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domingo, junho 05, 2022

Colômbia: o fim da "ditadura perfeita"?




Quase todo o século XX colombiano se passou entre liberais e conservadores. Mas aquilo a que chamaram “a ditadura perfeita”, assente numa oligarquia de quase 100 anos, pode ter sucumbido nas eleições.

Por Jaime Nogueira Pinto (foto)

A primeira volta das eleições presidenciais na Colômbia, no passado Domingo, 29 de Maio, foi mais um sinal da mudança política, ideológica e sociológica que assalta o mundo euroamericano, com novas forças de esquerda e de direita a concorrer com os partidos tradicionais ou mesmo a tomar o seu lugar.

O paradigma é válido para muitos países da União Europeia e está a repetir-se no continente americano, de Norte a Sul. Nos Estados Unidos o fenómeno aconteceu no interior dos partidos tradicionais, com o wokismo democrata e o trumpismo republicano a ganharem terreno, numa radicalização progressiva, não só de ideias mas também de métodos de luta, que chega a pôr em causa a própria separação de poderes. Para Robert Reich, é de uma verdadeira “guerra civil ideológica” que se trata, ou foi assim que o antigo Secretário de Estado do Trabalho de Bill Clinton recentemente descreveu o clima político norte-americano no New York Times. Também no Brasil se espera um duelo final entre Jair Bolsonaro e Lula da Silva nas próximas presidenciais já que nenhum dos candidatos centristas deverá resistir à bipolarização.

Destinos trágicos

A Colômbia, pela força da ficção (e da realidade), tem o infortúnio de quase só ser conhecida como a pátria dos narcotraficantes, de Pablo Escobar aos cartéis de Cali e Medellín. Mas tal como Portugal é mais do que uma pátria de futebolistas ou o palco de um último sonho comunista na quase velhice da URSS, também a Colômbia é mais do que o cenário dos narcos.

Diz-se em Espanha que é na Colômbia que se fala “o melhor castelhano das Américas”; porém, mais importante do que esta ambígua distinção do antigo colonizador, é a grande literatura que a Colômbia tem dado ao mundo, a começar por Gabriel García Márquez mas sem se esgotar nele – com autores como Hector Abad Faciolince, Laura Restrepo ou Juan Gabriel Vasquez, todos traduzidos em português, ou como William Ospina, criador de uma empolgante trilogia inspirada nas viagens, aventuras e atrocidades de toda uma épica galeria de heróis “maus”: os conquistadores e colonizadores espanhóis da América Pedro de Ursúa, Francisco de Orellana, Gonzalo Pizarro, e Lope de Aguirre.

Há, na vida real colombiana, um inequívoco destino trágico que paira sobre as cabeças de quem lá vive: dizem a s estatísticas que, entre 1958 e 2012, foram ali assassinadas por razões políticas 220 mil pessoas. Dessas 220 mil pessoas, pobres, remediadas e privilegiadas, 80% eram civis, não combatentes.

Álvaro Gómez Hurtado, que conheci em Washington em Dezembro de 1980 a seguir à eleição de Ronald Reagan, foi um destes assassinados, e o seu itinerário de político conservador colombiano e de homem do sistema diz muito do país de que estamos a falar.

Álvaro Gomez era filho de Laureano Gomez, chefe do Partido Conservador, várias vezes ministro e eleito Presidente da República em 1950. Laureano ficou doente e foi substituído por um político da sua confiança, o ministro da Defesa Roberto Urdaneta; mas em 1953 o golpe militar do general Rojas Pinilla interrompeu o governo de Urdaneta. O golpe aconteceu no quadro de um conflito civil que ficaria conhecido por “La Violencia”. A família de Laureano Gomez esteve exilada em Espanha, nos anos 50. No regresso à Colômbia, Álvaro fez a sua carreira universitária e jornalística, dirigindo El Siglo, e veio a assumir a liderança do Partido Conservador, “sucedendo” ao pai. Enquanto líder dos conservadores negociou com o chefe do Partido Liberal um acordo para uma Frente Nacional. Candidatou-se pela primeira vez à presidência em 1974 (os outros dois candidatos eram, como ele, filhos de ex-presidentes) mas perdeu para Lopez Michelsen. Foi embaixador nos Estados Unidos e em 1986 voltou a candidatar-se, sendo derrotado pelo liberal Virgilio Barco. Em Março de 1988 foi raptado por elementos do M-19 (Movimento 19 de Abril), uma organização extremista de guerrilha urbana que acabou por libertá-lo ao fim de 53 dias de cativeiro e de negociações. Concorreu outra vez à presidência em 1990, numa campanha eleitoral em que três dos candidatos foram assassinados, e voltou a perder, dessa vez para o liberal César Gaviria. Em 2 de Novembro de 1995 Álvaro foi assassinado ao sair de dar uma aula de História Constitucional. Não se sabe se por terroristas de esquerda, se por paramilitares, se por narcos.

Uma “ditadura perfeita”

Quase todo o século XX colombiano se passou, politicamente, entre liberais e conservadores. Houve derivas à esquerda, influenciadas pelo Partido Comunista da Colômbia, alinhado com Moscovo, e um período curto de ditaduras militares, como a de Rojas Pinilla, que alguns qualificarão como “populista de direita”, mas o bipartidarismo resistiu.

Com a revolução cubana, o cisma sino-soviético e o Maio de 68 surgiram na Colômbia esquerdas fora da tutela soviética. Apareceu ainda a Teologia da Libertação, de que foi representante o padre colombiano Camilo Torres, que integrou o Exército de Libertação Nacional e morreu em combate na guerrilha. Assim, os anos 70 viram ali um revivalismo de famílias de esquerda, trotskistas e chinesas, partidárias da acção directa e hostis à luta eleitoral legal, mas sem que o sistema se alterasse.

A tudo isto viera juntar-se o narcotráfico, com os cartéis da droga e a sua imensa riqueza e influência na política, pela corrupção e pelo medo. Note-se que o país não alcançou o lugar cimeiro na economia narco pela produção de cocaína, mas sim pela sua refinação e distribuição internacional. Nos anos 80, as receitas da cocaína ultrapassaram as do café.

