Publicado em 24 de dezembro de 2024 por Tribuna da Internet
Jamil Chade
do UOL
Neste Natal de 2024, no Vaticano, o presépio montado trouxe inicialmente um menino Jesus embrulhado num lenço tradicional palestino. Um gesto de apoio à população de Gaza e de qualquer lugar do mundo que esteja sendo alvo de uma ocupação brutal. Dias depois, o lenço sumiu.
Num mundo fraturado, Gaza é o retrato de um colapso da humanidade. Um depoimento da derrota da diplomacia. E, ainda assim, o silêncio das potências e daqueles capazes de influenciar é revelador e reabre o debate sobre a cumplicidade diante de crimes atrozes.
SEM HESITAR – A própria Santa Sé sabe, hoje, as consequências de quando opta por hesitar. No dia de Natal de 1942, o papa Pio 12 usou sua tradicional alocução na rádio Vaticano para emitir seu único comentário público sobre o genocídio dos judeus por parte da Alemanha Nazista.
“Este voto (a favor de um mundo mais justo) a humanidade deve às centenas de milhares de pessoas que, sem culpa própria, às vezes apenas por razões de nacionalidade ou raça, se encontram destinadas à morte ou a uma aniquilação progressiva”, declarou Pio 12.
Não houve uma referência nem aos autores dos crimes e nem uma declaração contundente de defesa dos judeus. Mas a frase foi suficiente para reverberar pelos corredores da diplomacia mundial e, desde então, o Vaticano tem sido alvo de uma polêmica sem fim sobre seu papel durante a Segunda Guerra Mundial.
FOI OMISSO? – Pio 12 foi acusado de não ter feito o suficiente para denunciar crimes cometidos por cristãos. Há quem conteste essa versão. Alguns de seus confidentes mais próximos insistem que seu silêncio foi deliberado como estratégia para salvar vidas, principalmente a de judeus na Itália. Por décadas, a Santa Sé sustentava que não tinha informações para se pronunciar.
Mas uma carta encontrada recentemente ampliou o constrangimento e o debate. Nela, um padre jesuíta alemão alertava que 6 mil cidadãos judeus e poloneses eram assassinados diariamente nas câmaras de gás. O texto ainda cita Auschwitz.
A carta era datada de 14 de dezembro e era endereçada ao secretário pessoal do papa, Robert Leiber. Dez dias depois, Pio 12 faria a alocução de 45 minutos chamada “o Santo Natal e a humanidade sofredora”, na qual faz a alusão indireta ao massacre dos judeus.
ELE SABIA – Ou seja, o papa sabia de tudo. Ainda assim, ele nunca mais tocaria no tema de forma tão aberta ao longo de 19 anos de pontificado.
Ainda como cardeal Pacelli, ele havia sido o secretário de Estado do Vaticano no papado de Pio 11, que morreu às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Em 1933, Pio 11 assinou um acordo com a Alemanha, na esperança de proteger os católicos durante o regime de Adolf Hitler.
Mesmo assim, entre 1933 e 1939, Pacelli escreveu 55 denúncias ao Terceiro Reich. Pio 11 ainda publicou três encíclicas contra a onda totalitária que varria o mundo. Em 1937, a encíclica “Com Grande Ansiedade” era uma denúncia do nazismo, escrita em grande parte por Pacelli.
RAÇA HUMANA – Pio 11 havia iniciado os trabalhos para a publicação de uma encíclica que denunciaria a incompatibilidade entre o cristianismo e o racismo. O documento já tinha até nome: Humani Generis Unitas (A Unidade da Raça Humana).
Mas ele acabaria morrendo e seu sucessor, Pio 12, abortou o projeto ao assumir o Vaticano, em 1939. O motivo: não provocar Mussolini e Hitler.
Um ano depois de assumir o trono de Pedro, Pio 12 recebeu em seu gabinete o chefe da diplomacia nazista, Joachim von Ribbentrop. Naquele dia, o alemão se queixou da atitude do pontífice e o acusou de estar tomando o lado dos Aliados. Pio 12 respondeu lendo uma longa lista de crimes cometidos pelos nazistas.
FAZIA INFORMES – Pessoas fiéis ao papa garantem que, ao longo dos anos, ele repassou informações aos governos aliados sobre o que seus bispos e cardeais informavam sobre os territórios ocupados pelos nazistas.
Mas, entre os Aliados, as queixas eram de que ele não havia sido explícito em condenar Hitler. Alas importantes de historiadores e vaticanistas também sustentam que o silêncio do Vaticano — ou pelo menos sua hesitação — diante do Holocausto é uma das marcas mais complicadas na história recente do cristianismo.
Oitenta anos depois, o debate sobre o silêncio e a cumplicidade diante de crimes volta a atormentar as lideranças mundiais. Muitas delas não perderam a ocasião de estar na inauguração da nova Catedral de Notre-Dame. Mas, ao mesmo tempo, mantiveram um silêncio atroz diante da destruição de igrejas históricas no território palestino.
SILÊNCIO DO MUNDO – Esta omissão também foi denunciada pelo reverendo Munther Isaac, em Belém, o berço de Jesus. “O mundo não nos vê como iguais. Estamos atormentados pelo silêncio do mundo”, disse.
Para ele, Gaza é hoje o “compasso moral da humanidade”. E alertou: “Se nosso cristianismo não está escandalizado com o que ocorre, há algo de errado com nossos valores cristãos”.
O pastor diz que, diante dos impérios, “Deus não se manteve em silêncio e mandou seu filho para estar ao lado dos mais vulneráveis”. “Hoje, Jesus está em cada criança morta. Ele é a criança de Gaza. Jesus está sob os escombros. Ele renasceu sob ocupação, está com os refugiados”, disse o reverendo, que ainda tem uma pergunta ao Ocidente, diante do que ele denuncia como cumplicidade. “Nós, palestinos, vamos nos reconstruir, vamos nos reerguer. Mas e vocês?