segunda-feira, fevereiro 27, 2023

O poder da máquina




Putin não quer o Nobel da Paz, quer vencer os separatistas, que são uma ameaça à Federação Russa.

Por Merval Pereira (foto)

Na marca de um ano da invasão da Rússia na Ucrânia, nada melhor para conhecer as intrincadas razões do primeiro-ministro russo Vladimir Putin para desencadear essa ação irresponsável, do que ler “O Mago do Kremlin”, do cientista político italiano Giuliano Da Empoli, lançado no Brasil no final do ano passado, premiado com o Grand Prix da Academia Francesa. Putin é um homem que não se interessa em ganhar o Prêmio Nobel da Paz, mas em vencer os separatistas, que representam uma ameaça à Federação Russa.

Autor do essencial “Engenheiros do Caos”, livro no qual descreve a ação de extremistas de direita no uso das ferramentas digitais para provocar rebeliões pelo mundo afora, e interferir na política de outros países, Da Empoli faz a ligação de seu novo livro com o anterior, mostrando como o uso político das redes sociais na internet teve papel fundamental para Putin, reforçando as suspeitas de que a Rússia teve participação direta na eleição de Donald Trump nos Estados Unidos em 2016 e, possivelmente, na de Bolsonaro em 2018 no Brasil.

Foi na produção do primeiro livro que ele se deparou com a figura de Vladislav Sukov, “O Mago do Kremlin”, que no romance foi identificado como Vladimir Baranov, o principal assessor de Putin durante anos, que engendrou a política baseada nos algoritmos que usaria os novos meios digitais para impor sua visão de mundo. No livro anterior, Da Empoli falava de Steve Bannon, o guru da extrema-direita dos Estados Unidos e da família Bolsonaro.

Deixou o mago do Kremlin para um livro próprio, e fez bem. Na concepção de Sukov, como os instrumentos digitais foram inicialmente concebidos para a utilização militar nas guerras, não seriam dedicados à liberdade individual. Ao contrário, seriam meios estratégicos para indução das populações às vontades de um governo central. O objetivo seria “fazer com que fiquem enraivecidos. Todos. Cada vez mais”.

Ou, como diz Vladimir Baranov, o alter-ego de Vladislav Sukov, alguns valores que são básicos nos países democráticos ocidentais, como o livre arbítrio, os direitos individuais, a própria democracia, ficaram obsoletos diante do novo mundo digital, que “transformou a humanidade em um único sistema nervoso”. É a definição do espírito de manada que ele identifica com “configurações padronizadas”.

Sukov seria uma espécie de versão atual, usando algoritmos, de Rasputin, o monge místico que exercia forte influência sobre Alexandra Feodorovna, a mulher do último czar Nicolau II, estimulando a visão de Putin de reunificação da Grande Rússia. Desde a criação da imagem forte e atlética de um Putin que, saindo da KGB, sucedeu a Ieltsin, um líder fraco e bêbado. Para ressurgir, a Grande Rússia precisava de um líder que espelhasse o poder do país. O que o povo russo exige de seu comandante, diz Putin, é ordem interna, além de poder externo.

O pacote de “image laudering” do regime incluiu a realização das Olimpíadas de Inverno e da Copa do Mundo de futebol. A invasão da Ucrânia, precedida do incentivo a radicais russos na região do Donbass, é um dos efeitos de sua atuação, assim como a guerra da Tchetchênia . Quando se fala de “teatro político”, não é uma figura de linguagem, no caso de Sukov/Baranov. Ele foi ator e trabalhou na televisão, e tinha o objetivo de transformar a Rússia num grande teatro, onde a vontade do Czar Putin deveria prevalecer sempre.

Utilizando-se de uma citação de Constantin Stanislavski, Putin é descrito como o ator que coloca a si mesmo em cena, que não precisa atuar porque está tão impregnado por seu papel que o roteiro da peça se tornou sua própria história.

Em tempos de inteligência artificial tomando o lugar de pessoas, Sukov/Baranov imagina que um dia um homem apenas dominará o mundo, mas, na verdade será a máquina que dominará o mundo, colocada a funcionar por um homem.

O Globo