Em tempos de orçamento curto, o município de Glória, na Bahia, é um canteiro de obras com dinheiro federal. O segredo? A prefeita é a mulher do ministro das Cidades
ISABEL CLEMENTE, DE GLÓRIA (BA)
A estrada que liga Aracaju, em Sergipe, ao município de Glória, no norte da Bahia, é uma coleção de buracos. Os 280 quilômetros não são vencidos em menos de quatro horas. A exceção é um trecho de 32 quilômetros, reformado, que passa pela entrada de Glória. Até as placas de acesso a Glória estão tinindo de novas. Glória tem um balneário na beira do Rio São Francisco, que está em reforma. Na “prainha” serão erguidos cinco quiosques, para os quais o Ministério do Turismo destinou quase R$ 1 milhão. Também custarão R$ 1 milhão a ciclovia e a pista de cooper de 4 metros de largura, da entrada da cidade ao balneário. A Praça da Juventude, um projeto do Ministério dos Esportes, com quadras, anfiteatro, salas e pista de skate, está orçada em R$ 1,5 milhão. Nada disso estaria acontecendo, segundo a prefeita Ena Vilma Negromonte (PP), sem a ajuda “de Mário”. Mas que Mário? Mário Negromonte, seu marido e ministro das Cidades.
Como deputado federal até 2010, Negromonte fez emendas ao Orçamento da União para a cidade governada por sua mulher. Neste ano, os ministérios do Turismo e das Cidades, agora tocado por Negromonte, liberaram 100% dos valores acertados nos convênios. As verbas destinadas a Glória passaram incólumes ao corte de R$ 50 bilhões no Orçamento, que tirou R$ 8,5 bilhões do Ministério das Cidades. Poucos municípios tiveram a mesma sorte. Com 15 mil habitantes, Glória tem ruas pequenas e malconservadas, onde há pouca movimentação de comércio. Nas esquinas, há placas de “Pare” novinhas. Só faltam carros para obedecê-las. Metade da população é pobre. “Nada foi feito na área de saúde. Convênios foram cancelados por falta de pagamento”, diz o vereador Alex Almeida (PTN).
A prefeita Ena Vilma é uma dentista aposentada de 60 anos, casada há 34 com Negromonte, mãe de três filhos e avó de uma menina de 9 meses. Ela foi derrotada duas vezes antes de virar prefeita. Eleita, carrega a fama de ficar pouco na cidade, apesar de manter uma casa alugada. “Aquilo é fachada”, diz o ex-prefeito José Policarpo. A casa da família Negromonte fica em Paulo Afonso, um município vizinho e distante 10 quilômetros. Na última quinta-feira, Ena Vilma estava em Glória e recebeu a reportagem de ÉPOCA em seu gabinete.“Se você viesse à tarde, não me encontraria porque eu gosto da zona rural. Ando por aí”, diz. “Ontem, se você viesse, não me encontrava. Peguei uma virose. Estava péssima.” Na aparência, Ena Vilma estava ótima. “Jura? Ah, deve ser o blushizinho.” Ela é uma senhora esguia e alta. Seus cabelos bem cuidados e a maquiagem combinam com os óculos Chanel e a bolsa Louis Vuitton.
Responsável pela liberação de recursos para as obras, a Caixa Econômica Federal afirma que os projetos em Glória estão no início e vêm sendo pagos de acordo com o andamento das obras. O empreiteiro, no entanto, reclama. “Era um bom negócio e está ficando inviável”, diz José Moreira Pinto Netto, proprietário da Caaba Engenharia. Pelo menos a Caaba pode ter a esperança de ganhar com a escala. A empresa executa as quatro obras feitas na cidade com verbas federais. A Caaba venceu três licitações. O secretário de Obras, Francisco Alves de Araújo, diz que a TCLOC, empresa ganhadora da licitação da Praça da Juventude,“terceirizou ou fez uma parceria” com a Caaba.
Glória se prepara para um crescimento em ritmo chinês. No dia 7 de junho, a prefeitura contratou por R$ 205.965 a Evereste Consultoria e Marketing para elaborar o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. “Precisamos saber para onde Glória vai crescer”, diz Ena Vilma. A Evereste pertence ao veterinário Antonio Almeida Júnior, aliado de Negromonte. Atual diretor de Desenvolvimento da Secretaria da Agricultura da Bahia, ele já ocupou cargos públicos por indicação de Negromonte.
