Grupo radical libanês Hisbolá tem apoiadores não só no Oriente Médio, mas também na América Latina
Por Matheus Gouvea de Andrade
Prisão de supostos integrantes do Hisbolá que estariam planejando atentados dispara alerta. Especialistas divergem sobre riscos, mas destacam radicalização de indivíduos e crescente antissemitismo nas redes sociais.
Em meados de novembro, a prisão de supostos integrantes do grupo radical libanês Hisbolá que estariam planejando atentados no Brasil levantou o alerta sobre os riscos do terrorismo islamista no país.
Essa preocupação é comum a outros países da região. Na Argentina, por exemplo, pouco depois dos ataques do grupo terrorista palestino Hamas a Israel no dia 7 de outubro, as embaixadas israelense e americana em Buenos Aires foram esvaziadas devido a ameaças de bomba. O Hamas é considerado uma organização terrorista por diversos países ocidentais, como os Estados Unidos, o Reino Unido e a Alemanha.
Nos anos 1990, a capital argentina foi alvo de ataques mortais atribuídos ao Hisbolá, o que explica o alerta. No entanto, especialistas divergem sobre a real ameaça de ações da organização no Brasil, embora destaquem os riscos causados por indivíduos radicalizados e pela propaganda antissemita nas redes sociais.
Detenções e ligações com o Estado Islâmico
Desde o início de novembro, a Polícia Federal (PF) prendeu três brasileiros por suspeita de ligação com o Hisbolá. Os dois primeiros foram detidos sob suspeita de planejarem atos extremistas contra a comunidade judaica no Brasil a mando do grupo radical islâmico financiado pelo Irã e que tem lançado ataques a Israel a partir do Líbano desde a eclosão do conflito entre Israel e Hamas na Faixa de Gaza.
O foco das ações seriam edifícios da comunidade judaica, como sinagogas e centros de reunião. Segundo a PF, o objetivo da operação, batizada de Trapiche, é também obter provas de possível recrutamento de brasileiros para a prática de atos extremistas. Em agosto deste ano, a Polícia Federal cumpriu uma série de mandados de busca e apreensão por conta de um possível recrutamento de adolescentes para o grupo Estado Islâmico.
O Ministério do Interior espanhol anunciou esta semana que deteve dois cidadãos com nacionalidade brasileira por supostos vínculos também com esse grupo terrorista. A operação contou com colaboração da PF. Os dois, que são irmãos, seriam recrutadores do Hisbolá no Brasil, segundo declarou um investigador brasileiro à agência de notícias Reuters. Eles divulgaram material de propaganda do grupo em redes sociais, afirmaram as autoridades espanholas.
No auge do fluxo de estrangeiros para combater na Síria e no Iraque, um eventual retorno de radicalizados que saíram de países da América do Sul e do Caribe chamou a atenção de especialistas. No caso de Trinidad e Tobago, a nação ficou conhecida por ser a que, proporcionalmente à população, mais teve cidadãos se unindo ao grupo terrorista.
A questão chamou a atenção também de autoridades dos Estados Unidos. À época, o general da Marinha John F. Kelly, chefe do Comando Sul dos EUA, disse ao Comitê de Serviços Armados do Senado que "todos ficam preocupados", já que os jihadistas podem regressar com competências profissionais para ataques.
O controle reduzido nas alfândegas é justamente um dos pontos que o general levantava como um potencial impulsionador de ataques. "Ninguém verifica seus passaportes. Eles não passam por detectores de metal. Ninguém quer saber por que eles estão vindo", afirmou sobre os radicalizados.
Atuação na tríplice fronteira
Em 1992, a embaixada de Israel em Buenos Aires sofreu um atentado a bomba que deixou 29 mortos e que foi seguido de uma ação ainda mais letal, em 1994, quando a Associação Mutual Israelita-Argentina (AMIA) foi alvo de um ataque que matou 85 pessoas. As duas ações foram atribuídas ao Hisbolá.
Desde então, uma série de relatórios de inteligência, especialmente dos Estados Unidos, apontou para a presença e atuação do grupo na América do Sul. A ampla comunidade libanesa em território brasileiro seria um elemento que indicaria uma potencial relação. O Brasil tem hoje o que é considerada a maior comunidade de libaneses e descendentes fora do país árabe no mundo.
Uma ata de 2014 do Subcomitê de Terrorismo do Congresso americano afirma que, "desde os anos 1990, o Hisbolá tem desfrutado de apoio ideológico e financeiro dos libaneses na fronteira tríplice de Argentina, Brasil e Paraguai, região conhecida por armas, drogas, falsificações e tráfico humano".
Para o especialista Matthew Levitt, diretor do programa de contraterrorismo e inteligência do Washington Institute, a atuação do Hisbolá na América Latina se concentra na angariação de somas significativas de dinheiro através de negócios ilícitos e contrabando, incluindo a Tríplice Fronteira e outras zonas de comércio na região. "O Hisbolá se beneficia há muito tempo da pouca regulamentação, usando a área para se envolver em atividades ilícitas para lucrar e solicitar doações das comunidades muçulmanas locais", afirma.
