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terça-feira, setembro 06, 2022

Por que gasolina no Brasil cai mais do que em outros países e quem está pagando a conta




Preço do barril de petróleo no mercado internacional está cedendo nas últimas semanas

Por Julia Braun, em São Paulo

A Petrobras anunciou na semana passada uma nova redução no preço da gasolina vendida às distribuidoras. O valor do litro do combustível nas refinarias passa de R$ 3,53 para R$ 3,28 por litro, uma redução de 7,08%. A última alteração no preço da gasolina havia sido em 16 de agosto.

Antes mesmo do anúncio, uma pesquisa da Agência Nacional do Petróleo (ANP) mostrava que os valores da gasolina, do diesel e do etanol voltaram a recuar nos postos de combustíveis na última semana na maioria dos estados.

Segundo o órgão, o preço médio de venda do litro da gasolina nos postos chegou a R$ 5,25 na média nacional na semana de 21 a 27 de agosto.

Na comparação com outros países, o preço da gasolina no Brasil foi um dos que mais caiu nos últimos meses, segundo dados da Global Petrol Prices, que pesquisa os valores em 168 nações, a maioria delas semanalmente.

A reportagem comparou os rankings elaborados pela consultoria em 27 de junho e 29 de agosto deste ano.

Nesse intervalo, o Brasil subiu 37 posições, da 76ª gasolina mais barata para a 39ª, e ficou entre os dez países onde o preço do litro do combustível mais baixou.

Entre os países em que o valor caiu mais do que no Brasil estão Turquia, Panamá, Vietnã, Austrália, Honduras, Montenegro e Gana.

Mas afinal, por que os preços estão baixando tanto no Brasil e quem paga a conta pela queda?

Por que os preços estão caindo?

Pedro Rodrigues, sócio-diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), explica que as variáveis que influenciam de forma mais robusta o preço da gasolina são o preço do barril de petróleo no mercado internacional e a taxa de câmbio, já que a commodity é cotada em dólares.

São esses os principais fatores que incidem atualmente sobre o valor no Brasil e que fizeram com que a Petrobras anunciasse uma nova redução.

"Neste momento, o preço do petróleo e o câmbio estão cedendo. E na Petrobras ou qualquer empresa que segue o mercado internacional, quando baixa o preço do barril cai também o preço do combustível", diz.

Na última terça-feira (30/08), os preços do petróleo caíram quase US$ 6 dólares por barril, o declínio mais acentuado em cerca de um mês.

Em nota, a Petrobras informou que a redução do preço da gasolina nas refinarias acompanha essa tendência.

"Essa redução acompanha a evolução dos preços de referência e é coerente com a prática de preços da Petrobras, que busca o equilíbrio dos seus preços com o mercado, mas sem o repasse para os preços internos da volatilidade conjuntural das cotações internacionais e da taxa de câmbio", disse a estatal.

Mas além dos preços no mercado internacional, existem outros fatores que podem influenciar o preço dos combustíveis, ainda que de maneira mais sutil.

Segundo Rodrigues, vale citar os tributos — tais como PIS/Cofins e ICM — e o percentual de mistura do etanol na gasolina.

É justamente a política tributária do governo brasileiro, somada ao real em valorização frente ao dólar, que está fazendo com que o preço caia mais no Brasil do que em outros países.

"Além de ter a queda no preço global do petróleo, o Brasil aplicou uma política que reduziu ainda mais a alíquota tributária, reduzindo também o preço final dos combustíveis. Por isso que, em termos percentuais, o preço por aqui caiu mais que em outros países", explica o sócio-diretor do CBIE.

A própria Global Petrol Prices explica que as diferenças entre os valores do litro da gasolina nas diferentes nações em seu ranking devem-se a vários tipos de impostos e subsídios para o combustível.

'Redução de tributos também afetou preço da gasolina'

O que mudou na política tributária?

No final de junho, entrou em vigor no Brasil a legislação que limita as alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Produtos (ICMS) que incidem sobre itens considerados essenciais — como combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo.

Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) após longas discussões e uma tramitação demorada no Congresso, a proposta determina que estados limitem a cobrança do tributo, que é estadual, à alíquota mínima de cada estado, que varia entre 17% e 18%.

Ao mesmo tempo, o governo também zerou as alíquotas da Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) — dois tributos federais — para os combustíveis.

Em março, um decreto e uma medida provisória já haviam zerado as mesmas alíquotas sobre a comercialização e a importação do óleo diesel e do gás de cozinha.

De acordo com o analista da Instituição Fiscal Independente (IFI), Alexandre Andrade, do ponto de vista de tributação, esses foram os eventos que mais impactaram o preço dos combustíveis quando entraram em vigor.

"Todos os estados cobravam alíquotas de ICMS superiores a 17% ou 18%. Alguns estados, como o Rio de Janeiro, cobravam até mais de 30%", diz o economista.

"O decreto que zerou as alíquotas do PIS e Cofins também teve impacto, mas o ICMS definitivamente pesou mais no preço dos combustíveis."

De onde sai o dinheiro dos tributos?

Andrade explica que o ICMS é o principal tributo de competência dos estados, além de sua maior fonte de receita.

"Em particular, os itens que foram objeto da lei que reduziu a alíquota do imposto, ou seja, combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo, são os principais setores de arrecadação dentro do ICMS", diz.

"Isso significa que a redução da alíquota do ICMS impõe uma perda de arrecadação significativa para os estados."

