André Biernath
BBC NEWS
“A mente é um caos de deleites” – essa foi a frase que Charles Darwin (1809-1882) usou para expressar o que sentiu ao se aventurar pela primeira vez numa floresta tropical no Brasil. “Quando os olhos tentam seguir o voo de uma vistosa borboleta, são atraídos por alguma árvore ou fruta exótica. Se observam um inseto, esquecem-se dele ao contemplar a flor peculiar sobre a qual rasteja”, detalhou ele em seu diário.
O naturalista inglês, célebre pela obra “A Origem das Espécies”, em que descreveu em detalhes a teoria da evolução, passou pelo Brasil por duas ocasiões, em 1832 e 1836. Durante esses anos, ele integrou a tripulação do navio HMS Beagle, que fazia levantamentos costeiros e cartográficos de certas regiões da América do Sul.
SOBREVIVÊNCIA – De acordo com essa teoria, há uma luta pela sobrevivência na natureza, mas aquele que sobrevive não é necessariamente o mais forte e, sim, o que melhor se adapta às condições do ambiente em que vive.
A expedição começou em dezembro de 1831 em Plymouth, no Reino Unido, margeou ilhas europeias e africanas, chegou ao Brasil, “desceu” para Uruguai e Argentina, cruzou o Estreito de Magalhães, passou por Chile e Peru, aportou em Galápagos, foi para a Oceania e África do Sul, e precisou passar de novo pelo Nordeste brasileiro antes de voltar para casa em 1836.
Durante todo esse tempo, Darwin fez observações e coletou muitos animais, plantas e minerais, além de escrever diversas cartas para colegas e familiares. Não há dúvidas de que a expedição de quatro anos e meio foi fundamental para que ele tivesse muitas ideias e posteriormente pudesse realizar os experimentos que culminaram na teoria da evolução.
MAS E O BRASIL? – Como a passagem por locais como Fernando de Noronha, Salvador, Recife e Rio de Janeiro inspiraram e influenciaram o trabalho do cientista inglês?
Para o jornalista Pedro Alencastro, responsável pela tradução e organização do livro “Darwin no Brasil”, lançado recentemente pela Editora Duas Aspas, não há dúvidas de que a passagem do naturalista por terras brasileiras foi decisiva para o trabalho que revolucionaria a biologia.
“O Brasil foi muito importante para Darwin, porque ele tinha um grande desejo de conhecer florestas tropicais e desde cedo demonstrava um interesse muito grande pela América do Sul”, afirma ele. “Ao chegar a locais como Fernando de Noronha, Salvador e Rio de Janeiro, ele teve a real percepção sobre o que é a floresta tropical e de como podem existir tantas espécies diferentes”, complementa o tradutor.
BIODIVERSIDADE – A bióloga Shirley Noely Hauff destaca que, até então, o jovem cientista inglês estava acostumado com os ambientes do Reino Unido, cuja biodiversidade é bem mais limitada quando comparada a do Brasil.
A especialista brasileira fez parte de um projeto capitaneado pela Universidade de Brasília (UnB) e outras instituições que, entre 2015 e 2016, refez parte da viagem de Darwin pela América Latina.
O biólogo Nelio Bizzo, professor titular sênior da Universidade de São Paulo (USP), concorda com a avaliação dos colegas. “O que está registrado no diário de Darwin é o espanto que ele teve com a biodiversidade brasileira, particularmente com a biodiversidade vegetal”, detalha o especialista, que trabalhou nas duas mais recentes traduções de “A Origem das Espécies para o português”, lançadas pelas editoras Martin Claret e Edipro.
GRANDE ÍDOLO – “Darwin tinha o naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859) como um grande ídolo”, descreve Bizzo. À época, Humboldt fora proibido de entrar no Brasil porque suspeitava-se que ele era espião, mas as expedições do alemão pela América Latina espanhola — e os relatos que compartilhou em livros, artigos e cartas — fascinaram e influenciaram os amantes de história natural na Europa.
“Darwin já tinha uma noção do que era uma floresta tropical. Mas, quando ele viu de fato aquela diversidade toda, ficou muito emocionado”, diz Bizzo, lembrando que os cadernos de Charles Darwin que reapareceram misteriosamente 22 anos após sumiço
O primeiro contato do naturalista com o território brasileiro aconteceu em fevereiro de 1832, quando o HMS Beagle alcançou o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, um pequeno conjunto de ilhéus rochosos no meio do Atlântico.
