“Nada muda com Bolsonaro”, diz Ricupero, que aguarda 2022
Thais Carrança
Da BBC News
Mesmo que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) seja derrotado nas urnas em 2022, uma parte do prejuízo causado por sua gestão à imagem do Brasil no exterior é irreversível, avalia o diplomata e ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente Rubens Ricupero.
“O mundo se acostumou, durante décadas, desde o fim do governo militar, a ver que os governos que se sucediam no Brasil podiam ter prioridades distintas, mas todos tinham valores compatíveis. Todos tinham uma fidelidade aos princípios da Constituição, um engajamento em favor do meio ambiente, dos povos indígenas e dos direitos humanos”, explica Ricupero. “Essa confiabilidade foi perdida, porque, com a experiência Bolsonaro, ainda que ela termine no ano que vem, vai ficar sempre aquela dúvida sobre o futuro do Brasil. Até que ponto o Brasil não vai ter uma recaída nesse tipo de comportamento?”.
Confira os melhores trechos da entrevista de Ricupero, que comandou a pasta do Meio Ambiente e da Amazônia Legal entre setembro de 1993 e abril de 1994, e esteve à frente do Ministério da Fazenda de março a setembro de 1994, sob o governo Itamar Franco (PMDB.
O senhor disse no passado que há uma contradição inerente entre uma política econômica ultraliberal e uma política externa antiglobalista. Passados mais de dois anos de governo Bolsonaro, é possível dizer que, nesse embate, o liberalismo foi o derrotado?
A promessa do liberalismo nunca foi aplicada nesse governo. Como nas demais áreas, é um governo sem rumos. É uma política econômica confusa, com sinais contraditórios, e que foi atropelada pela pandemia. No começo da crise, até respondeu razoavelmente, com o auxílio emergencial. Mas depois se perdeu totalmente. Estamos hoje com uma condição econômica que é a pior de todas, porque o país não cresce – é uma exceção no mundo, onde todas as economias estão se recuperando com um ritmo bastante vigoroso. E, ao mesmo tempo que não cresce, estamos assistindo ao agravamento da inflação. Quer dizer, voltamos à situação de estagflação que tivemos há alguns anos. É esse o resumo que se pode dar da política econômica do governo.
O senhor tem expectativa de alguma mudança de rumo na política externa com a saída de Ernesto Araújo do Ministério das Relações Exteriores?
Houve uma mudança que é bem-vinda, que merece até aplauso. Porque o caso do Ernesto é que ele agravava uma situação que já era difícil. Pelos próprios postulados da política que ele adotou. Uma visão distorcida da realidade do mundo, teorias conspiratórias. Mas, além disso, ele agregava um fator pessoal: era um militante dessa seita mais lunática que nós temos, que são os seguidores do Olavo de Carvalho. Isso tudo, felizmente, acabou. Há uma sensação de alívio. O Itamaraty, hoje em dia, tem uma atmosfera muito mais positiva do que tinha antes. E o próprio estilo dos documentos, dos pronunciamentos, melhorou bastante. O que não mudou é a substância dessa política. Porque uma política externa não pode nunca ser dissociada da política interna. A política externa tem maior ou menor êxito, se a política interna estiver indo bem.
É possível reverter o efeito da gestão Bolsonaro sobre a imagem do Brasil no exterior? E há como recuperar nosso soft power?
Neste governo, não. Eu não acredito que isso possa acontecer, porque também não creio que o presidente vá mudar de personalidade, de caráter, de opinião, de grupos apoiadores. Nada disso vai acontecer. Então, até a eleição, não vejo nenhuma possibilidade de que essa situação melhore. Depois das eleições, isso pode suceder, desde que haja a eleição de um governo mais “normal”, digamos, entre aspas. De um governo que volte a colocar o Brasil nos trilhos. E que seja capaz de adotar políticas diferentes, em meio ambiente, em povos indígenas, em direitos humanos, em igualdade de gênero, e assim por diante. A partir de uma mudança interna, pode-se fazer um esforço para melhorar a nossa imagem externa. Isso é perfeitamente factível. Mas vai demorar muito. Vai ser um trabalho gigantesco e, eu diria que uma parte do prejuízo é irrecuperável, é irreversível. Essa parte que se devia à continuidade e à confiabilidade do Brasil e da sua política externa.
O senhor chegou a prever nos anos anteriores que o Brasil poderia sofrer boicotes e represálias em suas exportações agrícolas, pela forma como Bolsonaro tem gerido a questão ambiental. Isso não só não se concretizou, como o Brasil tem exportado mais commodities agrícolas do que nunca, com a ajuda da desvalorização cambial. A necessidade global de alimentos se sobrepõe à agenda verde que as grandes potências dizem agora ser prioridade?
