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quarta-feira, setembro 07, 2022

O Brasil refém




Por Carlos Andreazza (foto)

Véspera do 7 de Setembro. Data sequestrada pelo imaginário intimidador bolsonarista, conforme ilustra o incontornável de um país à espera do que será o amanhã. O amanhã; não o futuro. O amanhã mesmo, este presente: a quarta-feira, dia 7 de Setembro.

O que será?

Note-se que incluímos esse aguardamento na agenda brasileira. Integra mesmo a dinâmica do calendário eleitoral. As entrevistas ao JN. O início da propaganda na TV. O primeiro debate. O 7 de Setembro. O debate final. O 2 de Outubro.

O 7 de Setembro, se grande ou muito grande: balizará, já amanhã à noite, as análises políticas sobre as possibilidades competitivas do presidente candidato, embora eventos como esse, de natureza sectária, alimentem muito mais as perspectivas de Bolsonaro, se afinal vencido, manter-se como o líder reacionário de uma oposição agressiva num Brasil com a economia como legada por Guedes.

Mesmo o governo nada tendo planejado para o 7 de Setembro de 2022, nada senão a necroviagem do coração imperial, nunca saímos do 7 de Setembro de 2021. Bolsonaro nos pauta. Levou a Corte constitucional para a briga de rua.

O país refém de há um ano. Preso à memória de um discurso para o confronto, antirrepublicano: o do mito, eleito por dezenas de milhões, que não consegue governar, minado pelo establishment que o Supremo encarna.

O amanhã: será pior?

Ninguém pode negar que estão postas as condições para o exercício da violência. A física. Refiro-me ao que pode haver no Rio de Janeiro. Menos de um mês até as eleições. Milhares às ruas, muitos armados — armadas também as forças de segurança. Exaltados os ânimos. A palavra resulta. A pregação para o choque é diária. São muitos também os tornados inimigos; os jurados como inimigos. Bolsonaro cultiva a segmentação. É estratégia. Estarão lá os CACs, por exemplo.

Considero que as autoridades locais ainda não olharam com atenção ao que se projeta para Copacabana, especialmente desde que cancelada a parada militar no Centro. Por que foi cancelada? Para quê?

São muitas as camadas de expectativa, para o que pesa a intensificação da atividade militante dos militares, sobretudo a partir da infiltração no TSE e das progressivas demandas — provocadoras de desconfianças — ao tribunal. Terá havido acordo com Alexandre de Moraes? A grande questão: como se comportará Bolsonaro?

É atroz que seja esse o horizonte; que nos tenhamos encurtado tanto. Mas assim é.

Em 2022, aos 200 anos da Independência, soma-se à exploração fetichista da efeméride o fato de estarmos — repito — a menos de um mês das eleições. Há um ano, o golpismo estava em outro tom, acima, mais acirrado. Essa é a leitura otimista. (Teria havido acordo com Moraes? Os tempos são prósperos para os conspirativos.) Prefiro a hipótese de que, sob um 7 de Setembro permanente, tenhamos nos acostumado à barbárie.

Independentemente do caráter golpista das manifestações de amanhã, teremos — isto já está dado — um ato de campanha eleitoral que instrumentalizará órgãos do Estado. No caso, as Forças Armadas. Ostensivo abuso de poder. Algo gravíssimo por si só.

Bolsonaro pode baixar a pressão. Pode, circunstancialmente, desviar sua artilharia a outro inimigo artificial. Pode terceirizar os ataques ao STF para aliados. Tudo é possível. Objetivamente, o que temos: o presidente convidou as Forças para compor, Independência como escada, um lance por sua reeleição — e elas aceitaram.

A grande questão — como se comportará Bolsonaro? — importa menos. (Se não morder amanhã, morderá depois — e sempre.) Importa mais a apreensão. Essa mobilização que tensiona. O presidente, gerador constante de instabilidades, é imprevisível. Imprevisibilidade a que se soma a incerteza sobre a organização do que ocorrerá em Copacabana. Ninguém sabe como será; até onde vão as participações militares. Conjunto de incertezas — de desorganizações — proposital.

Na última sexta, o Ministério Público Federal enviou ao Comando Militar do Leste, ao 1º Distrito Naval e ao 3º Comando Aéreo Regional pedidos de informação sobre que providências tomaram para impedir que o eventos militares em função da Independência se confundam com a atividade político-eleitoral de Bolsonaro. Quais? A Independência está instrumentalizada. A ver a quanto estarão instrumentalizados os militares.

O desenho da coisa, pelos agitadores bolsonaristas, é para que confusão haja mesmo. Ninguém, até agora, delimitou fronteiras. Quer-se bagunça. O presidente desfilará em motociata, desde o Flamengo até palco montado perto do Forte de Copacabana. Óbvio investimento numa fotografia híbrida, de arrastão: a imprevisibilidade forjada induzindo trânsitos que misturem civis e militares no comício de Bolsonaro. Convite fácil ao imponderável.