Mas nem esta a economia paralela alterou o rotativismo, que entrou pelo século XXI e só foi aparentemente interrompido em 2010, com a eleição de Juan Manuel Santos, pelo Partido Social da Unidade Nacional. Santos sucedia a Álvaro Uribe, do Partido Liberal. O seu Partido Social da Unidade Nacional tinha sido criado em 2005 por dissidentes do Partido Liberal, que depois se juntaram a outros liberais e conservadores, propondo reformas económicas liberalizantes e uma aproximação aos Estados Unidos e afirmando um comum repúdio do bolivarianismo chavista. Mas apesar da aparente novidade das siglas, as famílias dominantes eram as mesmas e a oligarquia permanecia intacta. Ivan Duque, um protegido de Uribe, venceria as eleições de 2018, derrotando Gustavo Petro, esse sim candidato de uma nova esquerda alheia ao “sistema” e independente do Partido Liberal.

Entretanto, nem a fragmentação activista nem o narcotráfico nem a guerrilha pareciam alterar substancialmente um sistema que, praticamente desde a independência, mantinha o poder nas mãos de uma oligarquia não só de classe, mas também de famílias, com o poder a rodar entre conservadores e liberais e a passar de pais para filhos e de filhos para netos. Entre 1914 e 2010, tirando o quinquénio militar entre 1953 e 1958, conservadores e liberais foram alternando na Presidência da República: era, diziam os críticos, uma “ditadura perfeita”, em que o governo, conservador ou liberal, acabava por ir parar “sempre aos mesmos”.

Os filósofos e historiadores gregos, de Aristóteles a Tucídides, perceberam e registaram a natureza inevitavelmente oligárquica do poder político em estabilidade; coisa que as modernas escolas realistas, de Maquiavel a Vilfredo Pareto, de Karl Marx a Raymond Aron, também souberam perceber e registar, mesmo quando a criticavam. As excepções, o poder pessoal de um Rei ou de Líder – a monocracia absoluta – ou o poder de todos – a democracia plena – podiam ser formas constitucionais, mas acabavam, na prática, por assumir contornos oligárquicos, num processo de “circulação das élites”, como o descrito por Pareto. Daí a “ditadura perfeita” da democracia liberal colombiana.

Entre dois “outsiders”

Nesta eleição, o candidato apoiado pelas direitas sistémicas conservadoras e liberais, na coligação Equipo por Colombia, era Frederico (“Fico”) Gutiérrez, ex-alcaide de Medellin. Mas “Fico” ficou pelo caminho, com 24% dos votos.

O candidato da Esquerda Unida, Gustavo Petro, pela Unión Patriótica, que obteve 40% dos votos, tem um perfil diferente do dos políticos colombianos tradicionais. Nascido em 1960, Petro integrou aos 17 anos a guerrilha do M-19, o grupo terrorista que protagonizou o assalto ao Palácio da Justiça, com mais de 100 vítimas, mas, desde então, mudou muito. Em 1990 foi um dos signatários do acordo de paz com o Governo; em 2010 foi candidato à Presidência da República pelo Polo Democrático Alternativo; em 2012 foi eleito alcaide de Bogotá e em 2018 concorreu contra Ivan Duque e perdeu.

Agora que os tempos são outros, volta a tentar a presidência. Petro apresenta os clássicos programas de esquerda latino-americana – como as nacionalizações no sector económico, na saúde e na educação – mas traz versões neo-ecológicas, como proibir as novas explorações petrolíferas o que na actual conjuntura nacional e mundial, em que a energia é um recurso útil, peca por algum irrealismo. O candidato preocupou-se, também, em actualizar-se “ideologicamente”, incluindo no programa os temas da nova agenda woke e LGBT. Para tal, foi buscar como candidata a vice-presidente uma mulher negra – Francia Marquez Mina –, que vem denunciando o “racismo sistémico”, o “privilégio branco” e o “supremacismo branco” como factores estruturantes da desigualdade social na Colômbia.

Para os críticos, a agenda agora agitada por Petro é uma importação norte-americana sem tradução directa na Colômbia, onde dizem que nunca houve Apartheid ou sequer segregação oficial. É a universalização cega de uma cartilha neomarxista que quer substituir a luta de classes pela luta de identidades, a fim de compensar a erosão do velho binómio proletariado/burguesia com a constante adição de outros polos conflituantes: brancos/negros; homens/mulheres; heterossexuais/homossexuais, bissexuais, transgéneros e outros géneros.

Mas a grande surpresa da eleição, com 28% dos votos, foi um outro “outsider”: Rodolfo Hernandez, de 77 anos, empresário da construção civil e ex- alcaide de Bucaramanga, capital da província de Santander, a quinta província económica da Colômbia mas a primeira em renda per capita e a que tem menos desemprego. Hernandez fundou em 2019 a Liga de Gobernantes Anticorrupción e é descrito como “independente, controverso, antipolítico e populista”. Qualifica-se como “um engenheiro que quer tirar os ladrões do governo”, acrescentando que a corrupção é o maior imposto que os colombianos pagam.

Quando lhe chamam o Trump colombiano, fazem-no pela sua linguagem directa e irreverente, o uso e abuso de redes sociais, como o Tiktok, onde tem mais de meio milhão de seguidores. Algumas das suas propostas de controlo de gastos públicos são engenhosas mas demagógicas, como nomear embaixadores colombianos já residentes no exterior, ou premiar os denunciantes de actos de corrupção de políticos e funcionários.

Populismo à porta?

Parte dos estudiosos do populismo latino-americano considera que a Colômbia, uma grande economia cafeeira, por razões da sua tardia industrialização, não conheceu fenómenos populistas de tipo nacional-autoritário, como o peronismo argentino e o varguismo brasileiro. Eliecer Gaitán, nos anos 30 e 40, terá estado próximo desse tipo de populismo, mas Gaitán não triunfou e foi assassinado em 1948, em Bogotá.