O ICMS arrecadado, por sua vez, contribui para serviços essenciais financiados pelos governos estaduais, tais como educação, saúde, segurança e o custeio da máquina pública.

No final de maio, a XP estimava uma perda na casa de R$ 103 bilhões em receita para os governos estaduais por seis meses de 2022. Já no cálculo da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), a perda apenas dos municípios é de R$ 22 bilhões.

Pela lei, o governo federal é obrigado a compensar os Estados quando a perda de receita com o tributo ultrapassar o porcentual de 5%, na comparação com a receita registrada no ano anterior.

Anteriormente, o governo havia entendido que o Congresso determinou que a comparação deve ser feita com base nas receitas de todo o ano. Com isso, a compensação, se necessária, só ocorreria em 2023.

Recentemente, porém, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu liminares a sete estados (São Paulo, Alagoas, Maranhão, Piauí, Minas Gerais, Rio Grande do Norte e Acre) para a compensação imediata das perdas por parte da União.

'O ICMS é o principal tributo de competência dos estados'

Por outro lado, PIS, Pasep e Cofins são contribuições sociais no âmbito de competência da União, que têm como destino o financiamento da seguridade social.

"O PIS e Pasep financiam, por exemplo, a política do abono salarial e o seguro desemprego. Já o Cofins é uma contribuição que serve para financiamento da seguridade social, ou seja, da Previdência", explica o economista da IFI.

Segundo Alexandre Andrade, o governo federal praticou essas exonerações porque a arrecadação está crescendo a um ritmo forte, apesar de já ter iniciado um processo de desaceleração mais recentemente.

"Quando o governo abre mão de uma arrecadação, a Receita Federal classifica tecnicamente como gastos tributários. É como se, ao abrir de uma arrecadação, o governo estivesse realizando uma política pública", diz.

"No caso dos combustíveis, o governo está concedendo um subsídio para quem consome gasolina, etanol, diesel e gás de cozinha."

Mas há quem critique a medida.

"A principal crítica feita por alguns é de que o governo está financiando o consumo de combustíveis fósseis, em um contexto em que o mundo todo está discutindo medidas para reduzi-lo", afirma o economista da IFI.

"E, de forma geral, o governo poderia estar destinando esse recurso para outras áreas."

Uma estimativa do IFI de março calculava uma renúncia de cerca de R$ 17,6 bilhões em arrecadação com a suspensão das alíquotas do PIS, Pasep e Cofins do óleo diesel e do gás de cozinha até o final do ano.

Já com a medida que zerou as mesmas alíquotas que incidiam sobre a gasolina e o etanol em junho, a instituição estimou uma perda na casa dos R$ 18 bilhões até dezembro. Somados, os dois valores totalizam R$ 35,6 bilhões.

Mas em sua proposta para o orçamento de 2023, encaminhada na quarta-feira (31/8) ao Congresso Nacional, o governo indicou sua intenção de prolongar a redução das alíquotas sobre a gasolina, o etanol e o gás natural veicular (GNV).

Com essa medida, o próprio governo estimou uma perda de R$ 34,3 bilhões em arrecadação. 

BBC Brasil

Perito independente vai examinar documentos apreendidos na casa de Trump




Foto publicada pelo Departamento de Justiça dos EUA em 31 de agosto de 2022 de documentos supostamente apreendidos em Mar-a-Lago, espalhados sobre um tapete 

A juíza americana Aileen Cannon determinou que se escolha um perito independente para examinar os documentos que o FBI apreendeu durante uma revista em agosto na mansão de Donald Trump na Flórida, segundo um documento judicial divulgado nesta segunda-feira (5).

Os advogados do governo tinham se declarado contrários a esta demanda do ex-presidente republicano, argumentando que a escolha de um perito para examinar o material poderia prejudicar a segurança nacional e era desnecessária, visto que uma equipe já tinha concluído uma avaliação.

Trump reagiu à decisão da juíza federal em sua rede social, a Truth Social: "Agora que o FBI e o Departamento de Justiça foram surpreendidos em uma fraude eleitoral maciça e determinante, os resultados das eleições presidenciais de 2020 vão mudar? Deveriam fazer isso!"

A decisão não só poderia atrasar a investigação sobre a manipulação de material sigiloso por Trump, que denunciou a revista em 8 de agosto como "um dos ataques mais atrozes à democracia" na história dos Estados Unidos e negou ter cometido algum malfeito.

Segundo a ordem judicial, "será nomeado um perito para revisar a propriedade apreendida, gerenciar as reivindicações de privilégio e fazer recomendações a respeito, e avaliar os pedidos de devolução da propriedade".

A magistrada deu às duas partes prazo até a sexta-feira para apresentarem uma lista de candidatos para executar o trabalho.

O Departamento de Justiça "está examinando o conceito e vai avaliar os passos apropriados a seguir no litígio em curso", afirmou em nota o porta-voz Anthony Coley.

Com esta decisão, Cannon acatou o pedido do ex-presidente republicano, ao proibir temporariamente os investigadores de usar os documentos apreendidos em sua residência de Mar-a-Lago, na Flórida, embora possam prosseguir com a revisão apenas "para fins de classificação e avaliações de segurança nacional".

"Proíbe-se temporariamente ao governo a revisão e o uso de quaisquer materiais apreendidos na residência do demandante em 8 de agosto de 2022, com fins de investigação criminal, à espera da resolução do processo de revisão do perito, segundo o determinado por este Tribunal", acrescentou a ordem.