O Globo

O recado que vem dos chilenos




Por Luiz Carlos Azedo (foto)

Lula da Silva é favorito, com uma narrativa voltada para o passado, ou seja, as realizações de seus dois mandatos, e uma agenda opaca em relação ao futuro, como quem deseja assumir o poder com carta branca

Por esmagadora maioria — 61,86% —, os chilenos rejeitaram a proposta de uma nova Constituição, que buscava estabelecer maiores direitos sociais e ampliar a democracia chilena. Apenas 38,14% do eleitorado votaram a favor do texto, com 99,97% da apuração oficial concluída. O resultado surpreendeu o mundo político e a própria mídia chilena. Com o voto obrigatório, 13 milhões de eleitores participaram do plebiscito, cujo objetivo era referendar a nova Constituição, em substituição à Carta de 1980, do regime de Augusto Pinochet, reformada durante o governo de Ricardo Lagos, em 2005.

O “Rechazo” da nova Constituição foi geral, vitorioso, inclusive, na Grande Santiago, onde a esquerda e a centro-esquerda sempre foram maioria. “Esse Chile não é apenas Santiago; não foi uma eleição municipal, para se falar em bairros ricos e pobres. Há um sentimento de unidade nacional que se impôs democraticamente. A esquerda mais identitária (de todos os tipos de identitarismo) fracassou em sua perspectiva hegemônica. Isso não se chama ‘progressismo’, já que parte dos progressistas não apoiou a opção apruebo”, destaca o historiador Alberto Aggio, professor titular de História da Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Franca (SP), especialista na política chilena.

Segundo ele, a disjuntiva refundação versus pinochetismo fracassou, porque era uma leitura errada do sentimento da sociedade em seu conjunto. “Não houve, da parte da ‘nova esquerda’, apenas um erro de cálculo, de direção e de voluntarismo; Boric corre um sério risco se não entender o que aconteceu. Sua única opção ‘progressista’ era e ainda é um governo ‘mais amplo’, com apoio da ex- Concertación; permanece o sentimento de elaborar e aprovar uma ‘nova Constituição’, é um sentimento majoritário no país.”

Sua observação é muito importante diante do cenário eleitoral brasileiro, no qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é favorito, com uma narrativa voltada para o passado, ou seja, as realizações de seus dois mandatos, e uma agenda opaca em relação ao futuro, como quem deseja assumir o poder com carta branca para promover reformas políticas e institucionais. Ninguém sabe quais são essas reformas, a não ser que sejam deduzidas da autocrítica que o PT fez após o impeachment de Dilma Rousseff, o que não seria um bom sinal.

Agenda identitária

Até agora, a estratégia eleitoral de Lula está fundada no apoio eleitoral das parcelas mais pobres da população e de uma frente de esquerda, que rejeitou alianças ao centro nos maiores colégios eleitorais do país, todas viáveis quando Lula parecia imbatível. O erro da esquerda chilena foi esquecer as lições da crise do governo Allende e do golpe de Pinochet. A Convenção Constitucional autônoma, paritária, externa aos partidos e com uma maioria de independentes, que elaborou a nova Constituição, traduziu o “estallido social” de outubro de 2019 para o texto da nova Carta, na linha de ultrapassagem da democracia representativa, dita burguesa. Foi o erro.

A nova Constituição consagrava a paridade entre homens e mulheres em todos os cargos públicos; um “Estado plurinacional e intercultural”, reconhecendo 11 povos e nações (Mapuche, Aymara, Rapa Nui, Lickanantay, Quéchua, Colla, Diaguita, Chango, Kawashkar, Yaghan, Selk’nam); direito à natalidade e ao aborto autônomos; Estado de bem-estar social, com educação, moradia, saúde, previdência, trabalho; a extinção do Senado e a água como bem inapropriável (a crise hídrica chilena é seríssima). Consagrava a utopia política, mas o passo foi maior do que as pernas.

A vitória de Gabriel Boric, jovem político de esquerda radical, parecia dar uma direção política mais permanente ao processo iniciado em 2019, mas o novo presidente, antevendo as dificuldades, assumiu um perfil mais conciliador, apesar da forte oposição à esquerda. A nova Constituição traduzia o desejo da esquerda chilena de refundar o país, mas essa não é a vontade da maioria dos chilenos. Está posto um novo problema, porque também não se pode voltar à velha Carta de Pinochet.

A situação do Chile serve de advertência para a frente de esquerda que se formou em torno do ex-presidente Lula. O presidente Jair Bolsonaro (PL) faz campanha com uma agenda emergencial, alavanca sua candidatura com o pacote de bondades insustentável fiscalmente. Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB) tentam oferecer alternativas de futuro, sem os mesmos lastros de poder e/ou eleitoral dos que lideram a disputa. A mesma coisa faz Felipe D’Ávila (Novo) e Soraya Thronicke (União Brasil). Lula precisa apresentar sua alternativa para o futuro e rechaçar a veleidade de que o Brasil dará uma grande quinada à esquerda. O que as pesquisas estão mostrando é outra coisa.

Correio Braziliense

Alvos da PF por ações extremistas organizam atos no 7 de Setembro

 




Pelo menos 25 militantes e canais investigados por ações extremistas e notícias falsas estão na linha de frente da mobilização para o 7 de Setembro. Eles reúnem um total de 30 milhões de seguidores. O grupo de radicais incentiva a presença nas ruas no feriado e fala em mortes entre "inimigos do Brasil", "expulsar demônios" e fim dos "discursos moderados" contra a "tirania".