Em parte sim. O que você diz é verdade, sobretudo em relação à China e aos asiáticos. Porque, de fato, o aumento das exportações brasileiras de soja, de milho, de minério de ferro, se deveu sobretudo à China, não a outros países. Para outros destinos as exportações têm caído. No caso da China, de fato, é um país que olha mais a sua própria demanda. Mas, mesmo aí, existe uma incerteza em relação ao futuro, porque as grandes empresas importadoras chinesas, as tradings, já anunciaram que vão começar a ter uma política de traçar a origem dos produtos que elas importam. Então, à medida que a China possa diversificar suas fontes de suprimento, haverá alternativas aos fornecedores brasileiros. Mas as represálias que o Brasil já está sofrendo não são apenas medidas comerciais. As medidas comerciais são o último limite. É aquilo que acontece quando realmente a situação chega a um ponto muito, muito grave.
O que muda para a política externa e ambiental brasileira com a chegada de Joe Biden ao poder nos Estados Unidos?
Muda o discurso. Vê-se isso já na carta que o presidente Bolsonaro enviou alguns dias antes da Cúpula do Clima, no dia 22 de abril Na carta, ele disse coisas que são o contrário do que ele vinha dizendo até então. Fala no compromisso em combater o aquecimento global. Reafirma o compromisso do Brasil do Acordo de Paris, de pôr fim ao desmatamento ilegal na Amazônia até 2030. Esse compromisso tinha sido retirado das promessas brasileiras pelo Ricardo Salles, em dezembro de 2020. O que mudou entre dezembro de 2020 e abril de 2021? A posse do Biden. Então mudou o discurso e a promessa. Mas não mudaram as políticas, as verbas para combater o desmatamento, o desprestígio do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], as atitudes de impedir que os fiscais do Ibama cumpram o seu dever. Então, são promessas retóricas. Superficiais. Como se dizia antigamente, “para inglês ver”. Só que hoje é “para americano ver”.
E que balanço o senhor faz da Cúpula do Clima?
A cúpula foi muito importante, porque mudou a agenda mundial por completo. Nós perdemos quatro anos no combate ao aquecimento global devido ao governo Trump. Então era preciso um gesto dramático para fazer com que a questão voltasse a ocupar o centro da agenda mundial. Isso foi feito pela Cúpula do Clima. Ela não tinha o objetivo de produzir resultados negociados. Porque esses resultados terão que ser produzidos no final do ano, no mês de novembro, na reunião de Glasgow, na Escócia, quando haverá a COP-26. O passo seguinte ao Acordo de Paris.
O senhor acredita que o ministro Ricardo Salles deve novamente sobreviver à crise gerada pela notícia-crime aberta contra ele no caso da defesa de madeireiros ilegais?
Aparentemente sim, porque os madeireiros ilegais, os mineradores ilegais e os grileiros criminosos constituem uma das bases de apoio do governo Bolsonaro. Então, ao proteger esses criminosos, ele está, na verdade, solidificando essa base. Não vi até agora nenhum sinal de que algo mude. E, ainda que mude, só a mudança do ministro não resolve nada. Se for para trocar o Ricardo Salles por um outro general Pazuello ou alguma pessoa parecida, não resolveria. É preciso mudar o ministro para alguém melhor, mas mudar também a política.
E como o senhor avalia a gestão de Paulo Guedes à frente da Economia?
É um grande desapontamento. Desde a campanha, ele sempre criou expectativas exageradas, até por causa do estilo pessoal que ele tem. Ele, por exemplo, dizia, antes de tomar posse, que iria zerar o déficit público brasileiro em um ano. E como é que ele pretendia fazer isso? Ele pretendia privatizar e vender os imóveis do governo federal. Em cada caso, segundo ele, produziria mais de R$ 1 trilhão. Ora, tudo isso eram fantasias. Fantasias de quem nunca tinha passado pelo Ministério da Fazenda. Quem já passou pelo ministério, como eu, sabe a dificuldade que existe para privatizar uma só companhia. Quanto mais todas. Então, tudo isso se desfez ao contato da realidade.Nós estamos, de novo, com a pior situação econômica que se possa imaginar, que é a combinação de estagnação econômica com inflação.
Por fim, o senhor participou no ano passado de um movimento de ex-ministros da Fazenda e ex-presidentes do Banco Central pressionando por uma retomada verde da economia no pós-pandemia. Vimos movimentos semelhantes de ex-ministros da Saúde, do Meio Ambiente e da Educação de governos diversos, unidos contra as políticas da atual gestão. O senhor acredita que esses movimentos serão suficientes para criar um projeto alternativo ao bolsonarismo em 2022?
Suficientes, creio que não. Mas são necessários. São passos em direção a esse objetivo. Isso começou, na verdade, com os ex-ministros de Meio Ambiente. O nosso grupo foi criado ainda na época da discussão do Código Florestal, no governo Dilma Rousseff [PT]. Os outros movimentos se inspiraram no nosso, inclusive esse a que eu também pertenço, de ex-ministros da Fazenda. O que isso indica? Indica que a totalidade das pessoas que passaram pelo setor público no Brasil reprova a linha atual.E reprova por quê? Porque esse governo é o primeiro que rompe com toda a continuidade que nós tínhamos, desde que começou a Nova República, com o final da ditadura militar, em 1985. Desde então, todos os governos que se sucederam – uns com mais êxito, outros com menos – tinham a mesma visão, o mesmo projeto de Brasil, que é o da Constituição. Não precisa outro. A Constituição tem o projeto de Brasil que nós queremos. É preciso dar cumprimento a ela.