O confronto da segunda volta, em 19 de Junho, é, por isso, uma novidade, O duelo entre dois metecos ou hilotas que capitalizaram o descontentamento da maioria marca a ruptura da hegemonia de uma classe política e político-social que monopolizou o poder num rotativismo pactado e sobreviveu a décadas de violência e crime organizado.

“Fico” Gutiérrez disse que iria votar em Hernandez; Hernandez respondeu-lhe que não fazia alianças. Assim, num país importante de um subcontinente também importante – que as últimas Administrações americanas descuraram e onde a China tem vindo a avançar economicamente em grande força nos últimos vinte anos – o resultado das eleições é ainda uma incógnita.

Observador (PT)

Ameaça de boicote paira sobre cúpula das Américas




O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, espera que a Cúpula das Américas estabeleça novas bases com a América Latina e o Caribe, mas a reunião começa na segunda-feira sobre areia movediça devido às ameaças de boicote de países como o México, em meio à crise migratória.

Faltando apenas dois dias para sua abertura em Los Angeles, cidade que abriga a maior comunidade hispânica dos Estados Unidos, o anfitrião ainda não revelou a lista de governantes convidados, que se tornou a lista de divergências.

Sua insinuação há algumas semanas de que não convidaria Cuba ou os presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e da Nicarágua, Daniel Ortega, abriu a caixa de Pandora.

México, Bolívia, Guatemala, Honduras e o bloco caribenho de 14 nações colocaram em dúvida sua participação se forem excluídos os três países, que os Estados Unidos dizem violar a Carta Democrática Interamericana.

Esta não seria a primeira participação de Cuba em uma dessas cúpulas, já que o país caribenho esteve presente nas duas últimas edições.

- 'O drama' -

Biden está preocupado particularmente com a ausência do presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador nesta nona reunião dos países da região.

"Nossa relação com o México é e continuará sendo positiva" e o presidente "quer pessoalmente" que López Obrador compareça, disse esta semana Juan González, principal conselheiro da Casa Branca para as Américas.

Devido ao problema migratório, os Estados Unidos precisam de López Obrador e ele "vê que a posição de desafiar Biden o faz aparecer como um líder latino-americano", comentou à AFP Michael Shifter, professor da Universidade de Georgetown.

"Todo o drama sobre quem vai participar e quem não vai e por quais razões mostra que há uma grande desconexão" e que os Estados Unidos "perdem influência especialmente na América do Sul, mas também no México".

O presidente do Chile, Gabriel Boric, e o da Argentina, Alberto Fernández, se uniram ao chamado para estender os convites a todos, mas estarão presentes na reunião.

Mesmo assim, o chanceler argentino Santiago Cafiero reiterou neste sábado a necessidade de "uma reunião sem exclusões, um espaço de encontro onde seja possível discutir a partir das diversidades, mas também do respeito. Se existem divergências, que elas ocorram, mas com a presença de todos na mesma mesa".

Juan González, por sua vez, considera que os Estados Unidos "têm sido muito respeitosos com as diferentes perspectivas" dos países.

- Caravana de migrantes -

Na segunda-feira, no sul do México, uma caravana de 11.000 migrantes venezuelanos planeja seguir em direção aos Estados Unidos.

E a migração pode afetar Biden nas eleições de meio de mandato em novembro, nas quais ele pode perder o controle do Congresso.

Washington espera chegar a um acordo sobre uma Declaração Migratória, para integrar os migrantes nos países de acolhimento e gerir melhor a crise.

O desenvolvimento econômico é outra preocupação geral, mas exige o desembolso de recursos e resta saber o que os Estados Unidos podem propor.

"Não vejo o governo aparecendo com fortes compromissos financeiros", mas sim "competindo em igualdade de condições e com pelo menos um certo número de parceiros" como Costa Rica, Panamá, República Dominicana, Canadá, Chile, Uruguai e Colômbia, aponta Manuel Orozco, diretor do Programa de Migração, Remessas e Desenvolvimento do Diálogo Interamericano, em uma reunião virtual com a imprensa.

Benjamin Gedan, do Programa Latino-americano do centro de estudos Woodrow Wilson, estima que "o barômetro real para esta cúpula será se os Estados Unidos oferecem acesso significativo a novos mercados, empréstimos e assistência externa para apoiar a recuperação".

No nível diplomático, a cúpula, que terminará em 10 de junho, com a guerra na Ucrânia como pano de fundo, permitirá que Biden se encontre com alguns presidentes.

Entre eles o brasileiro Jair Bolsonaro, aliado do ex-presidente Donald Trump e com quem o atual inquilino da Casa Branca não se encontra há quase um ano e meio.

Os dois discutirão questões bilaterais e globais, insegurança alimentar, resposta econômica à pandemia, saúde e aquecimento global, já que "todas as prioridades da cúpula são áreas nas quais o Brasil desempenha um papel incrivelmente importante", listou Juan Gonzalez.

O sucesso da cúpula, para Rebecca Bill Chavez, presidente do Diálogo Interamericano, dependerá se o encontro servirá "como uma plataforma de lançamento para um compromisso regional e focar em questões que encontrem eco" nos diferentes países.

AFP / Estado de Minas

A foto da guerra




O impacto das notícias não se compara às fotos da Guerra do Vietnã

Por Demétrio Magnoli (foto)

Cinquenta anos atrás, em 8 de junho de 1972, aviões sul-vietnamitas bombardearam o povoado de Trang Bang, não muito distante de Saigon, que havia sido ocupado por forças do Vietnã do Norte. Usaram napalm, um composto incendiário lançado pela aviação dos EUA contra cidades japonesas na Segunda Guerra Mundial.

Nick Ut, um fotojornalista vietnamita-americano da AP, capturou com sua Leica a foto que definiria a Guerra do Vietnã. Nela, em meio a um grupo de crianças que fugiam aterrorizadas por uma estrada, estava Kim Phuc, 9 anos, a pele em brasa descolando-se de seu corpo.