Enquanto Trump enfrenta uma crescente pressão legal, o Departamento de Justiça sustenta que os documentos ultrassecretos "provavelmente foram ocultos" para obstruir uma investigação do FBI sobre a possível manipulação de materiais sigilosos por parte do ex-presidente.

- Ultrassecretos e confidenciais -

A revista feita pelo FBI em agosto ocorreu depois de uma revisão de registros "altamente confidenciais" que Trump acabou entregando às autoridades em janeiro, após meses de idas e vindas com a Administração Nacional de Arquivos e Registros.

Descobriu-se que as 15 caixas apreendidas da casa do ex-presidente continham 184 documentos marcados como confidenciais, secretos ou ultrassecretos. Depois de receber indicações do FBI, o advogado de Trump entregou 38 documentos confidenciais adicionais e deu uma declaração juramentada de que eram a última parte do material.

Quando os agentes revistaram a mansão de Mar-a-Lago, encontraram um material tão delicado que "até mesmo o pessoal de contraespionagem do FBI e os advogados do Departamento de Justiça que faziam a revisão pediram autorizações adicionais antes de que lhes fosse permitido revisar certos documentos", destacou um expediente judicial do governo.

O procurador-geral, Merrick Garland, disse ter aprovado pessoalmente a revista em Mar-a-Lago e que, em última instância, caberá a ele decidir se Trump será denunciado ou não por algum crime.

Bill Barr, que esteve à frente do Departamento de Justiça durante o mandato de Trump, avaliou que as buscas eram aparentemente justificadas e que suspeitava que as autoridades tinham "boas" provas de obstrução.

Uma lista detalhada do que foi apreendido mostrou que Trump reteve mais de 11.000 registros governamentais não sigilosos que, segundo ele, são seus, mas que legalmente pertencem aos Arquivos Nacionais.

Além do caso dos documentos, Trump é investigado sobre suas práticas comerciais, por seus esforços para anular os resultados das eleições de 2020 e pela invasão de seus apoiadores ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021.

AFP / SWI

Fukuyama, Popper e a democracia liberal.




Recordando o sentido pessoal de dever e de respeito por regras gerais de boa conduta que subjaz à democracia liberal — e que está hoje de novo seriamente ameaçado. 

Por João Carlos Espada (foto)

1 Após o interregno de Agosto, tenho agora o prazer de retomar estas crónicas com uma referência a um jantar muito especial com Francis Fukuyama que ocorreu na passada sexta-feira, 2 de Setembro, no Clube de Golf do Estoril. Dois artigos notáveis — de Teresa de Sousa no Público e de José Manuel Fernandes aqui no Observador, ambos publicados ontem — deram já conta de forma magistral dos muito estimulantes debates que lá tiveram lugar. Resta-me acrescentar apenas alguns apontamentos pessoais.

2 Um primeiro apontamento pessoal consiste simplesmente em recordar a génese invulgar do jantar com Fukuyama. Eu não fazia ideia de que ele vinha a Portugal em Setembro. Mas, em meados/finais de Julho, recebi um muito amável e-mail pessoal dele anunciando-me a visita e propondo um jantar privado na sexta-feira, dia 2 de Setembro.

Foi assim que emergiu o jantar no Estoril Golf Club, promovido — por convite apenas — pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (IEP-UCP) e presidido pela Reitora da UCP, Isabel Capeloa Gil. Entre os cerca de trinta convidados presentes, esteve também José Manuel Durão Barroso, director do Centro de Estudos Europeus do IEP-UCP, bem como os já citados distintos jornalistas Teresa de Sousa e José Manuel Fernandes.

Como tive o prazer de referir na abertura do jantar, dificilmente encontraríamos melhor símbolo e expressão de amizade. E Francis Fukuyama concordou, agradecendo a presença de todos e sublinhando a fortaleza da nossa amizade: uma amizade antiga, que remonta à década de 1990, à queda do comunismo soviético e às fantásticas transições à democracia na Europa central e de Leste; em suma, como Frank sublinhou, uma amizade fundada em valores partilhados — os valores da democracia liberal.

3 Estes valores estão hoje de novo sob ataque e é por isso de novo muito importante voltar à sua defesa. Este foi o propósito crucial do mais recente livro de Fukuyama, Liberalismo e Seus Descontentes, acabado de publicar entre nós pela D. Quixote — cujo editor, Duarte Bárbara, também nos deu o prazer e privilégio da sua presença no jantar de sexta-feira.

Francis Fukuyama voltou aí — quer no livro, quer no jantar — a sublinhar que por Liberalismo não entendia uma corrente ou um programa político-partidário particular, nem em particular uma preferência pela chamada direita ou pela chamada esquerda. Tal como enfatizara no livro, Frank explicou que entende por Liberalismo um conjunto de valores que subjazem às democracias liberais — e que por isso mesmo são partilhados enfaticamente pela direita e pela esquerda democráticas.

4 Este entendimento faz lembrar o de Karl Popper sobre “a sociedade aberta e os seus inimigos”. Como Popper nunca se cansou de repetir — inclusive quando também veio a Portugal, em 1987, a convite do então Presidente Mário Soares — existem ditaduras de esquerda e ditaduras de direita. Mas a sociedade aberta subjacente à democracia liberal não é de esquerda nem de direita — é, aliás, o único regime em que esquerda e direita coexistem pacificamente e pacificamente concorrem entre si no Parlamento, alternando no Governo com base em eleições livres e leais.

