MEDIDA CAUTELAR NA RECLAMAÇÃO 23.457 PARANÁ
RELATOR : MIN. TEORI ZAVASCKI
RECLTE.(S) :PRESIDENTE DA REPÚBLICA
PROC.(A/S)(ES) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
RECLDO.(A/S) :JUIZ FEDERAL DA 13ª VARA
FEDERAL DE CURITIBA/PR
ADV.(A/S) :SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS
INTDO.(A/S)
:MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
PROC.(A/S)(ES) :PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
DECISÃO:
1. Trata-se de reclamação, com pedido liminar, ajuizado pela Presidente da
República, em face de decisão proferida pelo juízo da 13ª Vara Federal da
Subseção Judiciária de Curitiba, nos autos de “Pedido de Quebra de Sigilo de
Dados e/ou Telefônicos 5006205- 98.2016.4.04.7000/PR”.
Em linhas gerais,
alega-se que houve usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal, pois:
a) no curso de interceptação telefônica deferida pelo juízo reclamado, tendo
como investigado principal Luiz Inácio Lula da Silva, foram captadas conversas
mantidas com a Presidente da República;
b) o magistrado de primeira instância,
“ao constatar a presença de conversas de autoridade com prerrogativa de foro,
como é o caso da Presidenta da República, […] deveria encaminhar essas conversas
interceptadas para o órgão jurisdicional competente, o Supremo Tribunal
Federal”, nos termos do art. 102, I, b, da Constituição da República;
(c) “a
decisão de divulgar as conversas da Presidenta – ainda que encontradas
fortuitamente na interceptação – não poderia ter sido prolatada em primeiro
grau de jurisdição, por vício de incompetência absoluta” e
d) “a comunicação
envolvendo a Presidenta da República é uma questão de segurança nacional (Lei
n. 7.170/83), e as prerrogativas de seu cargo estão protegidas pela
Constituição”.
Postulou, liminarmente, a suspensão imediata dos efeitos da
decisão proferida em 16.3.2016 no dito procedimento e, ao final, seja anulada a
decisão reclamada, determinando-se a remessa dos autos ao Supremo Tribunal
Federal. Ato contínuo, por meio de petição protocolada sob número 13698/2016, a
reclamante apresentou aditamento à petição inicial e alegou, em síntese, que (a) “segundo
divulgado pela imprensa […] o juízo federal da 13ª Vara Federal de Curitiba
houve por bem suspender o envio a essa Corte Suprema dos inquéritos que tratam
dos fatos que ensejam as medidas de interceptação, limitando-se apenas a
encaminhar os dados da quebra de sigilo telefônico do ex-Presidente Luis Inácio
Lula da Silva”; (b) o magistrado reclamado não teria competência para definir
“o conjunto de inquéritos ou processos judiciais em curso que devem ou não ser
remetidos ao exame do Pretório Excelso, única Corte de Justiça apta
juridicamente a proceder a esse exame”.
Requereu, assim, que seja determinado
ao juízo reclamado “a remessa de todos os inquéritos e processos judiciais em
curso que tratam dos fatos que ensejaram as interceptações telefônicas em que
foram registrados diálogos da Sra. Presidente da República, dos Srs. Ministros
de Estado e de outros agentes políticos porventura dotados de prerrogativa de
foro”.
2. A concessão de medida liminar também no âmbito da reclamação (arts.
158 do RISTF e 989, II, do Código de Processo Civil) pressupõe, além da
comprovação da urgência da medida, a demonstração da plausibilidade do direito
invocado, requisitos que no caso se mostram presentes.
3. O presente caso traz,
em sua gênese, matéria que esta Suprema Corte já reconheceu como de sua
competência no exame das Ações Penais 871-878 e procedimentos correlatos, porém
procedendo à cisão do feito, a fim de que seguissem tramitando, no que pertine
a envolvidos sem prerrogativa de foro, perante o juízo reclamado, sem prejuízo
do exame de competência nas vias ordinárias (AP 871 QO, Relator(a): Min. TEORI
ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 10/06/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213
DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014).
4.