Enquanto Glória progride, o Ministério das Cidades traz dissabores a Negromonte. Em oito meses de gestão, ele ainda não conseguiu nomear seus assessores. Seu ministério foi o mais afetado pelo corte de gastos, decidido no começo do ano pela presidente Dilma Rousseff. A falta de cargos e dinheiro causou problemas em seu partido, o PP, a ponto de desestabilizar o ministro.
A bancada do PP na Câmara é um desafio. Dos 41 deputados, 18 respondem ou já responderam a processos judiciais. O mais conhecido é Paulo Maluf (SP), acusado de desvio de recursos públicos e procurado pela Interpol por lavagem de dinheiro nos Estados Unidos. Outro caso que chama a atenção é Beto Mansur (SP), processado por exploração de trabalho escravo. Os pepistas estão em guerra. Uma ala, da qual fazem parte Maluf e Esperidião Amin (SC), se insurgiu contra a turma ligada a Negromonte. Eles conseguiram derrubar o líder Nelson Meurer (PR) para instalar Aguinaldo Ribeiro (PB). Escolhido líder, Ribeiro procurou Negromonte no ministério há duas semanas. Foi recebido pelo ministro, mas na sala do chefe de gabinete. O gabinete de Negromonte estava ocupado por outros quatro deputados do PP, que pressionavam um colega a não aderir à turma de Ribeiro. Em encontros semelhantes com outros deputados, teriam inclusive feito ofertas em dinheiro, segundo uma versão disseminada pelos adversários internos do ministro.
Quando os conflitos da bancada abalroaram o ministério, na semana passada, Montenegro mandou recados por meio de afirmações fortes. “Em briga de família, irmão mata irmão e morre todo mundo”, disse em entrevista ao jornal O Globo. “Imagine se começar a vazar o currículo de alguns deputados. Ou melhor, folha corrida.” No Palácio do Planalto, a entrevista foi considerada um desastre. Em Glória, ninguém vai reclamar.
Com Leandro Loyola
Fonte: Revista Epóca
Glória, além de Negromonte
Reprodução O município baiano de Glória, às margens do Rio São Francisco |
Vitor Hugo Soares
De Salvador (BA)
O ministro Mario Negromonte, das Cidades, é apontado há dias como bola da vez do encarniçado jogo de poder entre petistas e as demais correntes políticas e partidárias de "sustentação" do governo Dilma Rousseff. No meio do tiroteio, infelizmente, acabou sobrando balas para a cidade de Santo Antonio da Glória e seus habitantes. Território querido da minha infância à beira do Rio São Francisco, aparentemente condenado a pagar caro e injustamente pela segunda vez em sua história pelas omissões, desvios, preconceitos e intolerância de políticos e administradores públicos.
A primeira vez, nos autoritários anos 60/70, a antiga Glória foi submersa e retirada do mapa pelas águas do lago imenso formado pela barragem da Chesf, na construção da usina hidrelétrica de Moxotó, que, somada depois às de Itaparica, submergiram outras cidades e lugarejos tradicionais da Bahia e Pernambuco situadas à beira do rio da minha aldeia.
A título de "não impedir o crescimento do Nordeste e evitar o colapso no fornecimento de energia do sistema elétrico do País", a gente de Glória foi transplantada entre choros, velas e procissões, para um balneário nas vizinhanças da cada vez mais próspera e bela cidade de Paulo Afonso. Esta, virou importante centro turístico da Bahia e modelo da engenharia nacional desde a construção da primeira hidrelétrica da Chesf - com seus canyons fantásticos, pontes, lagos e o Rio São Francisco a correr na tríplice divisa com Pernambuco e Alagoas, cenário mágico da novela "Cordel Encantado", da Rede Globo.
A lendária terra de Corisco, que jamais permitiu que Lampião e seus cabras a invadissem, virou balneário de seu antigo distrito, a partir da inauguração da primeira usina da Chesf, erguida no governo de Getúlio Vargas e entregue em festa grandiosa por Café Filho em seguida ao suicídio do presidente gaúcho há 57 anos, no Palácio do Catete, Rio de Janeiro.