Isto é possível, sublinhou Popper, porque a democracia liberal não é definida por políticas específicas ou por resultados específicos a alcançar, mas sobretudo por um mal maior a evitar — a ditadura e a violência.

“How to get rid of bad governments without bloodshed” — foi assim que Popper celebremente definiu o propósito central da democracia liberal. E esse propósito não depende prioritariamente do governo de políticas específicas, da chamada esquerda ou da chamada direita, mas assenta crucialmente no governo das leis — Rule of Law — consagrado numa Constituição liberal e democrática. É este governo das leis que limita o poder de todo e qualquer poder particular, a começar pelo do estado, e garante a liberdade ordeira sob a lei. E é neste quadro que têm lugar a concorrência e alternância pacíficas entre políticas específicas rivais (estas sim de esquerda ou de direita, na condição de aceitarem as regras gerais da Constituição liberal e democrática, incluindo as regras gerais para a sua revisão e aperfeiçoamento).

5 Eis por que motivo é tremendamente grave o clima tribalista — alimentado mutuamente por tribos sectárias da esquerda e da direita radicais — de desrespeito pelas regras gerais que tem vindo a crescer em várias democracias ocidentais. A expressão mais grave desse tribalismo anti-Constitucional, como sublinhou repetidamente Francis Fukuyama, teve lugar no assalto ao Capitólio de 6 de Janeiro do ano passado. E persiste intoleravelmente no clima de suspeição sobre os resultados e procedimentos eleitorais da grande democracia norte-americana — alimentado pelo Sr. Trump e pelas patrulhas mal-criadas que o seguem.

Este desrespeito pelas regras gerais da democracia liberal está também subjacente — Fukuyama sublinhou enfaticamente — ao desprezo pelas regras gerais internacionais que a ditadura czarista-soviética de Putin violou flagrantemente com a infâme invasão da Ucrânia. Não tenho aqui espaço para desenvolver este tema, que Fukuyama sublinhou enfaticamente. Mas vale a pena recordar que, também na complacência para com a Rússia de Putin, Frank detectou uma estranha aliança entre grupos tribais da extrema-esquerda e da extrema-direita.

6 Tenho de concluir este texto, que já vai longo. E gostaria de o fazer voltando a Karl Popper. Repetiu-me ele insistentemente ao longo de vários anos que a democracia liberal e o respeito por regras gerais não é possível sem um sentido pessoal de dever e de auto-controlo — a que Popper gostava de chamar gentlemanship. E, por gentlemanship, Popper entendia a capacidade de cada pessoa para não se levar a si mesma demasiado a sério, mas para levar muito a sério os seus deveres — especialmente quando a maioria à sua volta só fala nos seus direitos.

Observador (PT)

Quem é Liz Truss, a nova primeira-ministra do Reino Unido




Ela tem Margaret Thatcher como modelo e permaneceu leal a Boris Johnson até o fim. Eleita líder do Partido Conservador e, consequentemente, nova chefe de governo, Truss pretende cortar impostos para impulsionar economia.

Por Barbara Wesel

Não foram poucas as aparições peculiares de Liz Truss. Na conferência do Partido Conservador em 2014, a então ministra de Meio Ambiente, Alimentação e Assuntos Rurais falou sobre a qualidade dos alimentos britânicos, elogiou o trigo do país e a venda de chá Yorkshire para a China. Mas, de repente, ficou irritada com o fato de o Reino Unido importar dois terços de seu queijo: "Isso é uma desgraça!"

Há ainda uma citação de seu tempo como ministra da Justiça, quando foi questionada na Câmara dos Comuns sobre medidas contra drones usados ​​em prisões para transportar drogas. Truss explicou que havia cães de guarda especiais em uma das prisões afetadas, e que eles latiam para deter os drones.

Essas e outras aparições excêntricas de Truss estão circulando nas redes sociais, com seus adversários questionando sua aptidão e sanidade.

Agora ela sucederá a Boris Johnson na chefia do Partido Conservador e, consequentemente, também no cargo de primeira-ministra do Reino Unido. Nesta segunda-feira (05/09), os conservadores elegeram Truss como sua nova líder com 57,4% dos votos, fazendo dela a futura chefe de governo britânica.

A ministra do Exterior já era tida como favorita e, nas últimas pesquisas, aparecia bem à frente de seu rival e ex-ministro das Finanças Rishi Sunak, que obteve 42,6% dos votos.

Nas últimas semanas, cerca de 200 mil membros do partido puderam votar por carta ou pela internet para decidir quem iria substituir Johnson, que pretende apresentar oficialmente sua renúncia como chefe de governo nesta terça-feira à rainha Elizabeth 2ª.

Subida rápida na carreira política

Liz Truss provou ser uma sobrevivente nos governos conservadores dos últimos 12 anos e trilhou um rápido crescimento em sua carreira política, ocupando os cargos de ministra da Justiça, Finanças, Comércio Internacional e, mais recentemente, do Exterior.

Enquanto dezenas de seus colegas foram vítimas de brigas e intrigas dentro do partido, ela sobreviveu até mesmo à recente onda de demissões após a queda de Theresa May e mais uma vez saiu vitoriosa na última grande reforma ministerial de Boris Johnson. Truss sempre foi considerada leal e trabalhadora, sem que seus sucessos tivessem sido avaliados com maior precisão.

