Queiroga, último dos quatro ministros da saúde de Bolsonaro |
Relatório do TCU sobre omissões do governo federal na pandemia e sobre o estado lastimável do SUS reforça a certeza de que a saúde foi negligenciada por Bolsonaro
Desde o início da pandemia de covid-19, o Tribunal de Contas da União (TCU) tem elaborado relatórios periódicos por meio dos quais escrutina as ações do governo federal, notadamente do Ministério da Saúde, para enfrentamento da crise sanitária. A mais recente versão do documento, à qual o Estadão teve acesso, provoca calafrios por dar a dimensão dos danos provocados por Jair Bolsonaro na área da saúde e, consequentemente, por evidenciar o risco que o País correu de passar mais quatro anos sendo governado por um dos presidentes mais incapazes em toda a história republicana.
Tamanho foi o descaso de Bolsonaro com a saúde e o bem-estar da população que o TCU informou nessa nova versão do seu relatório de acompanhamento – recentemente encaminhado à equipe do presidente eleito Lula da Silva – que nem sequer teve condições de avaliar o cumprimento de metas de vacinação contra várias doenças, algo elementar para um Ministério da Saúde minimamente bem administrado. Os técnicos do TCU foram elegantes ao falar em “precariedade de dados” sobre vacinação disponíveis na pasta. Na realidade, a gestão de um dos Ministérios mais importantes da Esplanada é uma verdadeira bagunça, em que pesem os valorosos esforços de muitos de seus servidores.
Ao longo dos últimos quatro anos, órgãos cruciais da administração pública federal foram transformados em comitês de campanha por Bolsonaro, deixando de ser formuladores e gestores de políticas públicas orientadas pelo bem comum para servir como estruturas de representação dos interesses particulares do presidente da República. Essa captura foi particularmente nociva no Ministério da Saúde. A resposta do governo federal à covid-19 foi o descalabro a que o País assistiu e, em alguma medida, custou a reeleição de Bolsonaro. Mas a razia bolsonarista na área da saúde vai muito além da pandemia. Ela abarca a crise de desconfiança nas vacinas em geral e o risco de colapso iminente do Sistema Único de Saúde (SUS), como aponta o TCU.
Ao longo de décadas, o Brasil construiu uma reputação de boas práticas em políticas de imunização coletiva, o que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a classificar o País como referência internacional em campanhas de vacinação em massa. Todo esse patrimônio imaterial – também chamado de soft power – tem sido dilapidado por Bolsonaro, ele mesmo uma das vozes mais estridentes contra as vacinas. A bem da verdade, o atual presidente não deu causa ao movimento antivacina, mas não há dúvida de que suas falas e ações irresponsáveis agravaram muitíssimo o problema. A taxa de vacinação infantil contra múltiplas doenças no Brasil, que há alguns anos superava o patamar de 90%, hoje é de apenas 71,49%, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Doenças que haviam sido erradicadas, como sarampo e poliomielite, voltaram a afligir famílias brasileiras que, diante das suspeitas infundadas disseminadas por ninguém menos que o presidente da República, passaram a ter receio de vacinar suas crianças.
O relatório do TCU ainda oferece um diagnóstico geral do SUS para o futuro governo. Os técnicos da Corte de Contas alertam para os “indícios de insustentabilidade” do sistema e propõem um “profundo debate” a respeito do seu modelo de financiamento. Esse debate está muito atrasado. As deficiências do SUS são sobejamente conhecidas e requerem ação imediata não só do próximo governo federal, como também do Congresso. Mudanças no perfil demográfico da população, aumento da complexidade dos atendimentos, defasagem da tabela do SUS, crise econômica e inflação alta há muito vêm impondo uma completa revisão do atual modelo de gestão do SUS, nas três esferas administrativas.
Todo governo novo, no entanto, traz consigo uma lufada de novas possibilidades. Se, por um lado, o relatório do TCU se descortina como uma radiografia da inépcia do governo que se encerra, por outro, revela uma oportunidade de correção de rumos para o próximo governo. Que Lula e seus auxiliares tenham a decência de lidar com a saúde pública, da qual dependem 7 em cada 10 brasileiros, com mais responsabilidade e espírito público.
O Estado de São Paulo