Na verdade, muitas fotos definiram a tragédia nas selvas da Indochina. Malcolm Browne imortalizou o monge que ateou fogo em si mesmo numa rua de Saigon, em 1963, em protesto contra a perseguição aos budistas. Marc Riboud eternizou a imagem da jovem Jan Rose, uma flor nas mãos, diante das tropas da Guarda Nacional, protestando em frente ao Pentágono, em 1967.

1968, ano da morte. O fotógrafo militar Ronald Haeberle fixou a cena dos corpos de crianças e mulheres assassinados por tropas americanas no massacre de My Lai, em março. Art Greenspon congelou a cena pungente de soldados americanos recuperando companheiros feridos numa trilha de mata.

Eddie Adams captou o momento em que o chefe de polícia de Saigon atirou a sangue frio na cabeça de um suspeito rendido. Fim da linha: em 1975, Hubert Van Es perenizou a desesperada evacuação por helicópteros da embaixada americana no Vietnã do Sul.

O fotógrafo Nick Ut salvou a vida da garota Phuc e ganhou o Pulitzer pela imagem icônica. A foto quase parou no filtro da AP, que vetava nus frontais, foi objeto da suspeita de Richard Nixon, que desconfiava de manipulação, e sofreu breve censura de Mark Zuckerberg, que a suprimiu do Facebook num dia de 2016. Mas, no rastro de tantas outras, serviu para "parar a guerra", como queria o fotojornalista.

Jane Fonda visitou Hanoi em 1972 e deixou-se fotografar numa bateria anti-aérea, ao lado de soldados norte-vietnamitas. A imagem, captada por um fotógrafo militar anônimo, correu o mundo e a metamorfoseou de Barbarella em Hanoi Jane.

As forças dos EUA venceram praticamente todas as batalhas travadas na Indochina. Perderam a guerra no front interno, sob a ofensiva devastadora das manifestações pacifistas. A primeira guerra da "era da informação" evidenciou os limites postos pela imprensa livre às "democracias marciais".

Os EUA extraíram duas conclusões principais da Indochina. No Guerra do Golfo (1991), soldados profissionais tomaram o lugar do exército de conscritos. Na invasão do Iraque (2003), os jornalistas foram embutidos na redoma supervisionada das unidades militares. Muitos reduziram-se à condição de "mascotes dos militares", na precisa descrição de Gay Talese.

A "era da informação" inaugurou, também, uma era de renovado controle estatal sobre o fluxo de informações. Aí reside uma vantagem decisiva dos regimes autoritários, na hora da guerra. A Rússia praticou massacres indiscriminados de civis em Grozny, na Chechência (1999-2000) e em Alepo, na Síria (2016), antes de infligir bombardeios devastadores sobre cidades ucranianas, na invasão em curso. Nesses lugares de matança, não havia fotojornalistas. A extensão das tragédias só ficou estabelecida depois, por meio de investigações baseadas em imagens de satélites.

O New York Times documentou, a posteriori, com base nesse recurso e em vídeos precários obtidos por celulares, as atrocidades cometidas em Bucha (Ucrânia). Mas o impacto desse tipo de notícia não se compara às fotos publicadas quase em tempo real da Guerra do Vietnã.

Faltam os rostos, as expressões, a escala humana. Há ciência e técnica, não uma experiência compartilhada de horror. Os cínicos discursos de justificação de uma guerra criminosa amparam-se no exílio forçado dos fotógrafos.

Folha de São Paulo

É preocupante a politização do Supremo - Editorial




A campanha eleitoral deste ano é marcada por um fato singular: as mentiras do presidente Jair Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas e a campanha bolsonarista contra Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Supremo Tribunal Federal (STF). Com o movimento, Bolsonaro tem uma intenção óbvia, outra menos óbvia. A óbvia é criar pretextos, ainda que falsos, para contestar o resultado em caso de derrota em outubro — e para justificar uma tentativa de golpe, a exemplo do que fez Donald Trump. A menos óbvia é atrair as Cortes superiores à arena política, de modo a enfraquecê-las como instituições independentes.

A situação põe as Cortes diante de um dilema. De um lado, é preciso resistir aos ataques do bolsonarismo à democracia, de outro é preciso cautela para não transformar o Judiciário em campo de batalha política. Infelizmente, é o que tem acontecido, como revelam duas decisões do STF nesta semana, uma do ministro Nunes Marques, a outra do ministro Alexandre de Moraes. Embora não tenham relação aparente, ambas mostram que o clima eleitoral contamina o Supremo.

Na quinta-feira, Nunes Marques derrubou duas decisões do TSE, uma delas fundamental para a jurisprudência no combate à desinformação eleitoral: a cassação do deputado estadual Fernando Francischini (União-PR), que num vídeo no Facebook, visto por 6 milhões, espalhou mentiras sobre as urnas eletrônicas antes mesmo do fim do primeiro turno em 2018. Em outubro passado, o TSE cassou seu mandato por 6 votos a 1, criando um precedente para futuros casos de desinformação. Nunes Marques tem o direito de discordar da decisão, embora seus argumentos sejam frágeis. Também é verdade que é possível a um ministro do STF derrubar uma decisão do plenário do TSE. Mas parece evidente que a motivação dele foi política, vinculada à batalha de Bolsonaro contra o sistema eleitoral.

Como ministro, Nunes Marques tem sido consistente ao apoiar causas bolsonaristas. Já liberou missas e cultos religiosos em plena pandemia, favoreceu o filho de Bolsonaro num voto sobre o foro de parlamentares e foi o único dos 11 no STF a inocentar o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), que agredira de forma inaceitável ministros da Corte. Deu a entender que, em caso de recurso, levaria as cassações suspensas para decisão da Segunda Turma. Faria bem se as levasse ao plenário. O país precisa ter clareza sobre o combate à desinformação na eleição.