Por outro lado, seu colega de partido Rory Stewart – em um relato em seu blog político sobre o tempo em que os dois trabalharam juntos no Ministério da Agricultura – afirma que a gestão de Truss estava presa no estilo "IBM dos anos 1980" e que ela gostava de irritar seus colegas com problemas matemáticos aleatórios, porque "o pai dela devia fazer isso sempre na mesa do café da manhã". Stewart descreve a experiência com Truss como "traumatizante".

Por causa dessas críticas, ela trabalhou incansavelmente em sua imagem. Desde sua mudança para o Ministério do Exterior, Truss se mostrou incansavelmente no Instagram e no Twitter – seja usando um chapéu de pele na Praça Vermelha, em Moscou, seja vestindo um colete e um capacete em visita a tropas britânicas na Estônia, onde também apareceu em cima de um tanque.

Quando os adversários questionaram sua competência – a exemplo de quando ela confundiu Mar Báltico com Mar Negro –, Truss respondeu com fotos de sua visita à Ucrânia e jurou que faria frente a Vladimir Putin. E isso conta mais no Partido Conservador do que deslizes ocasionais de retórica e substância.

Um passado diferente

No entanto, ela não cresceu voltada a trilhar uma carreira no Partido Conservador. Em sua última aparição na campanha eleitoral, no Estádio de Wembley, em Londres, quando ela e seu oponente Rishi Sunak mais uma vez se apresentaram como candidatos a alguns milhares de membros do partido, ela admitiu que não tinha uma "formação conservadora tradicional".

Seu pai era professor de matemática e, sua mãe, enfermeira – e as tendências políticas da família se situavam mais à esquerda. A pequena Liz foi levada a protestos antinucleares, mas há muito tempo pôs fim a esse passado. Isso também se aplica ao seus primórdios na política, no Partido Liberal, quando era ainda estudante. Um fato que ela tachou de pecado juvenil.

Truss age com igual casualidade em relação à sua transição de uma postura pró-União Europeia antes do referendo sobre o Brexit, em 2016, para a mais fervorosa defensora da saída do Reino Unido do bloco europeu.

Nos últimos anos, Truss se moveu consistentemente mais e mais para a direita e, agora, se apresenta como uma das mais firmes defensoras da doutrina conservadora pura. E isso ressoa entre os membros do partido nos círculos eleitorais tradicionais no sul da Inglaterra.

'Até os últimos minutos, Rishi Sunak e Liz Truss brigaram para garantir os votos dos conservadores'

Programa de governo vago

No Estádio de Wembley, Truss deixou claro o que não pretende fazer: aumentar os impostos. Mas mais uma vez frustrou aqueles que tentavam entender como ela planeja lidar com a atual crise dos preços de energia crescentes e a inflação disparada no Reino Unido.

Enquanto circula no país o temor de que, no próximo inverno, muitos britânicos terão que escolher entre "aquecer suas casas ou comer", Truss disse apenas que não acredita em "presentes" do Estado e que os meios testados e comprovados são cortes de impostos para gerar crescimento econômico.

Ela se vê como a sucessora de Margaret Thatcher, que colocou a economia britânica no caminho do crescimento na década de 1980, por meio de um curso drástico que incluiu privatizações e desregulamentações.

Truss também quer combater a inflação com cortes de impostos, mesmo que os economistas do Banco da Inglaterra, o banco central do Reino Unido, discordem e temam que isso possa alimentar a espiral de preços.

O economista Simon Lee, da Universidade de Hull, disse ser "razoável esperar que o novo governo dê apoio financeiro a milhões de famílias, cidadãos e empresas para sobreviverem ao aumento do custo de vida". Afinal, o Reino Unido gastou mais de 2 trilhões de libras para impedir que o país entrasse em colapso durante a crise financeira de 2008 e durante a pandemia de covid-19.

Por outro lado, Truss deixou em aberto como pretende ajudar as famílias em dificuldade – o que será uma das tarefas árduas do futuro ministro das Finanças. Mas a única maneira de levantar bilhões de libras seria contraindo ainda mais dívidas.

Já durante a crise do coronavírus, a dívida nacional britânica disparou. Se novos programas de ajuda abrangentes se tornarem necessários, a carga sobre o Estado também aumentará por causa das taxas de juros.

"Silêncio de ferro" em vez de dama de ferro?

Mas Truss simplesmente não promete nada. Ela apresentará seu orçamento quando estiver no cargo, afirmou de forma sucinta. Os cortes de impostos garantiriam que "as pessoas tivessem mais dinheiro no bolso". No entanto, isso não ajuda a massa de britânicos de baixa renda que agora lutam para pagar as crescentes contas de gás e eletricidade.

Truss contesta esse argumento com a ideia de que basta garantir mais oferta no mercado de energia – e, para isso, quer liberar dezenas de novas concessões para a produção de petróleo e gás no Mar do Norte. As preocupações com o meio ambiente não desempenham nenhum papel para ela – tampouco as questões sobre a reforma do mercado de energia.

Na política externa, por outro lado, fica claro que ela busca imediatamente uma disputa com a Europa para anular imediatamente o protocolo da Irlanda do Norte, que faz parte do tratado do Brexit. Adam Harrison, do observatório Conselho Europeu de Relações Exteriores, afirma que Truss conduz o Brexit com "o fervor de um convertido".

