Publicação de QuarentenaNews
ANISTIA, CONFRONTO E GOLPE
Por Alberto Penna Firne*
Em um Estado de Direito seus súditos, quer dizer, todos os que nele vivem ou estejam, estão protegidos contra a arbitrariedade e os abusos do próprio Estado. Daí a importância da advocacia, da máquina judiciária, das garantias da magistratura e do princípio de freios e contrapesos, pelo qual um “poder” inibe ou coíbe os abusos dos demais. Aliás, esta é a origem do habeas corpus, que já existia há mais de quatro séculos na Inglaterra, quando foi disciplinado por lei em 1679. A pedra angular do sistema de equilíbrio de forças políticas estatais ― os três “poderes” ― são os órgãos judiciários. No Brasil, ao conjunto desse órgãos dá-se o nome de Poder Judiciário, que é contramajoritário e só atua por provocação.
No intuito de proteger as pessoas dos excessos do poder, há direitos fundamentais e suas garantias. Um desses direitos e uma dessas garantias constam do inciso XXXIX do art. 5o da Constituição da República. A norma diz que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. É da nossa tradição constitucional. A regra também consta do art. 1o do Código Penal, cujo art. 2o estabelece, no caput, que “ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.” O parágrafo único arremata: “a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”
Como é flagrante e indiscutivelmente inconstitucional o projeto da anistia que tramita no Congresso Nacional e que é destinado a beneficiar não apenas a arraia miúda do 8 de janeiro, mas, sobretudo, os integrantes da organização criminosa que planejou um golpe de estado depois da vitória de Lula, inclusive com assassinatos, seu relator, Paulinho da Força (Solidariedade-SP), quis agradar a gregos e troianos. Tirou uma carta da manga: a de transformá-lo em “projeto de lei da dosimetria”. Sua Excelência domina a arte de empurrar com a barriga crises, impasses e problemas; sabe acochambrar bem, conhece a arte da prestidigitação política, afinal ele é uma espécie de pelego pós-moderno, edição revista, ampliada e atualizada de um tipo de liderança como foi, por exemplo, a de Ari Campista (1911-1991) no âmbito sindical, catapulta da qual o metalúrgico Paulo Pereira da Silva, depois de fundar sua própria central de trabalhadores, a divisionista Força Sindical, catapultou-se para a glória brasiliense. Deputado federal desde 2006, alinhou-se à direita e chegou a integrar a tropa de choque de Eduardo Cunha. O homem tem história.
Paulinho propõe a excrescência jurídica que é reduzir as penas dos crimes pelos quais foram condenados os que integraram a massa de manobra do 8 de janeiro e os biltres da organização criminosa que pretendeu dar um golpe de estado para manter no poder o Presidente da República que não conseguiu se reeleger em 2022, o capitão acima de todos. E de tudo. Pela proposta de algibeira, todos os crimes pelos quais essa gente foi condenada teriam suas sanções diminuídas, inclusive os de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (CP, art. 359-L) e de golpe de estado (CP, art. 359-M).
Se isso se converter em lei e se sua manifesta inconstitucionalidade não for declarada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, a corte terá de rever todas as penas aplicadas aos réus já condenados, inclusive o chefe da organização criminosa golpista. É o que determina o parágrafo único do art. 2o do Código Penal.
Parlamentares que defendem o projeto alternativo de Paulinho afirmam que obtiveram sinal verde dos ministros do STF. Muito esquisito.
De público, nenhum deles disse algo nesse sentido. Mas se essa sinalização houve, trata-se de conchavo. Não se deve esquecer que em inusitada, vergonhosa e despudorada mancomunagem com o Ministério Público incorreram os juízes da Lava-jato, fiados sabe-se bem em que (afinal, “in Fux we trust”). Deu no que deu. Agora, com o tal PL da dosimetria, além do fedor que exalaria, o conluio, a trama, a maquinação seria a capitulação de oito magistrados do STF à sanha trampobolsonarista: Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Carmen Lúcia, Cristiano Zanin, Flávio Dino e, claro, Alexandre de Moraes, objeto de ódio mortal, aliás, mortal mesmo, de Bolsonaro, Trump e companhia ― não se esqueça: ele chegou a ser tocaiado pelos sicários do golpe, que só não o mataram porque receberam contraordem na última hora, sabe-se lá o motivo.
Preferindo-se acreditar que ministros do STF não se prestaram ao escuso papel, o projeto, uma vez tornado lei, criaria tensão entre poderes da República, dada sua gritante inconstitucionalidade, primeiro porque não teria generalidade nem abstração, pois seu objetivo foi beneficiar pessoas certas e determinadas; segundo, porque, concebida para enfraquecer as recentes condenações judiciais da liderança do golpe, revelaria afronta ao princípio da tripartição dos poderes, expresso no art. 2o da Constituição da República. A norma estabelece que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
Paulinho, contudo, esforçou-se em vão, coitado. Provavelmente o projeto será rejeitado. O líder máximo da organização golpista e sua gangue não querem redução de penas, querem confronto. Confronto é crise e crise é o caldo de cultura de um golpe de estado. Eles não aceitam nada menos do que anistia ampla, geral e irrestrita, algo incapaz de lhes tolher planos e ações, muito menos nova tentativa golpista. Insistem em afrontar, com uma lei inconstitucional, condenações judiciais impostas com absoluto respeito ao devido processo legal. O due process of law, é bom que se diga, não é coisa de comunista. Teve, como primeira grande proclamação escrita, a Magna Carta, na Inglaterra, em 15 de junho de 1215. O Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, primeira grande proclamação escrita do comunismo, veio a público em 21 de fevereiro de 1848, ou seja, mais de 633 anos depois.
É claro que se o projeto da anistia tiver êxito e se tornar lei, vai haver mais tensão entre Legislativo e Judiciário. Lógico. Sua inconstitucionalidade será de algum modo arguida e com certeza decretada. Desse rumo é impossível desviá-la e paradoxalmente a ingerência e a chantagem dos EUA em favor dos golpistas o torna caminho irreversível. A recente aplicação da Lei Magnitsky à esposa do ministro Alexandre de Moraes foi ato que torna ainda mais impensável qualquer perdão aos criminosos. Foi um tiro no pé dos brasileiros que têm conspirado contra o Brasil, sua Economia, suas instituições e seu povo, tudo em prol de um ditador frustrado e de sua perniciosa quadrilha. Para essa grei, a sanha estadunidense não tem se revelado boa química.
*Alberto Penna Firme é jurista.
FOTO: Correio Brasiliense