Alexandre, por seu turno, suspendeu as contas em redes sociais do Partido da Causa Operária (PCO), legenda de extrema esquerda cujo presidente falou em “dissolução do STF”. O PCO foi incluído no inquérito das fake news, criado para investigar a disseminação de notícias falsas contra o Supremo. Ora, por mais que as declarações sejam repugnantes e revelem postura semelhante às de Silveira ou Francischini, a punição parece um exagero. É sempre preciso ser comedido para, sob o pretexto de proteger a democracia, não cercear vozes legitimamente constituídas nessa mesma democracia. O poder de investigação do STF não pode se transformar em instrumento de coação contra quem incomoda.

Tanto Alexandre quanto Nunes Marques deveriam entender o sentido do comedimento exigido de quem exerce o papel de juiz. Juiz não pode entrar em campo para jogar, apenas para apitar — ou que credibilidade terá? Vale para o futebol, vale para a política.

O Globo

"Fomos enganados", dizem militares russos detidos na Ucrânia

 




Russos capturados aguardam eventual troca por soldados ucranianos. Em entrevista à DW, eles falam sobre como foram parar no front, suas impressões da guerra, as condições na prisão e as esperanças de voltar para casa.

Por Anna Fil

O segundo andar do centro de detenção na Ucrânia é reservado aos presos de guerra russos, que para sua própria proteção são mantidos separados dos demais. Também por motivos de segurança, a DW não pode revelar a localização do presídio.

Numa das celas estão sete homens de diversas idades, todos se dizem soldados contratados. A visita de jornalistas não os surpreende: segundo eles, representantes das Nações Unidas ou da Cruz Vermelha passam por lá todas as semanas. Eles mostram bastante disposição de contar suas histórias.

"Para ser bem honesto, nós fomos, de certo modo, enganados. De início nos disseram que íamos cuidar de coisas humanitárias. Mas eu fui imediatamente jogado no front", relata Roman, da cidade de Vyborg. Em combates na região de Kharkiv ele foi ferido, e os militares ucranianos os levaram consigo e prestaram cuidados médicos.

'Militares russos ficam separados de demais detentos, por motivos de segurança'

Artyom, em contrapartida, frisa que participou por vontade própria da "operação militar especial" – na terminologia adotada por Vladimir Putin – contra a Ucrânia. Atendendo a um anúncio na internet, ele foi mobilizado para a província de Donetsk, sob controle de separatistas pró-russos.

Em poucos dias aprendeu a dirigir um tanque blindado T-72, e aí foi enviado em direção a Zaporíjia. No entanto seu veículo foi destruído e ele, capturado pelo ucraniano Batalhão Azov. Lá recebeu comida e cigarros, e "fascistas, não vi nenhum", comenta.

Indagado por que foi para a Ucrânia, explica: "Na televisão dizem que supostamente lutamos por uma boa causa, mas na verdade não é nada disso. Meus olhos só se abriram aqui." Para Artyom, o exército russo é de "saqueadores e assassinos".

"Ninguém nos disse para onde estávamos indo"

A cela dos russos está equipada com móveis antigos, é estreita, mas limpa. Pratos de plástico estão sobre a mesa, cada um tem o seu. Colheres e garfos, contudo, são de metal. Segundo os guardas, para os presos normais também os talheres são de plástico, mas com os de guerra é mais fácil, eles não são agressivos e só estão esperando por uma troca de prisioneiros.

Um detento ucraniano distribui o almoço, sob a observação de um vigia. Borscht e pirão de trigo-sarraceno são servidos através de aberturas nas portas de cada cela. O desjejum foi angu de milho com carne. Segundo o cardápio pendurado no corredor, são servidas três refeições por dia. Além disso, os internos podem passear e diariamente tomar banho.

"Todo dia nos perguntam se precisamos de alguma coisa. Se é possível, nos dão."

Numa outra cela encontram-se três jovens de 20 a 21 anos de idade. Na mesa ao lado das camas está uma pilha de livros. Eles dizem gostar de histórias policiais e romances. Dmitri, de 20 anos, comenta que seu estado de ânimo "deixa muito a desejar". Ele frisa que não sabia que em 24 de fevereiro iria de Belgorod, na Rússia, para a Ucrânia.

"Ninguém nos disse para onde estávamos indo. Só quando já estávamos em território ucraniano e vimos letreiros e bandeiras, é que nós todos entendemos. Eu perguntei ao comandante o que a gente estava fazendo ali, e a resposta foi que não era para fazer perguntas inúteis." Quando, em 27 de fevereiro, seu tanque foi bombardeado, próximo a Pryluky, na região de Chernihiv, ele se rendeu aos ucranianos.

Oleg, da Carélia, conta que prorrogou seu contrato com as Forças Armadas russas em março. "Eu acreditei nas notícias na TV de que ajudaríamos a dirigir, de que aqui havia nacionalistas matando e torturando a própria população." Mas as tropas russas tomaram a região de Kharkiv, ele não viu um único nacionalista: "Quando chegamos nos lugarejos, as pessoas nos diziam, bem diretamente: 'Vão embora! Vocês não têm nada que fazer aqui!'"

Ao assinar seu contrato, lhe prometeram um treinamento, mas também que não seria mobilizado para o front avançado. Após três dias, contudo, foi enviado para o cerco à metrópole de Kharkiv. Ele liderava uma subunidade que, segundo afirma, tentou retornar à Rússia, mas o comando proibiu. Entretanto o contato com este se rompeu, e pouco mais tarde Oleg foi preso pelo exército ucraniano.

Maus tratos contra militares ucranianos e russos

Todos os prisioneiros de guerra russos com que a DW conseguiu falar afirmam lamentar ter participado da invasão, e que não atiraram em residentes pacíficos de lugarejos e cidades – afirmativa que o exame com um detetor de mentiras não contradisse. Até agora os investigadores ucranianos tampouco apresentaram provas de eventuais crimes de guerra.

Os funcionários do presídio contam que só perante o detetor de mentiras o sargento russo Vadim Shishimarin, que também ficou detido no local, confessou ter atirado e matado um civil na região de Sumy. Em 23 de maio, um tribunal ucraniano o condenou à prisão perpétua, no primeiro processo contra um prisioneiro de guerra russo no país.