Há um mês o Estadão/Broadcast monitora os influenciadores radicais, que argumentam usar "figuras de linguagem" nas redes. Mas eles têm um histórico de ações reais de violência política, como a invasão ao plenário da Câmara, em 2016, além de citações nos inquéritos dos atos antidemocráticos e das fake news, de 2020, e o da desmonetização de canais que faturavam com desinformação, do ano passado.

Atualmente, o grupo se articula no entorno do discurso de ataque do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) ao Supremo Tribunal Federal (STF), em especial ao ministro Alexandre de Moraes. O ato promovido pelo presidente está previsto para Brasília, Rio e São Paulo.

Candidata a deputado federal pelo PTB de Santa Catarina, Dileta Corrêa da Silva organiza a manifestação em Balneário Camboriú. Há seis anos, ela e outros 56 militantes formaram o movimento que quebrou a porta de vidro do plenário da Câmara e invadiu o local para defender a intervenção militar. "Faria tudo novamente e faria até melhor, chamaria mais pessoas, colocaria mais pessoas no plenário", afirmou Dileta ao Estadão/Broadcast.

Após a invasão, ela foi proibida de entrar na Casa e teve de ir ao STF para restaurar o direito de entrar no local. Seus advogados defendem a invasão, alegando que o ato foi "o mais espetacular" dos quais ela participou. A defesa de Dileta convenceu o ministro Edson Fachin, que decidiu a favor dela, contrariando a opinião do Ministério Público Federal.

Candidato à Presidência, mas com registro cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Roberto Jefferson, que está em prisão domiciliar, divulgou vídeo cobrando de Bolsonaro uma reação dura contra Moraes para garantir que as pessoas se manifestem. Ele classificou o ministro como chefe da "milícia judicial" e disse que o presidente deveria mandar prender os atiradores de elite escalados para a segurança do ato em Brasília.

"É o Xandão que vai estabelecer o que o povo pode fazer em 7 de setembro? Ano passado foi um fracasso, você fez um discursinho meia boca com medo de não sei o quê e agora você vai deixar eles mijarem em você? Poste não mija em cachorro, Bolsonaro. Reaja, Bolsonaro, ou acabou. Ou pede o boné e acabou."

SEM MODERAÇÃO

Foragido da Justiça brasileira, o blogueiro Allan dos Santos estimulou, em e-mail a seguidores, mais ação. "Não dá mais para usar o 'discurso moderado' como ferramenta contra a tirania", escreveu. "Por isso, 7 de setembro será um dia tão importante. O dia em que vamos mostrar que nada pode ser maior que a força popular." Procurado, ele não respondeu.

Entre os influenciadores que tiveram o faturamento de canais barrados pela Justiça Eleitoral está Camila Abdo. Na última quinta-feira, ela promoveu live no YouTube com o comentarista José Carlos Bernardi, que foi demitido da rádio Jovem Pan após sugerir "matar um monte de judeus" para o Brasil enriquecer - ele agora é candidato a deputado estadual em São Paulo pelo PL.

Na transmissão, Bernardi citou trecho da Bíblia que narra uma guerra e afirmou que a manifestação da quarta-feira, 7, será um "marco de libertação". "Esse rebuliço acontecerá agora no 7 de Setembro entre os inimigos do Brasil, eles mesmos vão se matar." Em seguida, os dois afirmaram que a declaração se tratava de figura de linguagem. "É como se fosse, um exemplo", disse Camila.

Nos seus canais ela afirma que há ministros do Supremo que "precisam sair de lá". À reportagem, porém, a influenciadora disse que a motivação para a convocação é o "respeito pleno à Constituição e à liberdade de expressão". "Não há o que temer. Tanto da nossa parte, como da parte dos ministros", declarou. Bernardi não quis se manifestar.

DEMÔNIOS

Blogueiro punido pelo TSE com a perda de receita por vídeos de notícias falsas, em 2021, Emerson Teixeira de Andrade se apresenta nas redes como "Professor Opressor". Os vídeos dele fazem paródias a Moraes. No mesmo dia em que Bolsonaro chamou o magistrado de vagabundo, ele postou uma convocação no Twitter: "Vagabundos vão comendo pela beirada e acabando com a sua liberdade aos poucos. Você vai permitir isso ou vai para as ruas dia 7 de setembro?", publicou, seguido de imagem com a mensagem: "Chegou a hora de expulsarmos estes demônios". Ao Estadão/Broadcast, ele afirmou que sua motivação é protestar contra a "forma como os ministros do STF vêm desrespeitando a Constituição" de forma pacífica.

O influenciador Alberto Junio da Silva, do canal O Giro de Notícias, fez convocações e afirmou que Moraes "não tem mais autoridade nenhuma". À reportagem, porém, disse que o ato será "um grito pela liberdade", mas pacífico.

INVASÃO

O Estadão/Broadcast identificou 14 manifestantes que participaram da invasão à Câmara para pedir intervenção militar. Seis anos depois, líderes do grupo estão firmes na defesa de Bolsonaro. Era 16 de novembro de 2016. O plenário estava praticamente vazio. O deputado Capitão Augusto (PL-SP) direcionava uma mensagem a eleitores de Ourinhos, no interior de São Paulo, quando foi interrompido pelo grupo que atropelou a segurança e entrou aos gritos no espaço restrito aos parlamentares e assessores. Um servidor que cruzou o caminho dos invasores foi derrubado com uma rasteira. A invasão forçou o fim da sessão.

