Violência como plataforma eleitoral no Rio de Janeiro
* Paulo Baía
Escrevo movido por inquietação e espanto diante do que estamos presenciando. A campanha eleitoral no Rio de Janeiro começa ancorada no simbolismo e na retórica da violência. A operação policial nos Complexos da Penha e do Alemão tornou-se não apenas um ato de Estado, mas um eixo discursivo e eleitoral. Os secretários de Segurança Pública e da Polícia Civil do RJ elevaram-se a porta-vozes tácitos de que a força bruta, a ocupação massiva e a letalidade sistemática são agora moeda política de valor.
Enquanto as pesquisas legitimam a lógica da força e do extermínio, a política se curva ao aplauso fácil das massas amedrontadas. Hoje mesmo uma carreata de forças policiais desfilou pela Praia do Flamengo sob aplausos e gritos de “matem mais”. É o retrato cru do tempo presente: a barbárie virou virtude pública. O governo estadual reforça o caminho da militarização, aprofundando uma estratégia que vem sendo planejada há mais de um ano. Nesse ambiente, o aparato repressivo assume a forma de espetáculo e o eleitorado se torna plateia.
O governo federal parece seguir o mesmo compasso. Com Rui Costa na Casa Civil e Ricardo Lewandowski no Ministério da Justiça e Segurança Pública, não se deve esperar rupturas com essa lógica repressiva, apenas a adequação ao que as pesquisas revelam como “vontade popular”. O chefe da Casa Civil, Rui Costa, e o ministro Ricardo Lewandowski ajudam a compor a retórica oficial segundo a qual o Império da Lei se impõe via balas, ocupações e carnificina silenciosa. É nessa moldura que a política de segurança pública se transforma em propaganda antecipada de eleição.
Estamos assistindo a uma celebração da violência como método político. E quem ousa discordar é empurrado para a margem, silenciado, esmagado. Somos minoria, mas uma minoria que pensa, sente e resiste.
Ver-se a rotina inexorável de policiais mortos, em números que não são aceitáveis em um Estado de Direito, é ver o próprio aparato estatal pagar com vidas humanas o preço de uma estratégia que se pretende “cirúrgica”, “implacável”, “popular”, quando na verdade se torna desencadeamento de tragédia. As corporações policiais vêm registrando perdas regulares em serviço, em confrontos que alimentam o ciclo da morte e da retaliação, num cenário onde a força torna-se propaganda. E ao mesmo tempo os moradores das favelas, vilas periféricas e bairros vulneráveis vivem sob um medo que não se dissolve; convivem com o Estado armado como rotina de contenção de toda uma população, e também com a subjugação de facções criminosas como o Comando Vermelho, o Terceiro Comando Puro e as milícias paraestatais que ocupam espaços vazios do poder público ou o próprio poder público permissivo.
A tragédia é dupla. Por um lado, o aparato que deveria proteger mata e morre; por outro, as comunidades que deveriam ser amparadas são palco e alvo de uma guerra sem anúncio. A operação que se pretendia “limpeza” torna-se para as comunidades faveladas espetáculo da ocupação, da munição, da patrulha, da morte. A própria noção de cidadania se desvanece quando a presença do Estado armado se impõe como normalidade, como cerimônia repetida de contenção.
Nessa lógica, a violência deixa de ser exceção para tornar-se método. A política se converte em espetáculo da força e o eleitorado em plateia aplaudindo o espetáculo. As palavras “segurança”, “ordem”, “força bruta” vêm entoadas como hinos e slogans de campanha. A eleição se condensa numa promessa implícita: se eleger é matar inimigos.
Os lamentos das comunidades atingidas, como as dos moradores do Alemão e da Penha que saíram às ruas para protestar e acusar de “genocídio” o governo estadual, são a evidência de que esse tipo de operação não é apenas repressão, mas projeto de dominação política. A lógica é cristalina: matar nos territórios periféricos para comover nas zonas centrais; pulverizar corpos anônimos como advertência; transformar residências em tabernáculos de medo. A campanha germina nesse solo febril.
Na esfera federal, o alinhamento entre o estado do Rio e setores conservadores nacionais amplia-se no discurso de que a “vontade popular” exige violência; e quem ousa discordar, quem propõe outro modelo de segurança, fica empurrado para a margem. As redes sociais, os especialistas, as colunas jornalísticas amplificam a lógica: “temos que ser duros”, “não há espaço para debate”, “quem não mata é cúmplice”. É uma campanha midiática que já se antecipou, que já corre nas ruas, nos aviões, nos outdoors, nas sirenes, nas viaturas, nas transmissões ao vivo das operações.