É certo que eventual encontro de
indícios de envolvimento de autoridade detentora de foro especial
durante atos
instrutórios subsequentes, por si só, não resulta em violação de
competência
desta Suprema Corte, já que apurados sob o crivo de autoridade
judiciária que até então, por decisão da Corte, não violava competência
de foro superior
(RHC 120379, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe 24-10- 2014;
AI
626214-AgR, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, DJe
08-10-2010; HC
83515, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, DJ 04-03-2005; Rcl
19138
AgR, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, DJe de 18-03-2015 e Rcl 19135 AgR,
Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, DJe de 03-08-2015; Inq 4130-QO,
Relator(a):
Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 23-9-2015).
5. O exame dos autos
na origem revela, porém, ainda que em cognição sumária, uma realidade diversa.
Autuado, conforme se observa na tramitação eletrônica, requerimento do
Ministério Público de interceptação telefônica, em 17.2.2016, “em relação a
pessoas associadas ao ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (eventos
1 e 2)”, aditado em 18.2.2016, teve decisão de deferimento em 19.2.2016 e
sucessivos atos confirmatórios e significativamente ampliativos, em 20.2.2016,
26.2.2016, 29.2.2016, 3.3.2016, 4.3.2016 e 7.3.2016, sempre com motivação
meramente remissiva, tornando praticamente impossível o controle, mesmo a
posteriori, de interceptações de um sem número de ramais telefônicos.
6. Embora
a interceptação telefônica tenha sido aparentemente voltada a pessoas que não
ostentavam prerrogativa de foro por função, o conteúdo das conversas – cujo
sigilo, ao que consta, foi levantado incontinenti, sem nenhuma das cautelas
exigidas em lei – passou por análise que evidentemente não competia ao juízo
reclamado: “Observo que, em alguns diálogos, fala-se, aparentemente, em tentar
influenciar ou obter auxílio de autoridades do Ministério Público ou da
Magistratura em favor do exPresidente. Cumpre aqui ressalvar que não há nenhum
indício nos diálogos ou fora deles de que estes citados teriam de fato
procedido de forma inapropriada e, em alguns casos, sequer há informação se a
intenção em influenciar ou obter intervenção chegou a ser efetivada. Ilustrativamente, há,
aparentemente, referência à obtenção de alguma influência de caráter
desconhecido junto à Exma. Ministra Rosa Weber do Supremo Tribunal Federal,
provavelmente para obtenção de decisão favorável ao ex-Presidente na ACO 2822,
mas a eminente Magistrada, além de conhecida por sua extrema honradez e
retidão, denegou os pleitos da Defesa do ex-Presidente.
De igual forma, há
diálogo que sugere tentativa de se obter alguma intervenção do Exmo. Ministro
Ricardo Lewandowski contra imaginária prisão do ex-Presidente, mas sequer o
interlocutor logrou obter do referido Magistrado qualquer acesso nesse sentido.
Igualmente, a referência ao recém nomeado Ministro da Justiça Eugênio Aragão
(‘parece nosso amigo’) está acompanhada de reclamação de que este não teria
prestado qualquer auxílio. Faço essas referências apenas para deixar claro que
as aparentes declarações pelos interlocutores em obter auxílio ou influenciar
membro do Ministério Público ou da Magistratura não significa que esses últimos
tenham qualquer participação nos ilícitos, o contrário transparecendo dos
diálogos. Isso, contudo, não torna menos reprovável a intenção ou as tentativas
de solicitação.”
7. Enfatiza-se que, segundo reiterada jurisprudência desta
Corte, cabe apenas ao Supremo Tribunal Federal, e não a qualquer outro juízo,
decidir sobre a cisão de investigações envolvendo autoridade com prerrogativa
de foro na Corte, promovendo, ele próprio, deliberação a respeito do cabimento
e dos contornos do referido desmembramento (Rcl 1121, Relator(a): Min. ILMAR
GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 04/05/2000, DJ 16-06-2000 PP-00032 EMENT
VOL-01995-01 PP-00033; Rcl 7913 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal
Pleno, julgado em 12/05/2011, DJe-173 DIVULG 08-09-2011 PUBLIC 09-09-2011 EMENT
VOL-02583-01 PP-00066). No caso em exame, não tendo havido prévia decisão desta
Corte sobre a cisão ou não da investigação ou da ação relativamente aos fatos
indicados, envolvendo autoridades com prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal,
fica delineada, nesse juízo de cognição sumária, quando menos, a concreta
probabilidade de violação da competência prevista no art. 102, I, b, da
Constituição da República.
