Publicado em 2 de fevereiro de 2025 por Tribuna da Internet
Ailton Krenak
Folha
A COP30 na Amazônia já começou para os povos indígenas que estão mobilizados em Belém. Acampados há mais de duas semanas ocupando a Secretaria de Educação, assim como bloqueando rodovias que cortam seus territórios, os indígenas expõem a falta de cuidado do governo desse estado que, em breve, receberá milhares de visitantes ilustres no maior evento dedicado à discussão global do clima.
O tema, aliás, nos toca a todos, sujeitos a enchentes e inundações, tal como ocorre na capital paulista nesses dias, ou a incêndios nunca antes vistos, como o que apavorou a Califórnia recentemente. Os governos estão desorientados quanto a medidas que possam equipar nossas cidades diante dos imprevistos que ocorrem de norte a sul, sem aviso que permita acionar sistemas de proteção e defesa.
EVENTOS CLIMÁTICOS – Cidades inteiras são paralisadas diante dos eventos climáticos, e isso deveria interessar a cada um de nós, além dos governos. Belém é uma cidade transtornada por canteiros de obras, que corre para terminar as instalações que deverão receber a COP30 —construções de ferro e concreto na capital que bem poderia ser, ela própria, um modelo de florestania, termo que define a condição cidadã para os povos da floresta.
Florescidade e florestania são conceitos que surgem a partir da experiência de décadas de organização das comunidades extrativistas, indígenas e ribeirinhas para resistir à ocupação das últimas florestas onde essas populações têm seus modos de vida estabelecidos.
Organizadas em regiões do Acre, Amazonas, Pará e Amapá, lograram garantir milhares de hectares de áreas cobertas por florestas, algumas demarcadas como terras indígenas ou Rexex (reserva extrativista), criando assim a condição de garantia onde uma economia local sustenta a vida de milhares de famílias dentro da floresta.
CHICO MENDES – Animadas pelo sonho de Chico Mendes, as reservas extrativistas resistem às tentativas de esvaziamento de ações como pesquisa e apoio à permanência de seus jovens dentro da floresta. Ofertar ensino de qualidade para as novas gerações é uma das demandas constantes dessas comunidades.
Promover políticas públicas voltadas à saúde e educação, nessas localidades, é tarefa dos governos municipais, mas também da esfera estadual e do governo federal.
Florestania é a condição cidadã da floresta, estabelecida como conquista de novos direitos por comunidades historicamente excluídas da vida pública brasileira. O país e a língua se descuidam do trato respeitoso com sua população, também “cidadãos” da floresta.
CRISE NA EDUCAÇÃO – Um exemplo disso é a desnecessária crise na relação com as redes de escolas em aldeias e vilas ribeirinhas e quilombolas, promovida pelo governo do Pará. Atendidas em sistema presencial, com professores em sala de aula, esse sistema modular de ensino indígena está sendo reduzido à oferta de ensino a distância.
O governador e seu secretário de educação estão sendo confrontados pelo movimento indígena, que não aceita a substituição de aulas presenciais por aulas online nas aldeias e ganhou o apoio de professores, de movimentos sociais e da sociedade civil.
É uma fagulha que pode incendiar o sonho do governo do Pará —e também de Brasília— quanto à realização dessa que deve ser a mais importante reunião de chefes de Estado na Amazônia.
NA COP30 – A participação dos povos da floresta na COP30 é esperada por todas as organizações internacionais voltadas à questão das mudanças climáticas. Uma das razões da escolha dessa capital para receber o evento é sua proximidade com as áreas naturais, seus rios e suas florestas habitados por povos originários, com seus modos de vida e conhecimentos tradicionais do bioma amazônico.
Lideranças destacadas dessas comunidades da floresta, presentes em todas as Conferências do Clima e que pautaram o debate da COP30, podem ser agora a pedra no caminho de Helder Barbalho (MDB), grande beneficiário da escolha dessa capital amazônica para receber o mais importante debate sobre mudanças climáticas do planeta.
Os povos indígenas querem preservar a experiência do ensino escolar nas centenas de endereços educacionais das aldeias, para mais de 50 etnias, com seus próprios fundamentos pedagógicos de uma educação diferenciada.
VIOLAÇÃO DE DIREITOS – Diante da ameaça de substituição das aulas presenciais por videoaulas, na nova modalidade proposta pelo atual secretário, a ativista Alessandra Korap, do povo munduruku, explica:
“O estado do Pará tem vários povos, mais de 50 povos indígenas. Imagine uma TV falando uma língua e os alunos não entendendo o que o professor está falando na TV. Aulas online não servem para a gente porque muitos alunos não falam português”. Para Korap, “isso é violação de direitos, violação de nossa cultura. Isso é muito grave”.
A mobilização, iniciada pelos indígenas, já reúne muitos representantes da sociedade paraense, com os professores e os servidores aderindo à luta por respeito e autonomia na educação escolar. Cada vez mais, a sociedade se dá conta de que a mudança no sistema de ensino não irá ficar restrita aos povos indígenas, mas entende que todos os povos da floresta serão afetados.
GARIMPAGEM – O filme “Amazônia, a Nova Minamata?”, de Jorge Bodanzky, tem a inconfundível voz de Alessandra Korap denunciando a tragédia que as invasões garimpeiras levaram à região do Tapajós, agravando a situação de ameaças em que vivem os ribeirinhos e as aldeias indígenas, agora com seus rios e lagos contaminados por mercúrio.
São as vozes da floresta que denunciam a destruição do bioma e, hoje, também a desestruturação do sistema de ensino, fundamental para a formação de lideranças de uma nova geração consciente da necessidade de se mudar a relação que temos com a floresta para que essa seja de reciprocidade.
Os enfrentamentos sobre o nosso futuro comum, que deverão ocorrer durante a COP30, já começaram em Belém.
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