Participantes da invasão relataram à reportagem que o ato foi premeditado por cinco meses e poderia ter sido ainda mais violento. Os invasores saíram de um grupo com cerca de 490 pessoas acampadas em Brasília dias antes. Só uma parte insistiu na ilegalidade. Entre eles, militares reformados e ativistas da extrema direita. Havia os designados "para a conversa e para a porrada".

Seis anos depois, Davi Benedito, que se apresenta como líder do movimento "Intervencionistas no Congresso", afirmou que a "missão" foi preparada por meses com militantes de vários Estados e um financiador oculto. Ele concorre a uma vaga na Assembleia de São Paulo pelo Patriota e estará na Avenida Paulista, na quarta. Até hoje, está proibido de entrar na Câmara.

"Me perguntaram se eu tinha coragem de tomar o Congresso. Cheguei no dia 12 de novembro. Fiquei cinco meses montando essa caravana. Foram várias missões. Viram que eu era um cara competente e me pediram para fazer", disse.

Ele relatou que deixou de ser intervencionista e disse acreditar no processo eleitoral. Uma das páginas de internet que usa para fazer campanha, porém, se chama "Intervencionistas no Congresso". Benedito garante que se manifestará pacificamente.

Também invasor da Câmara, o cabo Corrêa Mourão publicou um vídeo com a frase "Pela última vez", no qual disse que estaria em Copacabana no 7 de Setembro. "Você não pode perder, estaremos juntos. Eu e toda a equipe do 'Para cima deles, Brasil'", declarou ele, repetindo uma frase de Bolsonaro.

Estadão / Dinheiro Rural

(Des)caminhos da finança global




Para Keynes, controle de capitais deveria ser uma característica permanente da ordem global pós-Guerra

Por Luiz Gonzaga Belluzzo* (foto)

Alan Greenspan, às vésperas de sua saída da presidência do Federal Reserve, chamou a atenção para as alterações provocadas pela globalização. Ele dizia que “durante as últimas décadas, a inflação caiu sensivelmente no mundo inteiro, assim como a volatilidade da economia. A globalização e a inovação parecem elementos essenciais de qualquer paradigma capaz de explicar os eventos dos últimos 10 anos”.

Em seu livro “Interest and Prices”, o economista Michael Woodford nos presenteou com uma exposição sobre o regime de metas. Woodford, apoiado “nos escritos monetários (não quantitativistas) de Knut Wicksell” se propõe a definir as condições de existência de uma regra ótima de reação do banco central diante de alterações antecipadas no nível geral de preços.

Os bancos centrais buscam coordenar as expectativas dos formadores de preços e dos detentores de riqueza, de modo a consolidar a confiança em sua atuação, atenuando a volatilidade do nível geral de preços, da renda e do emprego. O livro de Woodford interpreta Wickssel de forma peculiar. O autor constrói uma hipotética economia monetária na qual o crédito está praticamente ausente. Wickssel, na verdade, caminhou para a concepção de uma economia de “crédito puro” para examinar os processos cumulativos de inflação e deflação.

A obra de Woodford não menciona, sequer no glossário, a expressão “exchange rate”. Isto, imagino, pode significar que nos países de moeda conversível, as flutuações do câmbio apenas têm efeitos “reais” na medida em que afetam os preços relativos entre “tradables” e “non tradables”. Woodford parece considerar irrelevantes as flutuações do câmbio para a formação das expectativas dos agentes em uma economia monetária e financeira. Woodford não surpreende, portanto, ao negar relevância à globalização dos mercados financeiros na formulação de regras que orientem a atuação dos bancos centrais.

Na contramão, o economista do Banco para Compensações Internacionais (BIS), Claudio Borio, rebateu os argumentos de Woodford: “Nossas descobertas sugerem que os fatores globais se tornaram mais importantes do que os fatores domésticos”. Borio se refere às mudanças importantes que afetaram, antes da crise financeira, as condições da oferta e da demanda na economia globalizada. São elas:

1- A grande empresa manufatureira se deslocou para regiões onde o custo unitário da mão de obra é sensivelmente mais baixo. Nesses mercados, a oferta ilimitada de mão de obra impede que os salários acompanhem o ritmo de crescimento da produtividade.

2 - As relações produtividade/salários nos emergentes asiáticos incitaram a rápida criação de nova capacidade produtiva na indústria manufatureira, acirrando a concorrência global entre os produtores de manufaturas.

3 - As políticas de comércio exterior dos emergentes em processo de “perseguição” industrial combinam saldos comerciais alentados, acumulação de reservas e políticas de defesa do câmbio real.

4- Os Estados Unidos, beneficiados pela capacidade de atração de seu mercado financeiro amplo e profundo absorveram um volume de capitais externos muito superior aos déficits em conta corrente. Borio procura demonstrar que em um mundo em que prevalece a mobilidade de capitais a determinação não vai do déficit em conta corrente para a “poupança externa”. É a elevada liquidez e a alta “elasticidade” dos mercados financeiros globais que patrocinam a exuberante expansão do crédito, a inflação de ativos e o endividamento das famílias viciadas no hiper-consumo. A inflação ia muito bem, obrigado.