Em 2011, em seus Relatórios Nacionais sobre Terrorismo, o Departamento de Estado dos EUA observou que "simpatizantes ideológicos" na América do Sul e no Caribe fornecem recursos financeiros e apoio moral a grupos terroristas no Oriente Médio e no Sul da Ásia.
Nos últimos anos, há registros de que os laços do grupo se expandiram para ao menos outros dois países da América do Sul: Venezuela e Colômbia. O ex-ministro do Petróleo venezuelano Tareck El Aissami é apontado como o responsável pela penetração do grupo no seu país. De acordo com investigação de autoridades israelenses, os interesses na região envolvem receitas do tráfico de drogas, mas há também envios de ouro ilegal da Venezuela para o Irã.
No entanto, as atividades espalharam-se para muito além desses pontos críticos bem conhecidos e incluem não apenas logística e financiamento como também planejamento operacional terrorista, afirma Levitt.
Classificação como grupo terrorista
Em 2019, Paraguai e Argentina classificaram o Hisbolá como um grupo terrorista, o que chegou a ser considerado pelo governo brasileiro, mas não foi levado adiante. Em 2020, também a Colômbia classificou a organização libanesa como terrorista. À época, o governo do presidente Donald Trump colocou pressão sobre o Hisbolá, especialmente pelos vínculos com o Irã.
Para Levitt, o Hisbolá desenvolveu uma sofisticada organização entre sua liderança e as estruturas civis, sociais e militares e as atividades terroristas. Na visão dele, há evidências "mais que suficientes" para classificar o grupo como terrorista.
Para a pesquisadora Isabelle Somma, do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP e do Grupo de Pesquisa sobre a Tríplice Fronteira da Unila, os governos de Argentina e Paraguai eram ideologicamente próximos ao do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, na época em que decidiram optar pela designação.
Somma considera correta a postura do Brasil, de seguir o entendimento da ONU, que designou grupos como a Al Qaeda e o Estado Islâmico de terroristas, mas não o Hisbolá.
Para Somma, o caso argentino parece ser bem específico devido ao atentado de 1990. "Já o Brasil tem um histórico pacífico, de convivência bastante respeitosa entre as comunidades de imigrantes, o que nos faz tender a imaginar que um atentado aqui seria muito improvável", avalia.
Apesar das recentes prisões da PF, ela diz não haver qualquer evidência da atuação do Hisbolá no Brasil. "Obviamente há quem apoie o grupo, mas isso não significa que essas pessoas trabalhem para ele. Coincidentemente, toda vez que ocorre um conflito no Oriente Médio, em particular na fronteira com Israel, essas acusações voltam a surgir", avalia. O que ocorre, de acordo com a pesquisadora, é que parte da comunidade libanesa na diáspora vê com simpatia o Hisbolá.
Ações de indivíduos solitários e radicalizados
À parte uma possível ação direta do Hisbolá no Brasil, muitos especialistas apontam para um cenário de radicalização online como um possível motivador de atentados ao redor do mundo, que podem ser realizados por indivíduos solitários ou pequenas células. Desde os ataques do Hamas contra Israel, no dia 7 de outubro, conteúdo online que incita a ataques contra alvos judeus e os pedidos por uma chamada Jihad global vem se espalhando pelo mundo.
Segundo Levitt, há uma série de indícios recentes sobre radicalização além das fronteiras levando a atentados, incluindo o sofrido pelo escritor Salman Rushdie, vítima, em 2022, de um ataque a faca em Nova York. "Alguns grupos de milícias xiitas vão um passo além e produzem material em redes sociais destinado a radicalizar e mobilizar para a violência", afirma.
Para a pesquisadora Michele Prado, que integra o grupo de pesquisa da USP Monitor do Debate Político no Meio Digital, embora o Brasil não seja um alvo tradicional do extremismo islâmico, a internet modificou muito esse cenário. De acordo com ela, "vivemos um momento de terrorismo pós-organizacional no qual muitos indíviduos não necessariamente estão ligados a grupos de uma forma horizontalizada".
Nas redes sociais, Prado aponta para o crescimento de conteúdos radicais desde 7 de outubro. "Desde o ataque, houve uma inundação de vídeos com conteúdo gráfico sobre os atentados, especialmente no Telegram. Depois disso se passou à propaganda do Hamas, que entrou muito forte no Brasil. Na esteira disso, houve um aumento brutal do antissemitismo", observa.
Os conteúdos antissemitas são um ponto em comum entre uma série de grupos extremistas, de acordo com a pesquisadora, que menciona os neonazistas como exemplo.
Prado vê as ações da Polícia Federal, como a que visou recrutadores do Estado Islâmico em agosto, como exemplos dos riscos e da relevância do problema no Brasil. Além disso, ela afirma que observou o caso de um adolescente que sofreu radicalização pelo extremismo islâmico recentemente e que cometeu um atentado em ambiente escolar. "A quantidade de conteúdos legitimando o terrorismo pode ser um gatilho para jovens radicalizados cometerem uma ação violenta", alerta.
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