Morador da antiga Glória, cidade do coração, peço emprestadas as palavras escritas pelo jornalista Sebastião Nery na apresentação do livro "Rompendo o Cerco", com o discurso notável de Ulysses Guimarães da janela da sede do antigo MDB, na praça do Campo Grande, no episódio dos cães amestrados açulados pela PM contra representantes nacionais da oposição em histórico 1º de Maio em Salvador: "Ninguém me contou. Eu vi. Estava lá".
Assim posso afirmar: praticamente tudo é artificial na nova Glória, que anda no olho do furacão político destes dias em Brasília. Incluindo a "prainha" à beira do lago, de que fala a reportagem de duas páginas publicada na Época, esta semana. Em cada pedra das edificações é possível ver ainda as marcas da improvisação e falta de planejamento do balneário fabricado nas cercanias de Paulo Afonso (onde construiu residência o ministro Mario Negromonte e sua mulher, Ena Vilma, atual prefeita de Glória, "o canteiro de obras com dinheiro federal", segundo a revista de circulação nacional).
Ali foi largada por década uma população retirada de seu lugar de origem, sem direito nem de discutir as novas moradias ou a justa indenização pelas perdas de propriedades e de vidas inteiras. Gente obrigada a deixar para trás o único lugar que conheci no mundo arborizado com frondosos tamarineiros gigantes e pés de umbu cajá, de aromas inesquecíveis, quando a brisa do rio que corria rumo à cachoeira famosa soprava infalivelmente nos fins de tarde, como os bandos de andorinhas pousadas nos fios da rede elétrica.
"Os dias eram assim", como na canção de Ivan Lins, que Ellis Regina imortalizou.
Leio agora na manchete da reportagem da revista semanal, assinada pela repórter Isabel Clemente: "Glória está nas alturas". No texto, o relato de maravilhas. Conta que até as placas de acesso à cidade estão tinindo de novas. O balneário na beira do Rio São Francisco está em reforma. Na "prainha" serão erguidos cinco quiosques, para os quais o Ministério do Turismo destinou quase R$ 1 milhão. Também custarão R$ 1 milhão "a ciclovia e a pista de cooper de 4 metros de largura, da entrada da cidade ao balneário".
A reportagem informa mais: a mesma empresa executa as quatro obras feitas na cidade com dinheiro federal. A Praça da Juventude, projeto do Ministério dos Transportes, está orçada em R$ 1,5 milhão. "As verbas destinadas a Glória passaram incólumes ao corte de R$ 50 bilhões no Orçamento, que tirou R$ 8 bilhões do Ministério das Cidades". "O segredo? A prefeita é a mulher do ministro das Cidades", assinala a reportagem.
O texto registra que Ena Vilma, casada com o político que comanda o PP na Bahia, forte aliado do governador petista Jaques Wagner, dentista aposentada de 60 anos de idade, "é uma senhora esguia e alta. Seus cabelos bem cuidados e a maquiagem combinam com os óculos Chanel e a bolsa Louis Vuitton". Enquanto Glória progride, o Ministério dos Transportes traz dissabores a Negromonte, acrescenta Época, ao registrar os conflitos de Negromonte com a bancada de seu partido, que abalroaram seu ministério, além do desconforto causado no Palácio do Planalto pela recente entrevista do ministro das Cidades ao jornal O Globo.
O governador Jaques Wagner, que esta semana esteve em Brasília, segundo o jornal A Tarde para conferir o termômetro, assegura que a queda de Negromonte "não é assunto no círculo mais próximo da presidente Dilma Rousseff". Da última vez que o governador da Bahia fez uma afirmação parecida ao voltar de Brasília, o ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, caiu no dia seguinte. Por enquanto, porém, o fato é que Negromonte parece balançar, mas ainda tem cordas para segurar.
Se cair, que isso não represente para o atual balneário de Paulo Afonso, o mesmo destino infeliz da Velha Glória e seus antigos habitantes, marcas de um período da civilização colonial do Brasil - o do Curral dos Bois, seu nome de origem - passagem obrigatória do gado que demandava para os sertões do Nordeste. Glória de Corisco, que resistiu a Lampião. Glória do Coronel Petronilo Reis e do ex-deputado Raimundo Reis, seu neto, escritor e saudoso cronista do cotidiano da Bahia. Glória do falecido ex-líder petroleiro Mario Lima, que ensinou sindicalismo a Lula.
Velha Glória sem culpa, mas condenada, morta e sepultada sob as águas da barragem de Moxotó.
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