Segundo Harrison, sua visão de mundo é "moldada pelo [ex-presidente americano Ronald] Reagan, em que o Reino Unido está com os Estados Unidos contra a Rússia e a China, sem a ajuda dos 'covardes' europeus. Ela gosta de apimentar seus comentários sobre a situação internacional com referências à Guerra Fria e à liberdade".

Isso pode parecer preocupante, mas Truss não precisou, afinal, convencer a maioria dos britânicos sobre seus planos, mas apenas cerca de 200 mil membros do Partido Conservador, que representam cerca de 1,5% da população britânica.

As eleições gerais britânicas ocorrerão em dois anos, embora muitos duvidem que um governo de Liz Truss consiga durar tanto tempo. De fato, a maioria dos parlamentares conservadores teria preferido seu oponente, o ex-ministro das Finanças Rishi Sunak.

Ainda está em aberto se – e por quanto tempo – eles seguirão Truss. Afinal, eles já mostraram com Theresa May e, mais recentemente, com Boris Johnson, como lidam com primeiros-ministros fracassados. O próximo inverno de descontentamento no Reino Unido – com manchetes sobre fome e pobreza, sistema de saúde falido e ondas de greves – será um teste para uma chefe de governo sem experiência.

Resta saber se Liz Truss se livrará de sua ideologia conservadora tão rapidamente quanto suas convicções anteriores. De qualquer forma, o choque entre a dura realidade e suas crenças sobre livre-mercado será um espetáculo interessante.

Deutsche Welle

O que é ser genocida?




Considerado o maior dos crimes, o genocídio é definido como o extermínio em massa de um grupo específico de pessoas, a exemplo do que fizeram os nazistas contra com a população judaica nos anos 1930 e 1940, quando mais de 6 milhões de judeus foram mortos no Holocausto.

Por Matheus Magenta, em Londres

Genocida, portanto, seria aquele que participou desse crime: seja governante, funcionário público ou da membro da sociedade civil. Essa participação inclui o genocídio em si, o conluio para cometê-lo, a incitação direta e pública, a cumplicidade e a tentativa de praticar esse crime.

Mas por trás dessa definição há um emaranhado jurídico sobre o que constitui de fato um genocídio e quando o termo pode ser aplicado.

E, para além das questões legais, o termo vem se tornando cada vez mais popular no debate político no Brasil. Em 2021, genocídio chegou a ser o termo mais popular do ano no dicionário brasileiro online Dicio, com mais de 4,5 milhões de buscas.

Genocídio também foi citado em pelo menos 1.500 discursos no Plenário da Câmara dos Deputados desde 1967, ano em que o deputado federal Cunha Bueno (Arena-SP) defendeu a extradição do austríaco Franz Stangl, oficial nazista que comandou campos de extermínio de judeus na Polônia e foi capturado no Brasil.

Tanto no Congresso quanto nas redes sociais e na imprensa utiliza-se os termos genocida ou genocídio, por exemplo, para falar sobre assassinatos de negros ou pobres, sobre perseguição e morte de indígenas e, por vezes, sobre as mortes decorrentes da pandemia de covid-19 durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).

O presidente, aliás, foi acusado formalmente de genocídio no Tribunal Penal Internacional (TPI) — ele nega ter cometido qualquer crime na pandemia ou contra indígenas.

'Mais de 6 milhões de judeus foram mortos no Holocausto pelos nazistas'

E para entender todas essas disputas em torno da palavra genocida, primeiro vale explicar como surgiu o crime de genocídio e quantos de fato aconteceram ao longo do século 20. Depois, vamos analisar as principais acusações de genocídio específicas contra Bolsonaro e o que ele diz sobre elas. E por fim, falaremos das críticas a um suposto uso exagerado desses termos ou ao uso como arma política contra adversários.

As origens dos termos genocida e genocídio

O termo "genocídio" foi cunhado em 1943 pelo jurista judeus polonês Raphael Lemkin, que combinou a palavra grega genos (raça ou tribo) com o termo em latim cide (matar). Após testemunhar os horrores do Holocausto, no qual foram mortos quase todos os membros de sua família, Lemkin passou a defender o reconhecimento do genocídio como um crime na lei internacional.

Seus esforços foram fundamentais para a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948. O texto entraria em vigor em 1951, sendo depois ratificado pelos países.

O artigo 2º da convenção define o genocídio como "qualquer um dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, parcial ou totalmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como":

- Assassinato de membros do grupo;

- Dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

- Submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial;

- Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

- Transferência forçada de menores de idade do grupo atingido para um outro.

Há, no entanto, grandes divergências sobre como definir um genocídio e, por extensão, sobre quantos genocídios ocorreram no século 20.

Para alguns, só houve um genocídio no século passado: o Holocausto, durante o qual foram mortos mais de 6 milhões de judeus, além de adversários políticos, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, comunistas, testemunhas de Jeová, integrantes da etnia roma e outras minorias.

Outros afirmam que houve, além do Holocausto, pelo menos outros dois genocídios segundo os termos da convenção da ONU de 1948: o assassinato em massa de armênios por turcos otomanos entre 1915 e 1920, uma acusação que a Turquia nega; a morte em Ruanda de cerca de 800 mil pessoas (Tutsi, Twa, e Hutus moderados) em 1994.

Mais recentemente, outros casos foram acrescentados a essa lista por alguns especialistas. Um deles é o massacre de Srebrenica, na Bósnia, em 1995, que foi considerado um genocídio pelo TPI para a Antiga Iugoslávia.