Na conversa com a DW, nenhum dos detentos se queixou de más condições de prisão ou de tratamento desumano. "Todo dia nos perguntam se precisamos de alguma coisa. Se é possível, nos dão. A comida é equilibrada", relata Roman, de Vyborg.

Segundo o Ministério da Justiça da Ucrânia, cada prisioneiro custa por mês cerca de 3 mil grívnias (95 euros ou R$ 488), em alimentos, roupas, artigos de higiene, além de água e eletricidade. A estes se acrescentam medicamentos e equipamento médico, além de custos com pessoal.

A vice-ministra da Justiça Olena Vysotska assegura à DW que esses gastos são justificados, já que as condições de prisão devem obedecer a Convenção de Genebra. Além disso, são necessários prisioneiros russos vivos e saudáveis para trocar com os ucranianos capturados pela Rússia.

Segundo dados da diretora da comissão da Organização das Nações Unidas para os direitos humanos na Ucrânia, Matilda Bogner, observadores também receberam informações sobre soldados russos maltratados e torturados logo após a captura. Nas prisões em que estes aguardam uma troca, porém, ela constatou condições satisfatórias.

Representantes da missão da ONU enfatizam que na Rússia e nos territórios sob controle russo, militares ucranianos também são torturados, tanto em seguida à captura quanto durante a prisão. É comum faltarem alimentos e higiene, e o tratamento por parte dos guardas é brutal. A organização insta ambos os lados a tratarem com humanidade seus prisioneiros de guerra.

Não há dados oficiais sobre quantos soldados russos estão detidos na Ucrânia, seu número muda frequentemente, devido às trocas regulares. "A esperança é a última que morre", consola-se Dmitri, que também espera ser trocado. Depois de três meses, o rapaz de 20 anos quer voltar para casa, e não pretende nunca mais servir o Exército.

Deutsche Welle

Um lugar pior - Editorial




Guerra na Ucrânia chega ao 100º dia sem fim à vista, alimentando tensão global

Até os primeiros mísseis russos atingirem a Ucrânia, na madrugada de 24 de fevereiro passado, havia um compasso relativamente conhecido a guiar a geopolítica.

Girando em torno da disputa mais aguda entre Estados Unidos e China, temperado pelo pós-pandemia, ele não incluía a maior guerra em solo europeu desde 1945 no cardápio. Havia, claro, sinais de que a situação se agravava nas fronteiras ucranianas, mas poucos esperavam algo na magnitude vista.

Erros de avaliação baseados em conceitos estabelecidos foram se sucedendo. A Rússia não dobrou Kiev em uma semana, quiçá em um mês. A dissolução das forças de Vladimir Putin nem tampouco ocorreu, como os moradores do leste e do sul ucranianos sabem bem.

Também não ruiu o sistema fossilizado da autocracia russa pelo desgosto das elites locais com o regime formidável de sanções econômicas aplicado sobre as instituições e as empresas do país.

Até aqui, a punição do Ocidente e seus aliados não logrou evitar uma morte na Ucrânia. O temor de que o cerco apenas jogue Moscou nos braços de Pequim numa nova ordem mundial é crescente e nem de longe infundado. Putin foi ferido, mas continua na ofensiva.

A preservação da popularidade do presidente segue o endurecimento de seu regime. O preço que gerações russas pagarão pelo delírio geopolítico do líder, a começar por seu proverbial cancelamento na arena internacional, ainda está por ser devidamente calculado.

Os cem dias da guerra consolidaram também algumas certezas. O impacto do conflito no mercado de energia e de alimentos disparou uma corrente inflacionária que, aliada a problemas diversos, arrisca empurrar o mundo para uma onda recessiva em 2023.

A crise se vê em bombas de gasolina brasileiras, nos conflitos do Peru, na crise alimentar que se insinua na África. Como no Apocalipse bíblico, os cavaleiros da fome, da guerra e da morte vagam —o da peste já estava entre nós.

Para alegria de milenaristas, até riscos de uma Terceira Guerra Mundial deixaram de ser fantasiosos.

Adicione-se a isso a percepção de insolubilidade. O ensaio de resolução das negociações de paz iniciais está à mão, mas é coalhado de entraves e depende de uma boa vontade de lado a lado ora inaudita.

Assim, a sugestão de uma guerra prolongada apenas faz crescer a convicção de que o planeta é um lugar bastante pior hoje.

Folha de São Paulo

Indagações para uma noite de primavera




Preocupa-me chegarmos até lá com dois candidatos portadores de reluzentes credenciais populistas.

Por Bolívar Lamounier* (foto))

Se o próximo presidente for, de fato, um dos dois que lideram as pesquisas, uma coisa é certa: na noite de 2 de outubro nós, a maioria dos brasileiros, estaremos por aí desnorteados, cambaleando como um pobre-diabo atingido no cocuruto por um coice de cavalo.

Esqueçamos, porém, a nobre espécie dos equinos e tentemos entender as coisas através do nosso singelo vernáculo. Suponhamos que fomos atingidos não por um coice, mas por uma reles interrogação. Reles, sucinta e, sobretudo, inusitada para um momento pós-eleitoral. Que raio de interrogação será essa? Ei-la: e daí? E a resposta, igualmente inusitada, será: nada. Nada?! Como nada? Ora, meus caros leitores, nada porque ninguém saberá dizer que diferença fará para nós e para o Brasil o vitorioso ser Luiz Inácio ou Jair Bolsonaro. Algum de vocês imagina que este nosso país letárgico vai subitamente dar um salto de dois metros e aterrar ágil, afável, pacífico e próspero só porque o vencedor foi aquele, e não o outro? Creiam-me: as chances de isso acontecer são iguais num ou noutro caso, e próximas de zero em ambos.

Exploremos a hipótese inversa. Algum de vocês imagina o Brasil despencando morro abaixo e só parando quando bater seu cocuruto numa pedra que estava lá embaixo, em sua plácida solidez? Neste caso, vença Lula ou Bolsonaro, minha aposta é a de que nossas chances de quebrar a cabeça serão iguais, mas não próximas de zero. Ao contrário, como manda a lógica, ambos nos causarão uma dor de cabeça atroz. Até o Dr. Pangloss (lembram-se dele?), em seu infinito otimismo, já nos recomendou certos cuidados, porque uma hora destas poderemos cair de verdade.