A combinação entre esses fenômenos - baixa inflação e excessiva elasticidade do sistema financeiro - acentuou o caráter procíclico da oferta de crédito e impulsionou a criação de desequilíbrios cumulativos nos balanços de famílias, empresas e países - com sérias consequências para a eficácia das políticas monetárias nacionais. A questão central, na opinião do economista do BIS, reside no crescimento excepcional dos fluxos brutos de capital entre as economias centrais.

Isso significa que as mudanças patrimoniais entre os agentes privados e públicos (bancos, empresas, governos e famílias) foram muito mais intensas do que as refletidas no financiamento do déficit em conta corrente. “Assim, mesmo que os Estados Unidos não apresentassem déficits externos ao longo dos anos 90 (e da primeira década do século XXI), o ingresso de capitais teria sido robusto”.

O ex-economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard escreve: “Antes da crise de 2008, muitas economias emergentes adotaram o regime de metas de inflação. Isso era visto como o estado da arte no que respeita à política monetária... Esses países (no que se refere ao câmbio) se incluíam entre os “flutuantes”. Argumentavam, continua Blanchard, que os cuidados com a taxa de câmbio deveriam ser considerados apenas por seus efeitos na inflação. Não deram qualquer importância à taxa de câmbio como objetivo de política econômica. Mas os países (emergentes) têm razões para cuidar das taxas de câmbio. É importante dispor de instrumentos para afetar o nível e a volatilidade da taxa.

Conhecedor das proezas do irrequieto capital-dinheiro, um certo John Maynard Keynes, tocado pelas trapalhadas dos anos 1920 e pelas desgraças da Grande Depressão dos anos 1930, defendeu, nas negociações de Bretton Woods, a vedação dos movimentos de capitais. Não surpreende que, nos trabalhos elaborados para as reuniões que precederam as reformas de Bretton Woods, Keynes tenha tomado posições radicais em favor da administração centralizada e pública do sistema internacional de pagamentos e de criação de liquidez. Ele imaginava que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem econômica mundial do pós-Guerra. Para ser efetivo, esse controle envolveria provavelmente uma engrenagem de administração estrita do câmbio para todas as transações, mesmo se o balanço em conta corrente estiver em geral aberto”.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, professor emérito da Universidade Federal de Goiás.

Valor Econômico

José Bonifácio: como 'patriarca da Independência' teve projeto de país rejeitado e acabou amargurado




Por Shin Suzuki, em São Paulo 

Enquanto D. Pedro 1º, o grande artífice da independência brasileira, tem uma reputação marcada pelas humilhações públicas que impôs à Imperatriz Leopoldina, pela fama (exagerada) de que lhe faltava sofisticação intelectual, por seu temperamento explosivo e até pelo folclórico episódio da disenteria no 7 de setembro, a imagem de outro personagem da proclamação se sedimentou ao longo da história de uma maneira bem diferente.

Conhecido até hoje pelo epíteto de "patriarca da Independência", José Bonifácio ganhou destaque como um gênio político que concebeu um projeto de nação brasileira à frente de seu tempo.

Há, em sua trajetória, as defesas da luta abolicionista em meio a uma sociedade fortemente escravocrata, da ampliação do acesso à educação para a população e da avançada ideia de uma consciência ambiental.

Visões mais recentes, no entanto, jogam luz sobre uma figura mais complexa. A carreira tida como brilhante na Europa é relativizada após um exame mais demorado sobre sua passagem no continente.

O entusiasmo pelas ideias liberais e iluministas, em voga entre intelectuais do começo do século 19, se choca com episódios de posições antidemocráticas.

As origens

José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu em Santos, em 1763, uma vila colonial decadente na época, com população de pouco mais de 1.500 pessoas.

Foi batizado como José Antônio (o Bonifácio do pai seria incorporado ao seu nome apenas na cerimônia de crisma) e cresceu em uma família de nove irmãos (uma décima irmã morreu ainda bebê). O pai tinha uma das maiores fortunas da região: era dono de imóveis, terras e uma fazenda.

Aos 14 anos, foi para a cidade de São Paulo estudar aos cuidados de um frei. Um pouco mais tarde, empreenderia uma viagem ainda mais importante para a sua formação: seguiu rumo a Portugal em 1783 com objetivo de estudar direito e filosofia na Universidade de Coimbra.

Era um roteiro conhecido para os filhos da elite do Brasil colônia. A maioria, porém, retornava pouco depois da conclusão dos estudos para assumir os negócios da família.

José Bonifácio demorou-se muito mais na Europa — e em tempos de particular efervescência no continente. A revolução francesa, em 1789, reverberaria por décadas nas ideias políticas europeias.

Mas o José Bonifácio dessa arena só ganharia proeminência depois. Sua especialização intelectual nessa época se deu no ramo das ciências naturais, mais especificamente a mineralogia. Havia razões pragmáticas para isso.

Conhecer e saber diferenciar os minérios e seus valores era de grande interesse a reis ou rainhas. E, para avançar em suas ambições na carreira científica, o patrocínio do Estado seria importante.