'Genocídio em Ruanda deixou mais de 800 mil mortos'

Outros casos considerados por parte dos especialistas são a Grande Fome da Ucrânia causada pela União Soviética (1932-33); a invasão do Timor Leste pela Indonésia (1975) e os assassinatos cometidos pelo Khmer Vermelho no Cambodja nos anos 1970, quando estima-se que 1,7 milhão de cambojanos morreram por causa de execuções sumárias, fome e trabalho forçado.

Em relação ao último, há divergências sobre o fato de que muitas vítimas do Khmer Vermelho eram alvo por causa de questões sociais ou políticas, o que os deixaria de fora da definição de genocídio aprovada na ONU.

Além desses casos, em 2010, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu um mandado de prisão contra o presidente do Sudão, Omar al-Bashir, sob acusação de genocídio. Ele liderou uma campanha contra cidadãos da região sudanesa de Darfur na qual 300 mil pessoas foram mortas ao longo de sete anos de conflito.

Mais recentemente, em março de 2016, os Estados Unidos classificaram o grupo jihadista Estado Islâmico de promover genocídio contra minorias yazidi, xiita e cristãs no Iraque e na Síria. "(O Estado Islâmico) é genocida por autoproclamação, por ideologia e por suas ações, no que diz, no que acredita e no que faz", disse à época John Kerry, então secretário de Estado americano.

Em 2017, a Gâmbia acusou formalmente, na CIJ, o governo do Mianmar de cometer genocídio contra população da minoria rohingya, com "operações amplas e sistemáticas de limpeza étnica". Centenas de milhares de pessoas fugiram para a vizinha Bangladesh, e estima-se que milhares tenham sido mortos. Mianmar nega a acusação.

Em 2021, os governos de EUA, Canadá e Holanda acusaram a China de cometer genocídio contra o povo da minoria uighur, na região autônoma de Xinjiang, no noroeste do país.

Há evidências de que o governo chinês submeteu uigures à esterilização forçada, ao trabalho forçado, a detenções em massa e torturas e estupros sistemáticos, ações que muitos afirmam que se enquadram no critério de genocídio. A China nega a acusação.

O TPI, por sua vez, rejeitou o pedido de uigures para investigar formalmente a China sob acusação de genocídio porque o governo chinês não é signatário do tribunal.

Acusações de genocídio contra Bolsonaro

No fim de 2019, duas entidades de direitos humanos apresentaram uma representação contra o presidente Jair Bolsonaro perante o TPI, pedindo uma "investigação preliminar" das ações do presidente sob acusação de "incitação ao genocídio e ataques sistemáticos contra populações indígenas". Outras entidades, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), também apresentaram acusações semelhantes contra o presidente no TPI.

O documento da Comissão Arns e do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos, por exemplo, pretendia alertar o TPI sobre violações que, segundo eles, estariam colocando indígenas em perigo. Cabe ao próprio tribunal decidir se o caso deve ser oficialmente investigado num inquérito.

'Presidente Jair Bolsonaro foi acusado formalmente de genocídio ao Tribunal Penal Internacional'

Na nota informativa entregue pelas entidades de diretos humanos à Procuradoria do TPI, os autores afirmam haver "atividades específicas de desmantelamento de políticas públicas protegendo direitos sociais e ambientais, junto a processos de demarcação de terras indígenas". O texto cita também a "perseguição e demissão de servidores de departamentos sociais e ambientais por advertir contra políticas de desmantelamento ou por questionar versões oficiais dos fatos".

"Este documento mostra como o discurso sistemático do governo, minando as leis de proteção ambiental e desdenhando as populações indígenas, (...) está incentivando a violência contra essas populações e os defensores de direitos sociais e ambientais", dizem as entidades.

O documento cita o Artigo 15 do Estatuto de Roma, documento de 1998 que embasou a criação do TPI, pedindo "responsabilização por incitação ao cometimento de crimes contra a humanidade e apoio para o genocídio contra os povos indígenas e comunidades tradicionais do Brasil".

Há pelo menos três representações relacionadas contra Bolsonaro em tramitação no TPI com acusações de crimes contra indígenas brasileiros. O caso tem avançado, o que é algo inédito na história do país, mas o tribunal ainda não decidiu se o presidente será investigado formalmente.

Organismo internacional criado em 2002, esse tribunal está encarregado de julgar indivíduos acusados de quatro crimes graves: crimes contra a humanidade, genocídio, crimes de guerra e, desde 2018, crimes de agressão — em que políticos e militares podem ser responsabilizados por invasões ou ataques de grandes proporções.

O que diz Bolsonaro?

O presidente Jair Bolsonaro e seus auxiliares têm negado reiteradamente qualquer tipo de crime do governo federal contra indígenas ou em ações na pandemia de covid-19.

As acusações de genocídio contra Bolsonaro voltaram à tona durante as discussões sobre o relatório final da CPI da Covid no Senado, em 2021. Afinal, o presidente poderia ser acusado desse crime ou não?

As versões preliminares do documento elaborado pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL) sugeriam pedir o indiciamento de Bolsonaro pelo genocídio de povos indígenas. "Todo um conjunto de agressões, negligências e atos que deixam os indígenas mais vulneráveis à pandemia convergem para a ocorrência do crime de genocídio […] Assim, como já dito, o impacto da covid-19 sobre os povos originários foi grave e desproporcional, situação que exige a responsabilização dos respectivos culpados", dizia um trecho do texto.