8. Diante da relevância dos fundamentos da
reclamação, é de se deferir a liminar pleiteada, para que esta Suprema Corte,
tendo à sua disposição o inteiro teor das investigações promovidas, possa, no
exercício de sua competência constitucional, decidir acerca do cabimento ou não
do seu desmembramento, bem como sobre a legitimidade ou não dos atos até agora
praticados.
9. Procede, ainda, o pedido da reclamante para, cautelarmente,
sustar os efeitos da decisão que suspendeu o sigilo das conversações
telefônicas interceptadas. São relevantes os fundamentos que afirmam a
ilegitimidade dessa decisão.
Em
primeiro lugar, porque emitida por juízo que,
no momento da sua prolação, era reconhecidamente incompetente para a
causa,
ante a constatação, já confirmada, do envolvimento de autoridades com
prerrogativa de foro, inclusive a própria Presidente da República. Em
segundo
lugar, porque a divulgação pública das conversações telefônicas
interceptadas,
nas circunstâncias em que ocorreu, comprometeu o direito fundamental à
garantia
de sigilo, que tem assento constitucional. O art. 5º, XII, da
Constituição
somente permite a interceptação de conversações telefônicas em situações
excepcionais, “por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei
estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual
penal”.
Há, portanto, quanto a essa garantia, o que a jurisprudência do STF
denomina
reserva legal qualificada. A lei de regência (Lei 9.269/1996), além de
vedar
expressamente a divulgação de qualquer conversação interceptada (art.
8º),
determina a inutilização das gravações que não interessem à investigação
criminal (art. 9º). Não há como conceber, portanto, a divulgação pública
das conversações do modo como se operou, especialmente daquelas que
sequer têm
relação com o objeto da investigação criminal.
Contra essa ordenação expressa,
que – repita-se, tem fundamento de validade constitucional – é descabida a
invocação do interesse público da divulgação ou a condição de pessoas públicas
dos interlocutores atingidos, como se essas autoridades, ou seus
interlocutores, estivessem plenamente desprotegidas em sua intimidade e
privacidade. Quanto ao ponto, vale registrar o que afirmou o Ministro Sepúlveda
Pertence, em decisão chancelada pelo plenário do STF (Pet 2702 MC, Relator(a):
Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 18/09/2002, DJ 19-09-2003
PP-00016 EMENT VOL-02124-04 PP-00804), segundo a qual: “62. [A] garantia do
sigilo das diversas modalidades técnicas de comunicação pessoal – objeto do
art. 5°, XII – independe do conteúdo da mensagem transmitida e, por isso –
diversamente do que têm afirmado autores de tomo, não tem o seu alcance limitado
ao resguardo das esferas da intimidade ou da privacidade dos interlocutores.
63. ‘Por el contrario’ – nota o lúcido Raúl Cervini (L. Flávio Gomes Raúl
Cervini Interceptação Telefônica,. ed RT, 1957, p. 33), ‘el secreto de las
comunicaciones aparece en las Constituciones modernas – e incluso se infiere en
la de Brasil – con una construcción rigurosamente formal. No se dispensa el
secreto en virtud del contenido de la comunicación, ni tiene nada que ver su
protección com el hecho a estas efectos jurídicamente indiferente – de que lo
comunicado se inscriba o no en el ámbito de la privacidad. Para la Carta
Fundamental, toda comunicación es secreta, como expresión transcendente de la
libertad, aunque sólo algunas de ellas puedan catalogarse de privadas. Respecto
a este tema há sido especialmente clarificador el Tribunal Constitucional
Espanõl al analizar el fundamento jurídico de una norma constitucional de
similares características estructurales al art. 5 XII de la Constitución
Brasileña. Há señalado el Alto Tribunal que la norma constitucional establece
una obligación de no hacer para los poderes públicos, la que debe mostrarse eficaz com independencia del
contenido de la comunicación, textualmente: ‘el concepto de ‘secreto’ en el
art. 18, 3°. (de la Constitución española) tiene un carácter ‘formal’ em el
sentido de que se predica de lo comunicado, sea cual sea su contenido y
pertenezca o no el objeto de la comunicación misma al ámbito de lo personal, lo
íntimo o lo reservado’. Agrega más adelante que sólo desligando la existencia
del Derecho de la cuestión sustantiva del conteniclo de lo comunicado puede
evitarse caer en la inaceptable aleatoriedad en su reconocimiento que llevaría
la confusón entre este Derecho y el que protege la intimidad de las personas’.