Passou por lugares como Alemanha, Itália, Hungria, Áustria, Suécia, Dinamarca e Noruega. Em seus escritos, anotações sobre as características dos povos locais.

Segundo ele, alemães se comportam nos teatros como "mortos, batem apenas um instante de palmas" e suecos "cuidam ser perfeitos e não tentam melhoria".

Longe de ser apenas um observador de costumes estrangeiros, Bonifácio se destacou em sua área ao registrar quatro espécies minerais até então desconhecidas (espodumênio, petalita, criolita e escapolita) e entrou num seleto grupo de mineralogistas que fizeram descobertas.

Mas, segundo a biógrafa e historiadora Mary del Priore, autora de As Vidas de José Bonifácio (Estação Brasil, 2019) pouco provável que tenha sido amigo de Alexander von Humboldt, um dos maiores nomes das ciências naturais na história, como costuma-se contar na sua trajetória.

Suas andanças pelo continente também serviram para acumular informações sobre as maneiras que as intendências locais exploravam comercialmente suas minas.

Uma década depois, já aos 37 anos, voltou a Portugal. Teve grande proximidade com d. Rodrigo de Souza Coutinho, afilhado político (e de batismo) do outrora poderoso Marquês de Pombal. Coutinho liderava um projeto de modernização do país que tinha influência liberal.

Assim, Bonifácio galgou posições tanto na Academia de Ciências de Lisboa (onde chegou a secretário, o cargo máximo) quanto na administração do reino (ficou responsável pelo importante papel de gerenciar e aumentar a eficiência das minas e ferrarias de Portugal).

Protoecologista

Uma de suas marcas, segundo biógrafos e historiadores, foi estender sua visão além da exploração econômica e contemplar o desenvolvimento social dentro de um projeto de desenvolvimento.

Aí também desponta a faceta hoje vista como de protoecologista. Defende em escritos o plantio de novos bosques em Portugal como parte do que hoje poderia ser entendido como sustentabilidade.

"José Bonifácio era um cientista com a preocupação de dar aplicação prática a seus conhecimentos científicos. Ainda em Portugal, esteve a cargo de administração e conservação de bosques e escreveu a respeito. Foi sem dúvida um pioneiro na preocupação com o que hoje se chama ecologia", diz o historiador e membro da Academia Brasileira de Letras José Murilo de Carvalho.

"Autoritário e defensor da ecologia, se hoje vivesse, estaria pondo na cadeia os responsáveis pelos crimes ecológicos", complementa.

Já para a historiadora da USP e biógrafa Miriam Dolhnikoff, autora de José Bonifácio (Companhia das Letras, 2012), essa visão era mais centrada numa busca por produtividade econômica.

"[Ele] denunciou em alguns dos seus escritos o uso irracional da natureza. Mas esta denúncia tinha caráter econômico. Para ele, o problema era o arcaísmo da exploração da terra, que comprometia a produtividade da agricultura e de outras atividades econômicas", diz.

"É completamente anacrônico falar em qualquer tipo de ambientalismo no Brasil do século 19."

Agitação na Europa

Os projetos e ambições de ascensão na administração após o retorno se chocaram com a burocracia portuguesa — algo que se agravou com a saída forçada de D. Rodrigo. Dolhnikoff, em seu livro, aponta o peso de outro fator nessas dificuldades: a quantidade de cargos que José Bonifácio acumulou como funcionário público.

Nesse meio-tempo, a agitação no continente europeu crescia. Napoleão Bonaparte ameaçava invadir Portugal, que vivia sob a órbita de influência dos ingleses, rivais da França.

Quando isso se concretizou, a família real portuguesa zarpou em mais de 30 navios para se instalar no Brasil, longe das forças bonapartistas, mas José Bonifácio permaneceu em Portugal como parte da resistência.

Ficou encarregado da fábrica de pólvora na contraofensiva e, em fase posterior, assumiu o Serviço de Segurança do Exército para combater a espionagem francesa e os colaboracionistas.

Passado o conflito e expulsos os franceses, as dificuldades no exercício de suas funções na administração portuguesa permaneceram. Ele se queixava, por exemplo, da falta de estrutura como professor na Universidade de Coimbra. Mas as críticas à visão lusitana das coisas tinha amplo escopo.

As frustrações na metrópole e a relevância que o Brasil ganhou ao ser elevado a reino ajudaram a materializar finalmente o retorno tantas vezes ensaiado de José Bonifácio à terra-natal.

Aos 56 anos, embarcou em 1819 com a mulher e a filha mais nova, Gabriela. A mais velha, Carlota, já casada, ficou em Portugal. Também seguia uma criança fruto de um relacionamento extraconjugal de José Bonifácio que foi batizada com o nome de sua esposa, Narcisa Cândida.

Biógrafos de diferentes épocas detalham a partir dos próprios escritos de Bonifácio o intenso interesse sexual pelas mulheres, em relações casuais ou visitas a bordéis.

Há frases dele que hoje não seriam aceitas: "As mulheres têm sido a peste da minha vida — amo-as, mas não as estimo muito", anotou certa vez.

"A misoginia era uma característica da época. A virilidade fazia parte da construção social, daquilo que era respeitado num homem. O homem tinha que ser viril. Ele tinha e podia ter amantes. Até porque, em geral, casava-se dentro de uma rede de interesses", diz Mary del Priore.

