domingo, novembro 27, 2022

O código de Infantino




Discurso do presidente da Fifa justifica violações de direitos

Por Demétrio Magnoli (foto)

Gianni Infantino, o suíço-italiano que preside a Fifa, é um cara esperto, antenado com os discursos da moda. Antes da abertura do evento, numa conferência de imprensa, ele pronunciou um monólogo de quase uma hora destinado à defesa do Qatar como sede da Copa. Nele, partiu com a bola dominada para o ataque, acusando o Ocidente de hipocrisia terminal.

Não é o Qatar que deve se emendar, tratando os operários migrantes segundo regras trabalhistas civilizadas e os LGBT como cidadãos plenos, clamou em tom apaixonado. É o Ocidente que, vergado sob o peso de culpas históricas irremissíveis, precisa oferecer desculpas ao emirado do Golfo Pérsico.

Infantino tinha diversos esquemas viáveis para montar uma retranca. A ditadura totalitária chinesa promoveu duas Olimpíadas separadas por apenas 12 anos, passando quase incólume. A Rússia, sede da Copa de 2018, não restringe com menos fervor os direitos dos LGBT. Por que singularizar o Qatar?

Cinco zagueiros e três volantes? O poderoso chefão do futebol poderia ter optado pela verdade rasgada, nua e crua. A Copa é um negócio monopolizado pela Fifa e organizado para enriquecê-la. As nações democráticas nutrem dúvidas crescentes sobre o suposto privilégio de sediar grandes eventos esportivos, que tendem a provocar prejuízos econômicos aos países ou cidades-sede. Vocês, que consomem o petróleo e o gás do emir, não têm direito de reclamar do pacto que estabelecemos.

Mas Infantino sabe que a melhor defesa é o ataque –e conhece os sistemas de jogo revolucionários introduzidos pela esquerda pós-moderna. Grite sobre o passado! Fale dos impérios, do imperialismo! Diga que toda crítica origina-se de preconceito –nesse caso, contra muçulmanos.

"Temos recebido muitas lições de europeus e do mundo ocidental. Sou europeu. Por aquilo que temos feito ao longo de 3.000 anos ao redor do mundo, precisamos ficar nos desculpando pelos próximos 3.000 anos, antes de ofertar lições morais." Esqueça os "3.000 anos", que nos levam a vários séculos antes da Grécia Clássica. O chefão sabido quer dizer que a civilização ocidental ergueu-se sobre as cinzas das guerras de conquista, as ossadas de trabalhadores escravizados, as baionetas e canhões que subjugaram asiáticos, africanos, aborígenes e indígenas. Silêncio: perto dessa montanha de horrores, o emir é um santo.

"Sou europeu." Infantino tem um paradoxal lugar de fala nessa história. A culpa nossa é dele –mas, ao menos, ele a reconhece e se redime, entregando o bezerro de ouro ao Qatar.

O monólogo não se pretendia original. A maioria dos governos africanos criminaliza a homossexualidade –mas os sacerdotes do identitarismo racial alegam que eles simplesmente inspiram-se em leis editadas no passado pelas potências coloniais europeias. A China resiste em aderir ao mecanismo de transferência de recursos para amenizar danos ambientais nos países pobres –mas seus admiradores justificam a omissão pelo registro de que a primazia histórica ocidental nasceu com a queima de combustíveis fósseis. A Rússia bombardeia infraestruturas civis numa guerra imperial –mas a torcida organizada putinista retruca lembrando que a Europa pariu o nazismo e os EUA cobriram Hiroshima com a morte radioativa.

Na partida de estreia, os jogadores do Irã recusaram-se a entoar o hino nacional e a torcida protestou com faixas e cartazes contra a opressão às mulheres na república teocrática dos aiatolás. O técnico da seleção, um português que nada tem a temer do regime iraniano, criticou os protestos, exigindo que a conversa permaneça circunscrita ao futebol. Suas palavras foram uma traição pusilânime a seus comandados, que se sujeitam a represálias do regime. Mas, como as de Infantino, significam algo mais: no fundo, os dois estão dizendo que só os ocidentais têm direito à democracia e aos direitos humanos.

Folha de São Paulo