Mas a proposta causou um racha no grupo majoritário da comissão porque parte dos senadores não identificou elementos suficientes para justificar a acusação desse crime (como provas de que o presidente teve a intenção de promover a morte de indígenas). Após intensas negociações, o termo foi retirado do relatório final. O texto aprovado, no entanto, pediu o indiciamento do presidente por crimes contra a humanidade.

Os crimes contra a humanidade são uma expressão que se originou no Direito Penal de guerra e estão previstos no Estatuto de Roma. O Brasil é signatário desse tratado.

De acordo com o estatuto, há 11 subtipos de crimes contra a humanidade, tais como: homicídio, escravidão, extermínio, deportação ou transferência forçada de população, agressão sexual, desparecimento forçado de pessoas, perseguição, atos desumanos que causem sofrimento intencional, entre outros.

"A diferença básica é que o crime contra a humanidade não precisa ter uma inspiração racial, religiosa ou étnica (como no caso do genocídio). Basta que você identifique uma série de ataques generalizados e sistematizados contra a população civil", explicou Gustavo Badaró, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) à BBC News Brasil.

Além do pedido de indiciamento por crimes contra a humanidade, Bolsonaro foi acusado também de crimes comuns e crimes de responsabilidade. Para a CPI, por exemplo, em vez de proteger a vida dos brasileiros da covid-19, o presidente teria contribuído para o agravamento da pandemia ao demorar a comprar vacinas, incentivar o uso de medicamentos sem comprovação científica, promover aglomerações, entre outros comportamentos.

Em declaração sobre as acusações da CPI da Covid, Bolsonaro afirmou que os senadores "nada produziram a não ser o ódio e o rancor entre alguns de nós. Mas nós sabemos que não temos culpa de absolutamente nada. Sabemos que fizemos a coisa certa desde o primeiro momento."

Em discurso no Plenário da Câmara dos Deputados, o parlamentar Bibo Nunes (PSL-RS) criticou aqueles que "durante meses chamaram o presidente Bolsonaro de 'genocida'" sem qualquer embasamento. "Eles não têm noção do que é um genocida! Genocida é quem extermina uma raça, uma religião, uma etnia. Até hoje no Brasil morreu 0,3% da população. Isso está muito distante de ser um genocídio, e o culpam — culpam! —, como se ele fosse culpado por todas as mortes. Isso representa a divina decadência do bom senso da esquerda brasileira."

Em agosto de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou a retirada do ar de um vídeo em que o ex-presidente Lula chama Bolsonaro de genocida. O partido do atual presidente alegava discurso de ódio e ofensa à honra e à imagem de Bolsonaro.

Ao longo de dois anos de pandemia, mais de 660 mil pessoas morreram no Brasil em decorrência da covid-19.

Críticas a acusações de genocídio

Desde a sua adoção, a convenção da ONU sobre genocídio enfrentou duras críticas de todos os lados, principalmente por pessoas frustradas com a dificuldade de aplicar o termo a casos específicos.

Alguns analistas afirmam que a definição de genocídio é tão estreita que nenhum dos assassinatos em massa cometidos desde a adoção da convenção seria enquadrado nela.

Entre as principais críticas e objeções à Convenção do Genocídio estão: a convenção exclui grupos sociais e políticos; a definição é limitada sobre atos diretos contra pessoas, e exclui atos contra o ambiente em que elas se sustentam ou preservam sua cultura; provar a intencionalidade é extremamente difícil; países-membros da ONU hesitam em acusar outros países ou intervir neles, como foi o caso de Ruanda; não há um corpo de legislação internacional que esclareça os parâmetros da convenção (ainda que isso esteja mudando à medida que o TPI decide sobre acusações de genocídio); é difícil definir o que é "destruição parcial", e determinar quantos assassinatos configuram um genocídio.

Mesmo com todas as críticas, muitos juristas defendem que dá para reconhecer quando ocorre um genocídio.

Em seu livro Ruanda e Genocídio no Século 20, o ex-secretário-geral da organização Médicos Sem Fronteiras Alain Destexhe diz que "o genocídio é um crime em uma escala diferente de todos os outros crimes contra a humanidade e implica uma intenção de exterminar completamente um determinado grupo. O genocídio é, portanto, o maior e mais grave dos crimes cometidos contra a humanidade".

Destexhe se mostra preocupado que os termos genocídio ou genocida se tornaram vítimas de uma "espécie de exagero verbal, algo muito parecido ao que ocorreu com a palavra 'fascista'", transformando perigosamente esses termos em "lugar-comum".

Michael Ignatieff, ex-diretor do Centro Carr para Políticas de Direitos Humanos da Universidade Harvard, concorda com a avaliação de Destexhe. Para ele, o termo "genocídio" passou a ser usado como uma "validação de todo tipo de vitimização".

"A escravidão, por exemplo, é chamada de genocídio quando, mesmo sendo uma infâmia, é mais um sistema de exploração do que de extermínio", afirmou Ignatieff em palestra sobre o tema.

Para além das acusações jurídicas baseadas em evidências ou não, na política o uso da palavra genocídio carrega uma estratégia política parecida com o que ocorre com outros termos, como comunista, fascista ou nazista.

"A função política é a satanização do outro. Você transforma o adversário, em termos discursivos, em uma posição inaceitável de um ponto de vista moral", diz Wilson Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor do livro Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema Direita Chegou ao Poder.

BBC Brasil

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