Sem aposentadoria

Após três décadas e meia fora, José Bonifácio aporta em território brasileiro aparentemente disposto, como manifesta em cartas, a aproveitar a aposentadoria.

Mas logo retoma o seu trabalho científico em viagens mineralógicas ao lado do irmão Martim Francisco — o outro, Antônio Carlos, estava preso no Nordeste por conta de seu envolvimento na revolução pernambucana de caráter separatista em 1817.

E o espírito crítico que dedicava aos portugueses seguiu em plena forma com o que via no Brasil.

Havia impressões sobre ruas e caminhos em estado de desleixo que é "entretido e aumentado pelas ideias supersticiosas e fanáticas que uma boa parte do clero da vila [de Itu, no interior paulista] prega ao povo, e que muitas vezes tem sido a causa de desunião das famílias, da corrupção da mocidade e do afrouxamento do serviço público".

É nessas imediações que também vê com desgosto a situação dos índios, ainda alvo de traficantes, e o mecanismo de uma sociedade escravocrata.

"A sorte daqueles índios merece toda nossa atenção [...] para que não ajuntemos ao tráfico vergonhoso e desumano dos desgraçados filhos d'África o ainda mais horrível dos infelizes índios de que usurpamos as terras, e que são livres não só pela razão, mas, também, pelas leis."

Segundo Miriam Dolhnikoff, para Bonifácio, "a escravidão seria um obstáculo instransponível para a construção do novo país, em primeiro lugar porque seria necessário combater permanentemente um inimigo interno: a população escravizada".

"Para garantir a ordem era preciso transformar escravos em cidadãos que compartilhassem o pertencimento à nova nação. Em segundo lugar, a violência embutida na escravidão incapacitava, segundo ele, os homens livres para o exercício da cidadania. Uma elite que vivesse da exploração violenta de homens e mulheres não seria capaz de entender o sentido da cidadania em um regime liberal."

A historiadora da USP lembra que "é importante ressaltar que a nação e o Estado projetados por Bonifácio deveriam refletir os interesses da elite branca a qual ele pertencia, a escravidão assim, para ele, era um obstáculo para materializar os interesses mais amplos da elite".

Envolvimento na independência

Os ares de agitação que se encresparam com movimentos independentistas no Brasil ficaram ainda mais densos com a revolução constitucionalista do Porto, de 1820, que exigia a volta do rei D. João 6° a Portugal e a redação de uma Constituição.

D. João, após muitos adiamentos, cedeu e tomou o caminho de Lisboa, mas os portugueses estavam dispostos a reverter os privilégios que o Brasil havia obtido como sede da família real.

Uma das exigências era o retorno do príncipe D. Pedro e, na prática, uma anulação da autonomia que a antiga colônia havia conquistado.

Em meio a essa movimentação que desaguaria na independência, José Bonifácio, junto a seus irmãos (Antônio Carlos já havia sido libertado), ganhou proeminência na política paulista.

Participou da organização das eleições de deputados (mas não como candidato) para as Cortes de Lisboa que formulariam a nova Constituição.

Em determinado momento, ajudou a elaborar uma espécie de programa de governo para a província em que destaca a importância da educação.

Para ele, o desenvolvimento dependia de investir em educação para que "nunca faltem, entre as classes mais abastadas, homens que não só sirvam os empregos, mas igualmente sejam capazes de espalhar pelo povo os conhecimentos, que são indispensáveis para o aumento, riqueza e prosperidade da nação".

A intensa pressão para a volta de D. Pedro colocou Bonifácio definitivamente no protagonismo do processo de independência.

No início de 1822, envia uma carta ao príncipe em que conclama que "vossa alteza real deve ficar no Brasil, quaisquer que sejam os projetos das Cortes Constituintes, não só para nosso bem geral, mas até para a independência e prosperidade futura do mesmo Portugal".

Estava aberto caminho para o "fico" de D. Pedro.

Logo seria o início de um relacionamento próximo e também turbulento entre o jovem monarca e o experiente pensador político, de personalidades bem diferentes. Bonifácio seria escolhido como o ministro do Reino e Negócios Estrangeiros.

Poucos anos depois do 7 de setembro e da proclamação da independência, as pontes entre os dois ruiriam.

"A resistência da maioria dos deputados lusitanos em Lisboa em aceitar um governo com autonomia no Rio de Janeiro e o medo da fragmentação da América acabou por desembocar na independência e neste processo D. Pedro e Bonifácio caminharam juntos", diz Dolhnikoff.

"Contudo, havia divergências fundamentais no interior da elite brasileira. Bonifácio defendia um projeto de reformas que considerava centrais para viabilizar o novo país, entre elas o fim do tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão. Projeto rejeitado por praticamente toda a elite, que se articulou contra Bonifácio, pressionando D. Pedro a demiti-lo do ministério."

Tempos finais

Em novembro de 1823, D. Pedro 1º fecha a constituinte na qual Bonifácio tentava incorporar seu projeto de país e é condenado ao exílio no sul da França.

Lá, aparece um Bonifácio amargurado e magoado pela traição do pupilo que ajudou a colocar no poder. "Estou tão acabrunhado que suspeito às vezes se deixei de ser animal racional. Estou em torpor, como os bichos da terra que só vegetam no inverno".