Meus leitores com certeza se lembram de um país, a Argentina, que atingiu um nível de riqueza superior ao de Espanha, Itália, Suíça, Alemanha e Suécia, mas de repente, não mais que de repente, deu com os burros n’água e lá está até hoje, estagnado, com seus outrora altivos cidadãos embusteados pelos que detêm o poder, mas não sabem o que fazer com ele. Assim tem sido desde o desaparecimento do comandante-general Juan Domingo Perón.

Mas a Argentina não se dissolveu: continua lá, com todas as qualidades que sempre teve. Por essa e por outras é que Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), um sapientíssimo teólogo alemão, sempre nos garantiu que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Não sei se a média dos séculos e milênios respalda seu ponto de vista, mas o Brasil dos dias de hoje parece-me às vezes inclinado a contestá-lo. Percebo que certo número de brasileiros contraiu o curioso hábito de anotar em seus diários alguns dos motivos que os deixam assustados. Eu mesmo, que não sou temeroso, lembro-me de que até poucos anos atrás nos referíamos à nossa economia como a oitava maior do mundo, mas o que agora nos chama a atenção é que ela parece incapaz de dar um passo à frente. Pergunto-me se Leibniz atualizou suas estatísticas sobre o nosso sistema de ensino. Às vezes vejo na TV certas coisas que me parecem aterradoras, mas vou me abster de dar exemplos, para não afligir almas frágeis que porventura frequentem esta página.

Por favor, entendam-me: sempre tive imenso respeito pelos conhecimentos do Dr. Leibniz. O que me preocupa no momento é chegarmos à primavera com dois candidatos portadores de reluzentes credenciais populistas. Um deles, o sr. Luiz Inácio, a rigor nem poderia se candidatar, por dever explicações à Justiça. O outro, o sr. Bolsonaro, não parece apreciar a elevada magistratura a que foi alçado, que em tese o obriga a permanecer muito tempo no quarto andar do Palácio do Planalto. Sente-se tolhido em sua paixão por atividades atléticas. Imaginem que, outro dia, convocou seus amigos motoqueiros para um passeio. Bloqueou quase 200 quilômetros de uma rodovia federal, na véspera de um feriado. Aí sim, esbanjando alegria, retornou ao palácio, feliz por nos haver proporcionado mais uma demonstração de seu pendor esportivo. Olhando à minha volta, percebi que os cidadãos comuns, policiais rodoviários, juristas e generais que testemunharam o episódio nada viram de insólito no episódio, e aí decidi votar com o relator: concluí que, realmente, não pode haver mundo melhor que este.

É por isso que, quando me acontece de ir a Brasília, chego a me comover com a brandura que ora reina entre os Três Poderes. Percebo indícios de que nosso sistema político encontra-se em avançado estado de desidratação e que nossa estrutura de partidos se esfarelou já há algum tempo, mas não me deixo levar pela turva premonição de que uma hora destas vamos nos ver em escombros. Somos a oitava economia do mundo. E podemos contar com a coragem, o tirocínio e o senso de responsabilidade de nossa atual classe política.

Leibniz não esclareceu se a divina providência fez questão de executar sozinha seu projeto do melhor dos mundos ou se acolheria de bom grado a cooperação de terráqueos qualificados que se dispusessem a ajudar. Pelo sim, pelo não, penso que teria sido prudente.

*Cientista político, é sócio-diretor da Consultoria Augurium. Seu último livro é ‘Jano: imagens da virtude e do poder’ (Editora Desconcertos)

O Estado de São Paulo

Brasil poderia ocupar o lugar da China?




Por Por Carlos Alberto Sardenberg (foto)

Aqui vai só um exemplo de que como foi uma tortura o tipo de confinamento imposto aos moradores de Xangai. Ou de como a política de Covid Zero faz com que muita gente grande reveja a disposição de investir na China.

História contada de fonte segura: numa fábrica de mais de 5 mil funcionários aparece um caso de Covid-19. No mesmo dia, todos os empregados são convocados a comparecer à empresa. E todos ficam ali confinados por sete dias. Isso mesmo, todo mundo na fábrica, de chefões a operários. Passados os sete dias, e não se verificando nenhum outro caso de Covid-19, todos são dispensados, mas com a ordem de permanecer em casa por sete semanas.

O lockdown de sete semanas foi imposto a toda a população de Xangai. “Imposto” não é modo de expressão. Repararam nas imagens, da semana passada, de moradores festejando a suspensão do confinamento? Viram como se animavam no trabalho de levantar as barricadas?

Isso mesmo — para obrigar as pessoas a permanecer em casa, foram erguidas barricadas em boa parte da cidade, bloqueando residências e prédios comerciais. Mesmo quem se dispusesse a enfrentar os policiais não conseguiria sair.

A política de Covid Zero tem sido debatida num duplo viés. De um lado, trata-se de saber sua eficiência em combater a transmissão do vírus. Na maioria dos outros países, o lockdown, mais ou menos restrito, foi uma prática auxiliar. Funcionou como um modo de ganhar tempo na busca de medicamentos e vacinas. Encontradas as vacinas, o lockdown foi relaxado à medida que se avançava na imunização.

Isso deu certo. Tanto que agora, com o surgimento de novas variantes, menos graves, não foi necessário impor confinamentos. As populações estão vacinadas — em boa parte.

Daí, pergunta-se: por que a China continua fazendo lockdown tão rigoroso? Caiu em Xangai, mas partes dessa cidade e outras menores continuam sob restrição. Em Xangai, a medida se aplica a áreas residenciais ainda sob “médio ou alto risco” de contaminação.

A China criou vacinas, mas não parece que a maioria da população esteja imunizada. Dizemos “não parece” porque os dados do governo não são confiáveis. É certo, de todo modo, que milhões de idosos não foram vacinados. É certo também que a China não recorreu às vacinas “ocidentais”, mais modernas, que poderiam oferecer uma eficiente combinação de imunização.

