Estagnado, o Brasil troca uma direita reacionária que idealiza a ditadura por uma esquerda nostálgica do passado que inventou.
Por Jerônimo Teixeira
“Sensação geral de alívio”, anotou Carlos Drummond de Andrade em seu diário. A expressão me veio à memória no dia 30 de outubro, quando se anunciou a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro. No meu círculo de amigos e conhecidos, mesmo aqueles que sempre se opuseram ao PT, o sentimento predominante foi mesmo o alívio. Ufa!, exclamávamos: encerrou-se um governo marcado pelo descaso com a saúde e a vida, pelo fetiche militarista e autoritário, pela retórica vulgar e agressiva, pelo permanente atrito institucional.
O meu alívio veio carregado de cautela e reticência. A cautela impõe-se pelo óbvio motivo de que o partido do mensalão, do petrolão e da recessão está voltando ao poder. A reticência têm a ver com a figura macambúzia que deixa o Palácio do Planalto. Não estou convencido de que o país tenha superado Bolsonaro.
Digo isso não apenas porque Lula só venceu por uma estreita vantagem de 1,8% dos votos válidos, ou porque o próximo Congresso abrigará a galeria lombrosiana do bolsonarismo, ou porque enquanto escrevo segue acampada na porta dos quartéis a agremiação de aloprados que eu chamo de Horda Canarinha (que os ferozes mongóis da Horda Dourada me perdoem!). Esses fatos duros são sintomas de uma realidade cuja amplitude é de difícil digestão para os que estão aliviados (ou entusiasmados, no caso dos petistas) com o resultado das urnas: os derrotados não se dispersarão tão cedo. Para além de um movimento político, o bolsonarismo estabeleceu-se como uma nova cultura, cultivando um conjunto de valores, hábitos e manias que a antropologia ainda está para catalogar. Incluem-se aí as teorias conspiratórias compartilhadas em grupos de WhatsApp, o esquisito panteão de heróis e mártires que vai do coronel Brilhante Ustra a Daniel Silveira, o uniforme verde-amarelo e as mais pitorescas coreografias de protesto.
Como é próprio de um credo reacionário, o bolsonarismo galvaniza-se em torno não de propostas, mas de rejeições. Sob a rubrica do esquerdismo ou do comunismo, rejeitam-se em bloco a imprensa, o judiciário, a universidade. Quero me deter em um dos inimigos eleitos pela essa turma: o showbiz. A caricatura do artista parasita que vive da Lei Rouanet tornou-se um lugar comum entre os reacionários. Não lembro de Lula ter falado tanto em política cultural em uma campanha como fez neste ano, e isso deve ter sido uma resposta ao filistinismo militante de Bolsonaro. Neste ano novo, aliás, o Brasil volta a ter um ministério da Cultura, sob comando da cantora Margareth Menezes.
A beligerância da nova direita contra medalhões da cultura foi consolidando a miragem de que toda manifestação artística seria uma forma de resistência – pois não bastava fazer oposição ao governo Bolsonaro: era preciso resistir. Até a vetusta Academia Brasileira de Letras converteu-se de instituição careta em bastião progressista ao aceitar entre os imortais Gilberto Gil e Fernanda Montenegro, ambos hostilizados e detratados por figuras minúsculas do governo. Não foram poucos os comentaristas políticos, críticos e intelectuais que propagaram a ilusão romântica de que certos momentos da arte nativa – a Bossa Nova e a MPB, Guimarães Rosa e Machado de Assis – representam o Brasil verdadeiro, a autêntica alma nacional, em oposição ao reacionarismo bolsonarista, que só pode ser um corpo estranho incrustado no país. Há um fundo nitidamente elitista nessa ideia. Só merece ser chamada de brasileira a gente fina que ouve Chico e Caetano e posta foto de livros no Facebook em sinal de apoio a Lula. A malta grosseira que curte Gusttavo Lima e quer golpe militar está no país errado.
Não condeno o elitismo por si mesmo. Eu mesmo cultivo alguns arrogantes desprezos. O que realmente me intriga é que em resposta a um movimento político que idealiza o passado autoritário do Brasil tenha emergido o desejo de restaurar um outro e impreciso passado, um tempo idílico em que o país era gentil e cultivava a Beleza, com maiúscula.
A promessa do governo que agora toma posse não é de renovação, mas de restauração. Lula passou a campanha lembrando as maravilhas do tempo em que foi presidente e esquivando-se de perguntas sobre o descalabro econômico engendrado pela sucessora que ele ungiu. Ao mesmo tempo, ele falava em pacificar um país dividido. As duas propostas não são inteiramente compatíveis: embora raramente alcance a virulência verbal de Bolsonaro, Lula também é um promotor da divisão, que lança a carta do “nós contra eles” sempre que acuado por circunstâncias desfavoráveis. A terceira pessoa do plural já acomodou a “imprensa golpista” e o rico que não quer viajar de avião ao lado do pobre. Nos últimos tempos, “eles” são os especuladores (termo empregado por Lula) que derrubam o Ibovespa sempre que se relativiza a importância de manter as contas públicas em dia.
No discurso em que celebrou a vitória na eleição, Lula levou o ímpeto restaurador ao paroxismo: prometeu nada menos que a reconstrução da “alma deste país”. Essa alma, porém, está cindida. Embora no mesmo discurso Lula tenha prometido ser o presidente de todos os brasileiros, ele não fez qualquer gesto de conciliação ou aproximação para os 58 milhões de eleitores que o rejeitaram. Talvez esse gesto nem seja possível, tal o fosso de ressentimento e incompreensão separando a esquerda que volta ao poder imbuída de nostalgia por seus governos passados e a direita que, inconformada com a soberania das urnas, anseia pela volta de um regime militar. O Brasil parece estagnado entre esses desejos retroativos. É como se vivêssemos naquele “país bloqueado, enlace de noite, raiz e minério” de que Drummond fala em Áporo.
De volta, pois, a Drummond e à “sensação geral de alívio”. Omiti acima a data em que o poeta fez essa anotação em seu diário: 1º de abril de 1964. Drummond registrava o sentimento que captou em um passeio por Copacabana quando o golpe estava em curso. Em um lance irônico, minha memória buscou essa passagem para definir meu próprio alívio com a derrota de um admirador da ditadura militar.
Drummond estava ele mesmo aliviado. Sim, o poeta que em Nosso Tempo prometia se empenhar para deter “a marcha do mundo capitalista” aplaudiu a deposição de João Goulart, um presidente de esquerda. Em O Observador no Escritório, livro nos qual o autor mineiro reuniu trechos cuidadosamente selecionados de seu diário, as anotações dos dias que se seguem ao golpe já acusam o caráter autoritário do regime militar recém-instaurado. Alívio não é entusiasmo. Ambos, no entanto, costumam ser passageiros.
Espero que ninguém leia aqui qualquer paralelo entre a situação de 1964 e o momento atual. Nem acho que o PT vá instaurar a ditadura bolivariana, nem acredito que os quartéis ouvirão as súplicas golpistas da Horda Canarinha. O momento não é de ruptura, mas de complicadas e opacas reacomodações entre os atores da política. Creio que o risco futuro está na condução da economia: se o socorro aos necessitados – urgente e necessário, sim – for mal calibrado, a promessa de um retorno à relativa bonança do primeiro governo Lula pode degenerar na reedição do pesadelo recessivo de Dilma Rousseff. O país bloqueado vive entre o alívio e o medo.
Revista Crusoé