Havia um gosto de derrota por não ter concretizado seus planos de dar a forma imaginada a uma nova nação.

Sustentava-se na França com uma pensão paga pelo governo brasileiro que dizia ser insuficiente e paga com atraso. Sofria também com problemas de saúde e o desejo de voltar a uma América com temperaturas mais elevadas.

O retorno ao Brasil se dá quando é nomeado tutor de D. Pedro 2º depois da abdicação do trono brasileiro pelo pai. Novamente, Bonifácio entra em choque com a classe política de então, é destituído da tutoria e colocado em prisão domiciliar na ilha de Paquetá - em mais um ostracismo.

Morreu em 1838, aos 74 anos, uma idade bastante avançada para a época.

"A trajetória de José Bonifácio foi mitificada uma vez que foi alçado à figura de patriarca da independência. Defendia reformas profundas, mas as defendia porque considerava que eram imprescindíveis para a viabilidade da nação e do Estado. No entanto, era um homem da elite branca do século 19", afirma Dolhnikoff.

"José Bonifácio não era, nem pretendia ser, um liberal e um democrata, mas era, sem dúvida, um estadista de grande visão e um defensor do progresso", diz José Murilo de Carvalho.

BBC Brasil

A ‘mamata’ como método - Editorial




Bolsonaro entrega cargos aos apadrinhados do Centrão, como o ‘analista sensorial de cachaça’ indicado para a Funasa, responsável por ações de saneamento

Em um país onde 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e cerca de 100 milhões de brasileiros (45% da população) convivem com esgoto sanitário a céu aberto em pleno século 21, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), vinculada ao Ministério da Saúde, deveria ser administrada com mais seriedade. Trata-se de um órgão de importância capital para o desenvolvimento humano dos brasileiros, cuja missão precípua é justamente “promover a saúde pública e a inclusão social por meio de ações de saneamento e saúde ambiental”. Entretanto, no governo de Jair Bolsonaro, a Funasa foi reduzida à condição de mercadoria nesse degenerado contubérnio que o presidente da República estabeleceu com o Centrão em prol de sua permanência no cargo.

O Estadão revelou que mais da metade das superintendências da Funasa no País (em pelo menos 18 Estados), além de diretorias do órgão, está sob controle de apaniguados de parlamentares do Centrão. Muitos deles não têm qualificação profissional para ocupar os cargos. No caso mais estarrecedor, que seria anedótico, não fosse trágico para quem depende dos serviços da Funasa, a superintendência no Espírito Santo foi entregue ao dono de um restaurante self-service que afirma ser “especialista em análise sensorial de cachaça”. O currículo do superintendente Ayrton Silveira Júnior, pasme o leitor, assim é descrito no próprio portal da instituição.

O deputado Neucimar Fraga (PP-ES), padrinho da indicação do sommelier de cachaça para a chefia da Funasa em seu Estado, afirma categoricamente que toda a experiência do pupilo em administração de restaurantes, além de sua especialização em “boas práticas na fabricação da bebida”, contribui para que Ayrton Silveira Júnior realize um “bom trabalho” à frente da superintendência estadual do órgão. “Ele tem organizado a Funasa aqui, tem destravado projetos que estavam parados há muitos anos no Espírito Santo. O problema da Funasa aqui era de gestão”, justificou o parlamentar ao Estadão.

Outros indicados por parlamentares do PL, partido de Bolsonaro, do PP e do Republicanos, legendas que compõem o núcleo duro da atual conformação do Centrão, além do PSD, colonizam diretorias e superintendências da Funasa País afora, de olho num orçamento de quase R$ 3 bilhões. Em comum entre os apadrinhados, a incongruência de suas trajetórias profissionais em relação aos objetivos da Funasa e a proximidade deles com políticos que ocuparam o vácuo de poder deixado pela incompetência de Bolsonaro e por sua insensibilidade às aflições de tantos de seus governados.

Quando candidato em 2018, Bolsonaro prometera “acabar com a mamata” da ocupação política de Ministérios, empresas estatais, agências reguladoras e outros órgãos técnicos. Como presidente da República, ao contrário, Bolsonaro entregou nacos da administração a parlamentares famintos por orçamentos bilionários em troca de sua permanência no cargo, a despeito do rol de crimes de responsabilidade que cometeu – e segue cometendo impunemente. Nunca a debilidade moral, política e administrativa do chefe do Poder Executivo federal foi tão custosa para a Nação.

O aparelhamento da Funasa já seria escandaloso se fosse um caso isolado. Mas não é. Como a Hidra, o Centrão já se apoderou do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Bilhões de reais têm sido desviados por meio de emendas do “orçamento secreto” destinadas a esses órgãos.

Tal é o desassombro dos cupins da República que mais parece que o País não é regido por uma Constituição que impõe a impessoalidade e a transparência como princípios da administração pública. É como se o Brasil não dispusesse de leis que demandam lisura e competência na gestão do Estado. Onde estão a Controladoria-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República?

Eis o retrato de um governo liderado por um presidente que só é capaz de enxergar as necessidades de seus governados sob a ótica de seus interesses particulares mais imediatos. A “mamata” não só não acabou, como se tornou um método de governo.

O Estado de São Paulo

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