “crise”, mas uma expressão da democracia. Vale o mesmo para as novas demandas por direitos, que podem dizer respeito a políticas de cotas raciais ou flexibilização do porte de armas. As pessoas dispõem hoje de mais poder para dizer o que pensam do que tinham há duas ou três décadas, e não abrirão mão de usar esse poder. Isso significa mais, e não menos, democracia.

A sensação de “barulho”, de “desordem”, de permanente instabilidade que temos hoje com as democracias provém disso. James Madison via a propensão humana ao facciosismo, a formar grupos e lutar por razões às vezes triviais, como um produto da liberdade. O que a tecnologia faz é exatamente isso: aumentar o escopo da nossa liberdade. Temos mais de meio milhão de influencers digitais no país, e o número vem crescendo. À época da redemocratização, o que chamávamos de “sociedade civil”, no Brasil, girava em torno de organizações como a ABI, a OAB e a CNBB. Hoje há uma sinfonia cacofônica, e ninguém dirá que isso é menos democrático. É apenas um teste sobre nossa capacidade de viver em um mundo diverso e sobre o valor que efetivamente concedemos ao pluralismo.

Nossa sorte é que nada disso é propriamente novo. Foi assim nos inícios da modernidade, quando a imprensa se tornou onipresente e fez explodir o debate público na Europa. Foi no embalo daquela revolução que Lutero incendiou a Europa com suas teses sobre a reforma. Seguiram-se quase dois séculos de guerra e fogueira, até que os europeus descobrissem, um a um, os princípios da grande tradição que chamamos de liberalismo. O próprio Lutero, ele mesmo um dogmático, foi um de seus iniciadores. Quando forçado a renunciar a suas ideias, em uma dieta do império, disse “não”. E o fez alegando razões de consciência. Razões que pertenciam apenas a ele, um indivíduo solitário, e não à Igreja ou ao Estado. Sempre guardei comigo essa imagem, que no fundo nos dá a melhor lição sobre o sentido do liberalismo: o direito de dizer “não”.

No fundo, é sobre isso que voltamos a discutir, geração após geração. O dilema definidor da modernidade, sobre como viver juntos, em grandes sociedades, onde as pessoas não concordam fundamentalmente umas com as outras. Numa época confusa, em que todos parecemos falar ao mesmo tempo, é a essa antiga pergunta que somos convidados, uma vez mais, a responder.

*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Revista Veja

7 sacadas sobre a Datafolha que dá primeiro turno a Zema e Lula em Minas

 










Tamanho de Lula e Zema é o mesmo no estado síntese, cenário em que o petista se descola de Kalil e o governador recebe votos pragmáticos à esquerda e à direita

02/07/2022 12:35 - atualizado 02/07/2022 13:08

Romeu Zema e Lula
(foto: Juarez Rodrigues/EM e NELSON ALMEIDA / AFP)
Do que leio, ouço, conjecturo e prevejo sobre a DataFolha desta sexta que coloca Zema Lula vitoriosos no primeiro turno em Minas:


1 - A indicação de 48% das intenções para reeleição de Romeu Zema já no primeiro turno contra Alexandre Kalil (21%) é do mesmo tamanho mas com menor diferença da de Lula em relação a Bolsonaro (28%). Indica que o petista está descolado do ex-prefeito de Belo Horizonte e larga faixa do eleitorado do interior vota nos dois, o Lulema ou LuZema.

2 - Com seus 21%, Kalil conseguiu ficar conhecido no interior, onde tem maior rejeição, com o apoio declarado a — e de — Lula, mas não o suficiente para conseguir todos os votos do lulopetismo, que os estatísticos colocam na faixa de 33%, um terço do eleitorado. Indica também que mesmo lulopetistas mais fiéis votam no governador. Sintomático que são também 21% que não votariam em Zema de forma alguma.

3 - Bom de campanha e prefeito ultra bem avaliado na capital por sua política de menos mortes na pandemia, o ex-prefeito dá o azar de enfrentar um candidato fortíssimo. Zema tem 50% de aprovação, menor rejeição, diferença de mais de 37% contra ele no interior (58% a 21%) e o recall de ter remendado grande parte do estrago deixado pelo governo anterior, sobretudo os salários atrasados do funcionalismo.

4 - Como Minas é síntese da votação no país, onde Lula tem a mesma diferença sobre Bolsonaro no mesmo Datafolha (47% a 28%), o sucesso de Lula deve repercutir em favor de Zema e vice-versa. Mas a situação de Zema é ainda melhor por arrastar também a maioria do eleitorado de Bolsonaro, 71% de seus eleitores, segundo a pesquisa. Terá voto dos dois líderes da pesquisa nacional. E ainda tem a poupança das indicações dadas ao candidato de Bolsonaro, Carlos Viana (4%), que têm mais chances de ir para ele.


5 - A campanha em Minas não parece opor a mesma clivagem nacional, de uma esquerda ideológica de maior controle do estado sobre interesses coletivos contra uma direita idem de maior liberdade econômica e individual, em tese. Para o eleitor, estão importando os resultados apresentados pelo governo Zema, conhecidos e infinitamente melhores do que os do governo Bolsonaro. Não está importando com a cor do gato desde que cace o rato.

6 - Onde estão muito equivocadas as inserções e aparições de Alexandre Kalil em rádio, TV e redes sociais combatendo 'a zelite', que soa esquerdizóide e ultrapassado. Nem é um caso de hipocrisia para quem é parte descarada dela, mas porque a maior parte do eleitorado de Zema, que precisa conquistar, pertence a ela. Deveria prestar atenção em seu padrinho para aprender que nem ele ataca mais as elites, um discurso da campanha de 2002. Não lhe ocorre que o mito das esquerdas pagou o desgaste de se aliar a Geraldo Alckmin e se aproximar do centro?

7 - No calor da campanha, nem Lula deve deixar totalmente claro, além da deferência, que seu candidato em Minas é Alexandre Kalil e nem Romeu Zema deve fazer muita força de dizer que seu candidato é Jair Bolsonaro depois de rifar o candidato do seu partido, Felipe D'Ávila. A vitória de cada um deles, mais para Lula, é prioridade absoluta. Pode ser que Bolsonaro faça o contrário, deixe entender e até enfatize que seu candidato é Romeu Zema, num apadrinhamento ao contrário. Vai rifar Carlos Viana, se ele não subir, como deve, nas pesquisas.
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