64. Desse modo – diversamente do que sucede nas hipóteses normais de confronto
entre a liberdade de informação e os direitos da personalidade – no âmbito da
proteção ao sigilo das comunicações, não há como emprestar peso relevante, na
ponderação entre os direitos fundamentais colidentes, ao interesse público no
conteúdo das mensagens veiculadas, nem à notoriedade ou ao protagonismo
político ou social dos interlocutores”.
10. Cumpre enfatizar que não se adianta
aqui qualquer juízo sobre a legitimidade ou não da interceptação telefônica em
si mesma, tema que não está em causa. O que se infirma é a divulgação pública
das conversas interceptadas da forma como ocorreu, imediata, sem levar em
consideração que a prova sequer fora apropriada à sua única finalidade
constitucional legítima (“para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal”), muito menos submetida a um contraditório mínimo. A esta
altura, há de se reconhecer, são irreversíveis os efeitos práticos decorrentes
da indevida divulgação das conversações telefônicas interceptadas. Ainda assim,
cabe deferir o pedido no sentido de sustar imediatamente os efeitos futuros que
ainda possam dela decorrer e, com isso, evitar ou minimizar os potencialmente
nefastos efeitos jurídicos da divulgação, seja no que diz respeito ao
comprometimento da validade da prova colhida, seja até mesmo quanto a eventuais
consequências no plano da responsabilidade civil, disciplinar ou criminal.
11. Nos atos ampliativos antes referidos, encontra-se decisão datada de
26.2.2016, em que é autorizada a interceptação telefônica de advogado sob o
fundamento de que estaria “minutando as escrituras e recolhendo as assinaturas
no escritório de advocacia dele”. Aparentemente, é só em 16.3.2016 que surge
efetiva motivação para o ato: “Mantive nos autos os diálogos interceptados de
Roberto Teixeira, pois, apesar deste ser advogado, não identifiquei com clareza
relação cliente/advogado a ser preservada entre o exPresidente e referida
pessoa. Rigorosamente, ele não consta no processo da busca e apreensão
5006617-29.2016.4.04.7000 entre os defensores cadastrados no processo do
ex-Presidente. Além disso, como fundamentado na decisão de 24/02/2016 na busca
e apreensão (evento 4), há indícios do envolvimento direto de Roberto Teixeira
na aquisição do Sítio em Atibaia do exPresidente, com aparente utilização de
pessoas interpostas. Então ele é investigado e não propriamente advogado. Se o
próprio advogado se envolve em práticas ilícitas, o que é objeto da
investigação, não há imunidade à investigação ou à interceptação.” Sem adiantar
exame da matéria, constata-se ser ela objeto de petição nos autos de Pet 5.991,
a qual, com a presente decisão, sofre, no que diz respeito à jurisdição do STF,
perda superveniente de interesse processual, devendo ser arquivada.
12. Ante o
exposto, nos termos dos arts. 158 do RISTF e 989, II, do Código de Processo
Civil, defiro a liminar para determinar a suspensão e a remessa a esta Corte do
mencionado “Pedido de Quebra de Sigilo de Dados e/ou Telefônicos
5006205-98.2016.4.04.7000/PR” e demais procedimentos relacionados, neles
incluídos o “processo 5006617- 29.2016.4.04.7000 e conexos” (referidos em ato
de 21.3.2016), bem assim quaisquer outros aparelhados com o conteúdo da
interceptação em tela, ficando determinada também a sustação dos efeitos da
decisão que autorizou a divulgação das conversações telefônicas interceptadas.
8 Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001,
que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil. O
documento pode ser acessado no endereço eletrônico
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 10579830. RCL 23457 MC
/ PR Comunique-se com urgência à autoridade reclamada, a fim de que, uma vez
tendo cumprido as providências ora deferidas, preste informações no prazo de
até 10 (dez) dias. Com informações ou decorrido o prazo, abra-se vista dos
autos ao Procurador-Geral da República (arts. 160 do RISTF e 991 do Código de
Processo Civil) e voltem conclusos para julgamento. Junte-se cópia desta
decisão nos autos de Pet 5.991, arquivando-se aqueles. Publique-se. Intime-se.
Brasília, 22 de março de 2016
Ministro TEORI ZAVASCKI
Relator