A retórica que celebra a força se alimenta de símbolos: blindados nas favelas, drones sobre o morro, bandeiras hasteadas no topo dos barracos, pichações de vitória. A imprensa, os analistas políticos e mesmo as redes sociais entram no compasso desse show. Cada operação é transformada em manchete-estrela, cada morte em escândalo momentâneo, cada prisão em troféu para o candidato que celebra o caos. O discurso da segurança pública se metamorfoseia em espetáculo de aço e pólvora.
Mas existe um abismo profundo entre o que o espetáculo promete e o que a vida entrega. A letalidade não significa ausência de crime. O tráfico, as facções, a corrupção policial, a opressão das periferias, todos continuam ferozes, talvez até mais. A militarização, a ocupação, a “limpeza” literal ou simbólica oferecem visibilidade, mas pouca transformação real. E no rastro da operação ficam os corpos, o choro, as famílias, o trauma. O eleitor que aplaude hoje, quantos serão atingidos amanhã?
No âmbito sociológico, observamos uma regressão: o Estado vigilante, o cidadão temoroso, a cidadania suspensa. O Império da Lei, que deveria garantir liberdade, segurança e justiça, regrediu à lógica da exceção permanente. A segurança pública como categoria de direitos se engarrafa em prisões, morticínios, operações espetáculo. O discurso das assembleias estaduais do Rio já mostrava isso há anos: a violência internalizada, o candidato que defende “atuar com tudo”, os parlamentares que falavam como se a guerra fosse rotina.
Politicamente essa trama é densa. A direita utiliza a repressão como dispositivo eleitoral, não apenas para derrotar o crime, mas para vencer eleições. Nesse cenário, o eleitorado inseguro, empobrecido, vencido pelo medo, torna-se alvo e objeto de espetáculo. A oposição que recusa esse modelo se vê reduzida à periferia do discurso ou se vê obrigada a aceitar algum grau de militarização para não perder conectividade com o “povo amedrontado”. A polarização não é apenas entre esquerda e direita; é entre campos de segurança, entre valores de vida e valores de morte.
E há mais: essa violência celebrada tem traços de colonialismo interno. Territórios pobres, negros, periféricos, favelas, são palco e sacrifício. A massa que vibra com “matar mais” raramente vive nas favelas; raramente sente o estampido de balas subitamente, o socorro que demora, a criança que não volta da escola, a mãe que perde o filho. O eleitor que aplaude está muitas vezes protegido pelos muros invisíveis da classe média ou das zonas nobres. A injustiça estrutural se torna espetáculo.
Do ponto de vista antropológico, esse fenômeno revela algo mais profundo: o desejo coletivo de segurança que se confunde com o desejo de punição e vingança. A civilidade converge com a lógica do inimigo interno. O Estado assume o papel de executor e garante do medo; e o cidadão que assiste a tudo torna-se cúmplice resignado ou celebrante. A democracia, nesse processo, se debilita. O debate se reduz à exaltação da força, às marchas da polícia, às carreatas de blindados. Votos se transformam em cartuchos.
Para reconstruir uma política democrática de segurança seria necessário inverter o cenário: priorizar investimento social, educação, habitação digna; promover a participação comunitária; desmilitarizar o cotidiano; tratar o problema do crime organizado com inteligência investigativa e respeito ao Império da Lei. Mas essa alternativa quase não existe no palco eleitoral que se monta para 2026 no Rio: domina o canto das sirenes, o estrondo das armas, o aplauso da multidão.
O que redefinimos como “virtude pública” hoje é a coragem de apertar o gatilho, ou pelo menos de gritar “que matem mais”. E a campanha eleitoral, longe de estar suspensa até o dia da votação, já corre solta no cotidiano da violência. Um cenário em que o governante em campanha é também o estrategista da opressão, e o derrotado talvez seja o próprio cidadão.
Somos minoria, mas uma minoria que pensa, sente e resiste. E esse momento demanda mais do que indignação. Exige vigilância crítica, solidariedade com as vítimas, denúncia dos processos de espetacularização do massacre e construção de uma narrativa alternativa. Porque se a barbárie virou virtude pública, cabe a nós lembrar que a virtude da política é outra: a preservação da vida.
* Sociólogo, cientista político, ensaísta e professor da UFRJ