SALVADOR E RIO – Dias depois, a viagem seguiu em direção a Fernando de Noronha e logo se aproximou de Salvador, onde permaneceu por várias semanas. No início de abril de 1832, a expedição aportou no Rio de Janeiro, a então capital brasileira. Dali, o navio seguiu em direção a Montevidéu, no Uruguai.
Como explicado anteriormente, o Beagle precisou retornar ao Brasil em 1836. A princípio, a ideia dos viajantes era margear a costa da África e retornar diretamente à Europa.
Mas houve a necessidade de fazer alguns reparos, o que exigiu uma parada em Salvador e Recife durante algumas semanas de agosto daquele ano — Darwin até escreveu cartas em que desabafou estar com saudades de casa.
LONGAS CAMINHADAS – Como a embarcação ficava muito tempo parada em cada local, o pesquisador tinha a oportunidade de fazer caminhadas e expedições em terra firme. Muitas vezes, ele passava dias ou até semanas em viagens exploratórias por terra.
Ele ficou em Salvador, por exemplo, entre 29 de fevereiro e 17 de março de 1832. No Rio de Janeiro, mais uma estadia prolongada, de dois meses: Darwin esteve na então capital brasileira entre 4 de abril e 5 de junho daquele mesmo ano.
Porém, mesmo nos locais em que as visitas eram mais ligeiras, o cientista dava um jeito de fazer observações e pesquisas. Foi o caso do Arquipélago de São Pedro e São Paulo, onde Darwin fez reflexões sobre geologia.
ARQUIPÉLAGOS – “A constituição mineralógica do terreno não é simples. Em algumas partes a rocha é de quartzo, noutras é de natureza feldspática, com finos veios de serpentina”, escreveu no diário. Ele também notou as aves, algas e peixes que habitam os arredores dos rochedos — e reparou na ausência de espécies de plantas ali.
“De certa maneira, o Arquipélago de São Pedro e São Paulo foi o local em que Darwin começou a pensar na questão do isolamento geográfico das ilhas e das espécies que se desenvolvem nesses locais. Isso foi algo que ele observou com mais intensidade posteriormente em Galápagos”, diz Alencastro.
Em Fernando de Noronha, as análises geológicas prosseguiram. Depois, em Salvador, o naturalista inglês fez a tão aguardada visita à floresta tropical.
NA FLORESTA TROPICAL – Em 29 de fevereiro, ele anotou: “O dia transcorreu deliciosamente. Mas esse talvez seja um termo pobre para expressar as emoções de um naturalista que, pela primeira vez, aventurou-se sozinho em uma floresta brasileira. A elegância da relva, o inusitado das plantas parasitas, a beleza das flores, o verde brilhante das folhagens e, acima de tudo, a exuberância do ambiente me encheram de admiração”.
“Uma mistura paradoxal de som e silêncio se espalha nas profundezas da mata”, notou.
Bizzo lembra que Darwin teve uma formação conservadora. “Ele era um cientista que havia estudado teologia natural, que reforçava a perfeição do mundo e da natureza. Essa perfeição é concebível num ambiente com poucos elementos. Mas como é possível conceber tal perfeição num contexto da floresta tropical, em que milhares de espécies se concentram num mesmo lugar? Como elas se harmonizam perfeitamente?”, questiona o biólogo.
CAUDA DO MACACO – No Rio de Janeiro, Darwin teve a oportunidade de ir até a cidade de Cabo Frio, onde conheceu a propriedade de um inglês.
Uma observação importante que o naturalista fez em terras fluminenses foi a de um macaco dos trópicos, o primeiro que ele viu em carne e osso. “O animal estava morto, mas continuava enrolado pelo rabo a um galho”, descreve Alencastro. “Essa cena causou uma forte impressão em Darwin, e ele depois escreveu sobre como as caudas evoluíram nos animais terrestres e qual a função dessa estrutura em diferentes espécies”, complementa o tradutor.
Ao deixar o Brasil, Darwin seguiu para Montevidéu, no Uruguai. Nas paradas seguintes, ele reuniu objetos e artefatos que poderia facilmente encontrar também na região sul do Brasil, nas áreas dos Pampas.