Carlos Newton
Neste sábado, liguei para o ex-senador Bernardo Cabral, para cumprimentá-lo pela passagem de mais um aniversário. Demos boas risadas quando ele lembrou os tempos da Constituinte, quando ele foi eleito relator-geral do projeto da nova Constituição, derrotando o senador Fernando Henrique Cardoso e o deputado Pimenta da Veiga.
Como Brasília estava infestada de lobistas e os parlamentares recebiam pressões de todos os lados, Bernardo Cabral criou a relatoria ambulante – a cada dia a equipe trabalhava em algum refúgio fora do Congresso.
Nessa época, eu trabalhava na Manchete e fazia a cobertura da Constituinte. Recebi um telefonema da Funai, me convidando para entrevistar 18 caciques que haviam chegado a Brasília para apresentar suas reivindicações à Constituinte. A maioria era de índios aculturados, mas havia também alguns sem o menor traquejo, como Davi Yanomami.
REIVINDICAÇÕES – No dia seguinte, pela manhã, foi uma coletiva ao contrário, porque eu era o único repórter e havia 19 entrevistados na sala de reuniões da Funai – os 18 caciques e um dos dirigentes da Funai. As reivindicações eram muitas – demarcação das reservas, respeito a seu limites, combate ao desmatamento, fim dos garimpos clandestinos, liberação da exploração mineral com autorização das tribos etc.
Ao final, quando eu e o fotógrafo Walter Carvalho arrumávamos as coisas para ir embora, o dirigente da Funai nos disse que estava tendo dificuldades para marcar uma audiência com Dr. Ulysses, e a Funai não podia manter os caciques em Brasília indefinidamente.
De lá mesmo telefonamos para o gabinete do Dr. Ulysses e o secretário dele, Oswaldo Manicardi, disse que a agenda estava lotada, mas ia dar um jeito.
TERNO E GRAVATA – Os índios ficaram entusiasmados e fizeram a maior bagunça, exigindo que os funcionários da Funai lhes arranjassem ternos e gravatas, porque queriam ir vestidos à caráter. Marquei o encontro com eles às 15 horas no salão do cafezinho da Câmara, e fui almoçar com o fotógrafo.
Eles chegaram no horário e a maioria realmente estava de terno e gravata. foi muito engraçado, chamavam muita atenção. Na mesma hora chegaram outros repórteres e fotógrafos que cercaram os índios e nos acompanharam até o gabinete da presidência da Câmara.
Quando entrei com os 18 índios e mais os jornalistas que nos seguiam, o secretário Manicardi ficou apavorado. Levantou da cadeira, colocou os braços para o alto e implorou: “Às seis horas, às seis horas…”.
ONDE ESTÁ O RELATOR – Como ainda faltavam quase três horas, cheguei perto do secretário e perguntei, baixinho: “Onde o Bernardo Cabral está escondido?”. Ele respondeu: “Não posso dizer…”. E eu insisti: “Pode sim, se não os índios vão ficar amontoados aqui, esperando”. E ele logo revelou que o relator estava na Gráfica do Senado.
Rumei para lá com os caciques e o relator Bernardo Cabral nos recebeu grandiosamente. Mandou servir café e biscoitos ao índios, conversou bastante com eles, que encaminharam a reivindicações e o relator-geral aceitou todas elas.
Voltamos para a Câmara e a audiência com Dr. Ulysses foi uma grande festa, um encontro de caciques. A maioria dos índios tinha câmaras de fotografia e todos queriam fazer selfies com ele. Como já tinham se entendido com o relator Bernardo Cabral, nada tinham a solicitar, apenas o apoio ao relator, que já era incondicional.
CONSTITUIÇÃO CIDADÃ – Nesse sábado, ao telefonar para o ex-senador, eu lhe disse: “O senhor teve a grandeza de aceitar todos os pedidos dos índios”. E ele comentou: “Tudo o que eles pediram estava correto, tínhamos de aceitar”.
Em seguida, conversamos sobre o fato de a Constituinte até hoje receber críticas por ser muito extensa. Comentei que poucos entendem que o país saíra de uma ditadura de 21 anos e os parlamentares se empenharam em criar empecilhos para evitar que houvesse retrocesso institucional.
Na verdade, é pena que a “Constituinte Cidadã” de Bernardo Cabral e Ulysses Guimarães tenha sido tão desvirtuada. Se tivesse sido obedecida, os bancos jamais poderiam nos cobrar juros de 500% ao ano no cartão de crédito, os tetos salariais teriam sido respeitados, não haveria penduricalhos nem cartão corporativo e ninguém receberia salários e aposentadorias em valores abusivos. Mas quem se interessa?