Cristina Fernández de Kirchner comanda, desde ontem, a segunda maior economia da América do Sul. Além de entrar para a História argentina como a primeira mulher eleita pelo voto popular a ocupar a Presidência, a senadora pode firmar-se como a grande consolidadora do Mercosul, num momento em que o bloco engasga em querelas entre seus integrantes e hesita em ampliar acordos econômicos.
Simultaneamente à agenda externa, a governante terá de enfrentar um trio de desafios na área interna: conter a inflação, que recupera o fôlego; evitar a crise energética (e o recorrente pesadelo do apagão); e manter o impressionante ritmo de crescimento econômico apresentado nos últimos anos (acelerado em 8% em média, desde 2002).
Reconquistar a confiança dos investidores estrangeiros - abalada desde a moratória de 2001 - é outra batalha a ser travada cotidianamente nos próximos quatro anos de mandato. Embora tenham se passado seis anos da aguda crise econômica, política e social que levou o país a trocar de presidente cinco vezes em 12 dias, os grandes players globais ainda não degustaram bem o plano de reestruturação posto em prática pelo marido de Cristina, Néstor Kirchner. Um programa baseado na troca de títulos da dívida com pagamento suspenso por outros papéis - com descontos de até 75%, se considerados os juros não pagos no período crítico. De cada 100 pesos emprestados, o credor recebeu 25. Em fevereiro de 2005, quando o plano encerrou sua última etapa, apenas Kirchner comemorou. Os investidores - vários deles, fundos de pensão estrangeiros - estrilam até hoje.
Quanto à inflação, a história comprova que previsões catastróficas sobre altas incontroláveis costumam se cumprir. A manutenção do crescimento, por seu lado, dependerá de fatores externos que, até o momento, se mostram favoráveis ao novo governo. O maior temor argentino hoje recai sobre a capacidade de geração de energia, que já atingiu o limite. Obras urgentes para evitar um apagão são imprescindíveis logo nos próximos meses. É nesse ponto que os vizinhos sul-americanos poderão ser úteis à Argentina.
O estreitamento dos laços com os parceiros do Mercosul - promessa de campanha repetida à exaustão pela senadora - pode garantir o suprimento energético de que a nação tanto precisa. A construção do gasoduto Norte-Sul, que levará gás venezuelano até a Argentina, é obra vital. Prevê-se, portanto, a manutenção da política de aproximação da Casa Rosada com Hugo Chávez - claro elemento perturbador da ordem continental e que arregimenta aprendizes de neocomunismo sob a alcunha de bolivarianismo (como o boliviano Evo Morales e o equatoriano Rafael Correa, ambos absortos em problemas internos mas que em muito interessam ao futuro do Mercosul).
No quesito política externa, contudo, as relações com Brasília continuam insuperáveis no topo da agenda. Ainda candidata, Cristina fez questão de incluir o Brasil em seu giro internacional, quando, ao lado de Lula, prometeu revitalizar o Mercosul. Os dois estiveram novamente juntos ontem, durante a cerimônia de posse, mas até o momento não entraram em detalhes sobre como superar as assimetrias com os sócios menores, especialmente Paraguai e Bolívia.
O conflito em torno da construção de fábricas de celulose (a guerra das papeleras, que opôs Argentina e Uruguai e cuja intermediação caberá à Corte Internacional de Justiça) voltará à baila durante a gestão da esfuziante Cristina. A resolução do problema ambiental não teria sido buscada além das fronteiras do Mercosul se este fosse constituído por instituições consolidadas, capazes de lidar com questões deste porte. Ou se, ao menos, Montevidéu e Buenos Aires estivessem engajados em aprofundar o processo de integração - que, definitivamente, empacou.
Caso queira entrar de vez na história da união sul-americana (e até devolver ao marido o poder em 2012), Cristina terá de começar a caminhada a passos largos. E com a certeza de que os vizinhos são prioridade na agenda.
Fonte: JB Online