O que leva ao segundo ponto: essa política só é possível numa baita ditadura. De fato, o presidente Xi Jinping comanda pessoalmente o combate ao que ele chama de “vírus do diabo”. Para um materialista oficial, pôr a culpa no demônio é curioso.

Xi está no segundo mandato de cinco anos e se preparando para, neste ano, emplacar o terceiro. Isso rompe a tradição de limitar a Presidência a dois mandatos. Ele conseguirá fazer isso? É quase certo, pois o líder assumiu o comando do Partido Comunista, das Forças Armadas e promoveu um expurgo nos quadros políticos e administrativos.

Manda e desmanda. Muito mais que os últimos presidentes. Manda também na economia, que, convém registrar, é movida a capitais privados, nacionais e estrangeiros. Fazia tempo que as empresas, locais e internacionais, não sofriam tantas restrições como as aplicadas por Xi.

Resultado da falta de segurança, um exemplo de peso: a Apple está se preparando para retirar da China boa parte da produção. Pode levar iPad para o Vietnã e iPhones para a Índia. É um sinal de que, pouco a pouco, a China vai perdendo sua condição de fábrica do mundo, de paraíso das multinacionais. E para onde podem ir esses investimentos?

Não para a Rússia, que era outro mercado emergente muito atraente até a invasão da Ucrânia. Com a facilidade, agora perdida, de estar na Europa.

Os investidores precisam de um país grande, de economia medianamente desenvolvida, com organização administrativa e política. De preferência, uma democracia à ocidental, com regras seguras, garantidas em lei.

Pensaram no Brasil? Pois é. Pode, pode ser. Depende só daqui.

O Globo

Extrema-direita, uma marionete nas mãos de Putin




Putin sabia que a estratégia de enfraquecimento do Ocidente era um dos pilares do eurasianismo preconizado pelo seu intelectual preferido. O seu Grigori Rasputin que dá pelo nome de Aleksandr Dugin. 

Por José Pinto   

Quando decretou a invasão da Ucrânia, Putin justificou a “ação militar especial” com a necessidade de desnazificar o país. Uma falácia que deixava explícito que, para o inquilino do Kremlin, os neonazis e a extrema-direita representavam um perigo. Uma nova falácia como se demonstrará de seguida.

Na realidade, a forma como Putin manipula a extrema-direita, tanto a nível interno como externo, assemelha-se à destreza de um artista que faz do espetáculo de marionetas a sua forma de vida. Uma manipulação tão perfeita que esconde a ação do controlador e dá aos espectadores a sensação de que a marioneta dispõe de vida própria. Um logro tão conseguido que até a marioneta nem sempre se apercebe dos fios decisórios que controlam os seus movimentos.

Como a perícia requer experiência, Putin iniciou os treinos mal chegou ao Poder. Assim, face ao avanço da ideologia neonazi então em curso na Rússia, começou por fazer aprovar legislação pretensamente visando controlar essa ameaça. Porém, ao mesmo tempo que se dizia apostado na erradicação da ameaça extremista, abria discretamente os braços para receber elementos desses grupos. Uma estratégia insistentemente denunciada pelos analistas que acompanham o processo com a devida atenção. A única forma de ouvir os silêncios intencionais do Poder.

Daí que tenha sido possível identificar alguns marcos dessa estratégia. Como a criação de uma organização de índole ultranacionalista destinada à juventude, “Moving Together”, a que se seguiria a “Nashi”. Por isso, o recrutamento de membros do “bas-fond”, designadamente de hooligans conotados com a extrema-direita para perseguirem quem colocasse em causa o projeto putiniano. Sem contar com a colaboração do Russkii Obraz, a cujos principais dirigentes Putin concedeu um imenso palco mediático. O novo czar sabia que a manipulação destes e de outros grupos de neonazis russos representava a melhor estratégia para conter os avanços dos opositores internos que pretendiam alterar a sua política nacionalista e conservadora.

Verdade que, ao longo do tempo, alguns desses grupos ousaram ir além do papel que lhes tinha sido oficialmente destinado e abusaram repetida e ostensivamente da violência. Uma ousadia controlada por Putin através de um aparente afastamento dos elementos mais radicais e que, na verdade, se consubstanciou no reforço de outros grupos de extrema-direita apadrinhados pela máquina instalada no Kremlin.

Porém, a manipulação não coube nas fronteiras geográficas da Rússia. Putin sabia que a estratégia de enfraquecimento do Ocidente era um dos pilares do eurasianismo preconizado pelo seu intelectual preferido. O seu Grigori Rasputin que dá pelo nome de Aleksandr Dugin.

Assim, a desinformação levada a cabo pelo ecossistema de que o RT e o Sputnik constituem apenas dois exemplos, deveria ser acompanhada pelo apoio aos grupos neonazis que desafiam o modelo ocidental e aos partidos de extrema-direita e direita radical que colocam em causa o processo de integração europeia, bem como aos movimentos separatistas que ameaçam a unidade de alguns estados europeus.

Não admirou, por isso, o empréstimo de mais de 9 milhões de euros que um banco russo forneceu à então Frente Nacional de Marine Le Pen para as eleições de 2015, como recompensa pelo reconhecimento da anexação russa da Crimeia,enquanto Macron se queixava de centenas ou mesmo milhares de ataques informáticos às suas bases de dados e ao sítio oficial da campanha.

Voltando ao parágrafo inicial, talvez convenha recordar que, em 1997, Dugin defendeu que a Rússia deveria invadir e ocupar a Ucrânia como passo indispensável para a construção de um império eurasionista. Um quarto de século depois, Putin está a tentar, com mais esforço do que sucesso, materializar essa ideia. Uma dificuldade que não convém ser do domínio público.

Afinal, Dugin também lhe ensinou que a verdade é relativa e não passa de uma questão de crença. Dito de outra forma: o apoio intelectual é sempre bem-vindo se contribuir para a manipulação da marioneta. E não apenas daquela vestida com símbolos da extrema-direita.

Observador (PT)

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