Por Eduardo Affonso (foto)
São pessoas que se desconectaram de si mesmas e embarcaram num delírio coletivo. Não necessariamente por desinformação
Nos anos 80, ocupavam a Cinelândia, no Centro do Rio. Resistiram algumas décadas — hoje não há mais vestígios do que um dia foi a aguerrida Brizolândia. Em 2018, começaram uma vigília em frente à Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Por 580 manhãs, renovavam sua fé gritando: “Bom dia, presidente Lula!”. Desde o segundo turno das eleições de 2022, estão acampados diante de quartéis ou bloqueando estradas.
Muda a cor das roupas e bandeiras — sai o vermelho, entram o verde e o amarelo. Mudam as palavras de ordem: “Lula livre!”, “Intervenção militar!” e... (o que é mesmo que queriam os brizolistas, além de lutar contra as “perdas internacionais”?). Em comum, a inabalável fé num messias. E a negação — do resultado de eleições, da condenação ou do ocaso do seu líder, do seu capitão, do seu salvador. Nunca chegam a formar multidões — talvez daí o empenho em fazer tanto barulho.
São pessoas que se desconectaram de si mesmas e embarcaram num delírio coletivo. Não necessariamente por desinformação ou déficit cognitivo, mas para se congregar no seio de uma ficção compartilhada. Para ter a sensação de pertencimento, de estar do lado do Bem. E suprir sua grande carência — e de todo ser humano: a de amparo. Funciona para qualquer seita, religiosa ou ideológica.
Em linguagem de autoajuda: deixam de ser gota para se sentir oceano. Mal sabem que, nessa mudança, passam de sujeito a objeto, tornando-se cada vez mais manipuláveis: a permanência no grupo implica investimento psíquico incessante. Paga-se um boi para entrar e uma boiada e meia para tentar sair do rebanho.
São gente como a gente — só que, no momento, impermeável a argumentos. Como os amigos que me entopem a caixa postal com notícias falsas, falsos alarmes, teorias conspiratórias. Aponto o erro, encaminho o desmentido — em vão. Daí a pouco recomeça tudo, numa amnésia voluntária. Foi assim na época do impítimã (“É golpe!”); é agora no pós-eleições (“É fraude!”). Pessoas até outro dia bastante sensatas, mas que marcam território com bandeiras na janela (de casa ou do carro), cantam o Hino Nacional no portão de algum quartel (felizmente, não em torno de pneus) e clamam pelo fim do Estado de Direito (pelo menos não com o celular na cabeça pedindo socorro a extraterrestres). Não refletem, agem reativamente. Ao domínio cultural tirânico das esquerdas e à patrulha vingativa das minorias, respondem com o orgulho da tosquice, a celebração anticiência.
Lula elegeu Bolsonaro, Bolsonaro reelegeu Lula. Sem uma terceira via à vista, é possível que esse “Dia da Marmota” ainda dure muitos anos.
Os brizolistas conseguiam, no máximo, atravancar a passagem de pedestres na Cinelândia. Os lulistas, que penaram no frio de Curitiba, perturbaram apenas o sossego do pacato bairro de Santa Cândida. Os “patriotas” infernizam a vida de quem precisa viajar ou transportar sua carga e podem causar estragos à economia, ao convívio civilizado, à democracia.
Vai ser um desafio trazê-los de volta ao diálogo. É longo e penoso o luto de um messias.
O Globo